Ele era alucinado, mas extremamente lúcido. José Celso Martinez Corrêa fez o que mais ninguém poderia. Teatro, mas também (muita) performance, na cena e fora dela. "O teatro é meu corpo. É o espaço onde eu posso e faço o que quero e levo para qualquer lugar", disse ele em 2017, 80 anos recém-completados.
Sua trajetória como encenador foge de todo padrão desde o começo. Foi um papagaio (não a ave, mas a pipa), em Araraquara, interior de São Paulo, onde nasceu em 30 de março de 1937, que deu início a tudo.
Zé Celso chamava o objeto de "Imperador do Espaço". Um dia, empinando o papagaio, ele se rompeu e acabou molhado. Colocou- para secar e o encontrou praticamente destruído (pelo sol) no dia seguinte. Um vento acabou por levar a pobre pipa embora.
Ele nem titubeou. Ao violão, compôs: "Hoje vou fugir com o vento, vou até o firmamento.Vou ver a terra brilhar, a brilhar. Vou me lançar por esse espaço a ventar, ventar." A música gerou uma peça, "Vento forte para um papagaio subir", primeira montagem do então recém formado Grupo Teatro Oficina.
A peça, de apenas 40 minutos, foi apresentada no Teatro Novos Comediantes em 1958, mesmo espaço no bairro Bela Vista, em São Paulo, que é ocupado até hoje pelo Oficina. O grupo original contava ainda com Amir Haddad, Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap e Ronaldo Daniel.
Zé Celso havia conhecido seus futuros colegas de teatro quando, por pressão dos pais, entrou para o curso de Direito da USP. O que os unia era o ator e pedagogo russo Constantin Stanislavski, criador do método de atuação mais utilizado nas artes cênicas.
O grupo pretendia dedicar-se a uma atuação realista, como pregava seu mentor. Em pouco tempo tal direção foi modificada. O Golpe Militar (1964) exigia uma resposta política. A primeira reação aos novos (e difíceis) ventos políticos foi "Andorra" (1964), do suíço Max Frisch, que trata do antissemitismo pós Segunda Guerra. Foi neste período que Zé Celso deixou Stanislavski de lado e se aproximou da obra de Bertolt Brecht.
A (primeira) grande virada se deu em 1967, com "O rei da vela", de Oswald de Andrade. Havia quem considerasse a verborragia do texto oswaldiano impossível de ser encenada. Mas ele se tornou uma voz da rebeldia que brotava no país nos primeiros anos da ditadura. A montagem não só concretizou o teatro antropofágico, que marcou toda a trajetória do encenador, como o colocou como figura essencial no teatro brasileiro.
A peça estreou após um incêndio no Oficina, que o destruiu, em 1966. Outro momento histórico de sua trajetória é também deste período. Primeira direção fora do Oficina, a montagem de "Roda viva" (1968), de Chico Buarque, trouxe outro elemento que se tornou marca de seu teatro. Zé Celso criou um ritual provocador, em que os atores iam à plateia para incitá-la.
Em 1974, Zé Celso enfrentou problemas com a censura e partiu para o exílio em Portugal. Realizou, na época, dois documentários (sobre a Revolução dos Cravos e a independência de Moçambique).
De volta a São Paulo em 1978, criou um movimento para manter o Teatro Oficina aberto - tombado em 1982 e reinaugurado em 1983, o espaço, com projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, passou a se chamar Teat (r) o Oficina Uzyna Uzona. Deste período vêm montagens célebres, como "Ham-let" (1993), "As bacantes" (1995), "Cacilda!" (1998), "O sertões" (2002-2003-2005-2006).
O Oficina, em tempos mais recentes, passou a reler suas peças históricas, com as devidas adaptações para o contexto sócio-político do país. "O rei da vela" foi encenada em 2017 e "Roda viva", em 2019. Até "Vento forte para um papagaio subir" voltou a ser remontada, em 2008, quando completou seu cinquentenário.
A idade avançada e o fechamento com a pandemia não o impediram de trabalhar. Durante a crise sanitária, o Oficina ficou fechado por um ano e nove meses. Foi reaberto em outubro de 2021, com a peça "Paranoia", monólogo com Marcelo Drummond, marido de Zé Celso e primeiro ator do grupo. Também no período foi filmado "Esperando Godot" (direção de Monique Gardenberg), que em 2022 estreou, devidamente, nos palcos.
Em sua última entrevista ao Estado de Minas, realizada em maio, quando "Godot" foi apresentada no Sesc Palladium, Zé Celso afirmou: "Sou muito antimessiânico, não gosto de ficar esperando uma coisa que não vem. Temos que fazer acontecer.” E foi o que ele fez, em 86 anos de vida e 65 de teatro.
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