O mural com 43 fotos em grandes dimensões de professoras e professores negros de Araxá, instalado em frente ao Estádio Municipal Fausto Alvim, localizado no Centro da cidade do Sudoeste Mineiro, foi vandalizado na última sexta-feira (30/6). Realizador do Festival Literário de Araxá – Fliaraxá, que chega à sua 11ª edição a partir desta quarta-feira (5/7), Afonso Borges diz que o episódio só reforça a importância de se colocar a questão racial em primeiro plano nesta edição do Fliaraxá, que tem como patrono Mário de Andrade (1893-1945).





O modernista é o eixo de um ciclo de debates intitulado “Mário de Andrade, negro, 130 anos”, no qual seis especialistas negros vão discutir, entre outros assuntos, a questão da identidade do autor de “Macunaíma”.

Borges observa que, ao abordar Mário de Andrade sob a perspectiva de sua negritude, promove-se uma revisão crítica do legado do autor, lançando luz sobre aspectos muitas vezes invisibilizados ou silenciados. A visão de Mário de Andrade como um escritor negro, em um país marcadamente racializado como o Brasil, abre espaço para reflexões sobre a construção da identidade do autor e a relação entre sua obra e a questão racial.

“Educação, literatura e patrimônio” é o tema que norteia a edição deste ano do Fliaraxá, que, além de Mário de Andrade, homenageia a poeta mineira Líria Porto e a escritora carioca Eliana Alves Cruz, autora de livros como “Água de barrela” e “O crime do cais do Valongo”.




 

Uma das homenageadas do evento, a escritora carioca Eliana Alves Cruz participará da mesa "Territórios narrativos: vozes de autoria negra na literatura"

(foto: Chiro Cerchiaro/divulgação)
 

Imagens vandalizadas

O realizador do evento, que segue até o próximo dia 9, com a presença de mais de 100 nomes na programação, destaca que a questão racial está em estreito diálogo com o tema eleito para este ano. Ele aponta que a exposição “Muros invisíveis”, que reúne as imagens de docentes que foram vandalizadas, é uma forma de abordar a identificação do povo negro com a educação.
 
“Quando se fala em racismo estrutural, é porque ele está presente em todos os campos, agora, na educação ele é particularmente nocivo, porque é na educação que mora a força da ideologia”, afirma.

Foi por meio de uma educação enviesada, por exemplo, que Machado de Assis (1839-1908) foi, durante muitos anos, considerado branco, ou que vários outros escritores negros também foram embranquecidos ou invisibilizados.




 
“Na hora em que a gente colocou lá as 43 fotos dos professores pretos, a reação foi imediata, com muita gente perguntando por que não tinha brancos. Porque eles não são invisibilizados, eles não precisam, simples assim”, diz Borges.

Ele ressalta que o tema deste ano tem tudo a ver com Mário de Andrade, que, entre outras coisas, teve participação decisiva na criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
 
A escolha de Eliana como uma das homenageadas se relaciona, conforme aponta, com a contundência de suas obras na abordagem da questão racial. “A bandeira do 11º Fliaraxá é totalmente antirracista. Acredito que o grande desafio do mundo contemporâneo é a superação do racismo”, aponta.



Além de estar, na condição de homenageada, no centro de um debate com as presenças de Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Paulo Lins e Tom Farias, que é um dos curadores do evento, a autora participa, na próxima sexta-feira (7/7), ao lado de Tenório, de um debate intitulado “Territórios narrativos: vozes de autoria negra na literatura”.

“Acho que é um debate que fala de uma experiência de Brasil, uma experiência de um grupo que tem suas particularidades, suas percepções de mundo e de país, se expressando na literatura, na ficção especialmente. É uma forma de fabular a vida que leva em conta uma parcela enorme da população que, até há pouco tempo, não tinha espaço no âmbito da literatura brasileira”, diz Eliana.

Ela observa que é recente o fenômeno de autoras e autores negros escrevendo e ocupando as listas de mais vendidos e mais premiados. As razões, conforme aponta, são muitas. Uma delas é a política de cotas nas universidades, que possibilita um ambiente acadêmico com maior diversidade. “Sei de muitos estudantes de literatura fazendo seus trabalhos finais de graduação, mestrado ou doutorado baseados em livros meus”, destaca.




 

Itamar Vieira Junior, que lançou neste ano "Salvar o fogo", é um dos escritores convidados; festival reunirá mais de 100 autores, em atividades presenciais e on-line

(foto: Renato Parada/divulgação)
 

Ambiente favorável aos negros

Outro vetor dessa mudança é a popularização dos concursos, das feiras e dos festivais literários em todo o país. “Não se trata de um fator isolado, tudo criou um ambiente favorável para o surgimento de novos autores negros. O vencedor do (prêmio) Jabuti em 2020 foi Itamar Vieira Junior; em 2021, foi Jeferson Tenório e, no ano passado, eu ganhei, na categoria contos. Três autores negros se destacaram na premiação literária mais importante do país nos últimos três anos”, pontua Eliana.

A escritora observa que a questão racial, que se coloca como central no 11º Fliaraxá, também está no foco dos debates em diversos outros eventos afins país afora.
 
“Tenho participado de uma infinidade de eventos, mesas, debates, em que esse tema está posto, porque é muito pulsante na contemporaneidade. Os casos de racismo, de segregação, eles puxam essa reflexão mesmo entre os mais jovens, na escola, porque são questões que angustiam a população brasileira”, afirma Eliana Alves Cruz.

Eliana ressalta que não hesita em dar uma pausa em sua intensa agenda para marcar presença em eventos desse tipo. Ela diz, a propósito, que está, no momento, às voltas com diversos projetos.
 
“Estou sempre escrevendo, tenho muita pressa, escrevo muito, porque gosto muito do que faço. Escrever, para mim, não é algo sofrido, então estou sempre desenvolvendo uma ideia já com outras quatro na fila. Também estou trabalhando com audiovisual, chefiando a sala de roteiro de um seriado, e às voltas com traduções. É bastante coisa, tudo envolvendo texto”, diz.




 
Entre os 100 convidados desta edição do evento, que se dividem meio a meio entre ações presenciais e virtuais, há representantes de nove estados brasileiros e também de outros países – casos da italiana Lisa Ginzburg e do angolano Kalaf Epalanga.

Lina chega para lançar seu mais recente livro, “Cara paz”, com o qual foi finalista, em 2021, do importante Prêmio Strega. O encontro com a autora vai ser no próximo sábado, às 21h. Nascida em Roma, em 1966, ela é filósofa, tradutora e autora de vários romances, biografias e livros de ensaios.
 
Já Epalanga é autor de livros como “Também os brancos sabem dançar”, “Estórias de amor para meninos de cor” e “Angolano que comprou Lisboa (por metade do preço)”. Ele é também músico, tendo fundado a banda Buraka Som Sistema.




 

A historiadora Mary Del Priore vai participar do Fliaraxá

(foto: Mateus Montoni/divulgação)
 

Convidados

 Entre os autores que estarão presentes em Araxá no período de realização do festival figuram também os nomes de Lucrecia Zapi, Jamil Chade, Juliana Monteiro, Eugênio Bucci, Carla Madeira, Celso Adolfo, Cidinha da Silva, Evandro Affonso Ferreira, Lívia Sant'Anna Vaz, Mary Del Priore, Michele Arroyo, Pasquale Cipro Neto, Sérgio Rodrigues, Valéria Lourenço, entre outros.

Afonso Borges destaca que um primeiro critério da curadoria – que também inclui Sérgio Abranches, além dele próprio e de Tom Farias – foi buscar os autores mais interessantes no atual contexto da ficção brasileira.
 
“O destaque da programação é esse pessoal todo junto num evento presencial. Onde mais você vai ter Carla Madeira, Jeferson Tenório e Itamar Vieira Junior, que são três dos nomes que mais vendem livros no país? É um grupo fortíssimo”, comenta.





Ele diz que outro critério é justamente a possibilidade de se discutir a fundo a temática racial. “Estou realmente dando uma prioridade para a questão do negro, porque acho que o momento é de enfrentamento do racismo. Acho que esse será nosso foco daqui para a frente, enfrentar o racismo e colocar as minorias em evidência. Teremos, este ano, a presença de três escritores indígenas”, destaca.

A Câmara Municipal de Araxá vai participar ativamente do festival, coordenando o tradicional Prêmio de Redação Maria Amália Dumont. Destinado a estudantes da rede pública e particular de ensino, o prêmio tem por objetivo revelar novos talentos literários e incentivar o hábito da leitura e da escrita. O tema definido para a concepção da redação é o mesmo do festival: “Educação, literatura e patrimônio”. Serão escolhidos 15 ganhadores, em três faixas etárias. Participam alunos de escolas públicas e privadas, indistintamente.
 
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Autores locais

Outra novidade é que a Academia Araxaense de Letras assume papel de destaque ao fazer a curadoria, por intermédio do seu presidente, Luiz Humberto França, de uma série de 20 debates com autores de Araxá e região. Na programação estão nomes como Ana Luiza Ribeiro de Melo Silva, Lisa Alves, Mariana Santos e Iris Santiago, que conversam sobre poesia na mesa "Escritos falados"; e Luciane Dias, Mirthes Miriam e Silla Silva, que abordam "Saúde mental e superação na Literatura".





Borges destaca o envolvimento crescente da cidade na realização do evento. “No início, há 11 anos, eu me relacionava com três ou quatro escritores de Araxá; hoje temos 110 autores da região presentes. Tivemos que fazer um auditório específico para eles, com uma agenda organizada pela Academia Araxaense de Letras. A Câmara Municipal de Vereadores tomou a iniciativa de controlar uma das frentes mais importantes do festival, que é o concurso de redação, que movimenta todas as escolas da cidade. É uma geração leitora que estamos formando”, diz.

11º FESTIVAL LITERÁRIO DE ARAXÁ

• Desta quarta-feira (5/7) até o próximo domingo (9/7), com o tema “Educação, literatura e patrimônio”
• Programação presencial no estacionamento do Estádio Municipal Fausto Alvim (Av. Imbiara, no Centro de Araxá)
• Programação digital no YouTube, Instagram e Facebook do @fliaraxa

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