Guilherme Luís e Cristina Camargo/Folhapress
Após um impasse jurídico que atrasou a liberação, o corpo de José Celso Martinez Corrêa foi cremado em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, na tarde de ontem (7/7). A cremação era um desejo do dramaturgo, que morreu aos 86 anos, na última quinta-feira (6/7), após um incêndio tomar conta de seu apartamento em São Paulo, na terça (4/7). Com queimaduras em 53% do corpo, Zé Celso ficou internado na UTI do Hospital das Clínicas, mas não resistiu aos ferimentos.
O velório do dramaturgo foi realizado no Teatro Oficina e ficou aberto ao público até o final da manhã desta sexta. Em seguida, a família do artista esteve em uma cerimônia reservada. No local, uma multidão foi se despedir de Zé Celso.
Abraçadas e comovidas, dentro do espaço, as pessoas cantaram “O amor”, de Gal Costa, “Flores horizontais”, de Elza Soares, e “Rasga o coração”, de Vicente Celestino. Ao final, o público presente se reuniu ao redor do caixão com aplausos efusivos que duraram cinco minutos.
Corrente de despedida
O corpo do dramaturgo foi recebido por uma multidão na rua em frente ao Oficina. Artistas e público cantavam, dançavam e gritavam “evoé” e “viva o Zé”.
Organizado em fila, o público foi orientado a entrar de mãos dadas, em uma corrente, para a despedida. As pessoas podiam passar rapidamente pelo caixão e eram orientadas a sair, ainda de mãos dadas, para que todos tivessem a chance de homenagear o dramaturgo.
Chamada de grande cobra, a fila em formato circular durou cerca de duas horas. Depois disso, o velório continuou com música, dança e aplausos.
As galerias do Oficina ficaram lotadas até o meio da madrugada de ontem, assim como o palco em formato de passarela. O caixão foi colocado na parte final da passarela. Várias pessoas circularam com garrafas e copos de vinho e cerveja. Após 3h30, o público sentou em frente ao palco para ouvir canções no estilo bossa nova, cantadas em um tom mais baixo e acompanhadas de piano e violão.
Entre os que se apresentaram no recital estava o compositor e professor José Miguel Wisnik. “A pessoa mais livre e transparente que existiu, existe e reexistirá. Seu não ao ser vil é um tremendo sim. Não há morte que o morra”, disse sobre o amigo.
Por volta das 5h, o clima voltou a ficar festivo e dançante. Artistas do Love Cabaret foram ao Oficina após encerrarem suas apresentações, ainda com os figurinos. “Viemos celebrar a vida”, disse Ginger Moon. Crianças, moradores de rua e até um gato e um cachorro participaram da celebração.
No entanto, mesmo com o clima teatral e celebrativo, a todo momento era possível ver devotos de Zé Celso chorando e inconformados.
Marcelo Drummond, o marido e sucessor no Oficina, permaneceu durante grande parte do tempo nas proximidades do caixão. Artistas como Alexandre Borges, Júlia Lemmertz, Chico César, Pascoal da Conceição e Karina Buhr acompanharam o velório durante a madrugada.Bastante emocionado, Renato Borghi, um dos fundadores do Oficina, também compareceu.
O corpo do dramaturgo foi coberto com uma bandeira da Vai Vai, escola de samba do Bexiga, e flores. Do lado de fora do Oficina, vendedores ambulantes abasteceram o público com bebida e comida durante toda a madrugada. Dois bares na região também ficaram cheios. Vendedor de cerveja, água e refrigerante, William Rodrigues dos Santos conheceu Zé Celso e conversava com o dramaturgo quando dava tempo. “Se não fosse o incêndio eu acho que ele iria longe ainda”, disse, baseado na vida ativa do dramaturgo.
"Bacantes" e "Balada do louco"
No início da manhã, atores do Oficina encenaram trechos de “Bacantes” e, em um momento catártico, cantaram “Balada do louco”.
“Tradição”, o samba que é uma espécie de hino do Bexiga, foi cantado em coro, assim como “Meu cavalo tá pesado”, em que parte do público se integrou aos artistas, incluindo crianças, para percorrer o palco e até mesmo um trecho da rua em frente ao teatro.
O ritual de despedida dos artistas incluiu molhar a cabeça e partes do corpo na cachoeira que deságua em um espelho de água e integra a icônica arquitetura do Oficina.
Marcelo Drummond dirigiu algumas cenas durante a celebração ocorrida à tarde. À noite aparentava estar mais abatido.
Entre os artistas que cantaram e dançaram estava a médica do dramaturgo Luciana Domschke, que também é atriz. Ela afirmou que Zé Celso foi tratado com carinho pela equipe da UTI e, mesmo em coma, recebeu áudios de amigos.
A atriz Vera Valdez, de branco como outros artistas, falou aos presentes sobre a sua relação com Zé Celso e disse nunca ter visto nada parecido com a celebração no Oficina. “Estamos todos esperando ele entrar em cena”, afirmou, antes de o corpo chegar. Um ano mais velha, Vera brincou que Zé Celso a seguia. “Mas resolveu dar no pé.”
Outro amigo antigo presente na homenagem foi o cover de Elvis Presley, conhecido como Elvis da Paulista. Ele disse que conheceu Zé Celso ao procurar o dramaturgo para aprender sobre experiências estéticas, em 2010.
“Eu cercava ele na saída do Oficina”, lembrou. “Um dia ele abriu as portas e começamos a conversar.” Eram conversas de uma hora e meia, duas horas. O Elvis da Paulista também assistiu a muitas peças do grupo. “Com a morte dele, senti como se tivesse perdido um pai.”
Após os rituais para celebrar a vida de Zé Celso, o Oficina voltou a abrir na noite de ontem para a encenação da peça “Mutação de apoteose”. O teatro continua.