Quem vê as duas versões (jovem e experiente) de Gentil na novela das nove da TV Globo, “Terra e paixão”, não imagina que os atores Felipe Oládélè e Flávio Bauraqui compartilham algo a mais que o personagem: o perfume.





É isso mesmo. Sempre que entram em cena, eles passam o mesmo perfume, feito em Nova Lima, por uma amiga de Oládélè. “Foi uma ideia do Flávio ter alguma coisa que nos conectasse com o Gentil, talvez um cheiro ou alguma coisa assim”, conta Oládélè, que é natural de Belo Horizonte. 

Ele diz que, ao ouvir a proposta do colega, recorreu à amiga mineira para que fizesse uma colônia personalizada que tivesse a ver com uma pessoa amorosa e, ao mesmo tempo, uma relação com a terra e a ancestralidade, tal qual o personagem do folhetim. Assim foi feito.

Gentil é amigo de Aline (Barbara Reis), dona das terras que o mau-caráter Antônio La Selva (Tony Ramos) quer tomar para si. Personagem-chave desse núcleo da novela, é ele quem traz à tona segredos comprometedores de La Selva, revelados por meio de flashbacks nos quais Oládélè interpreta Gentil.




 

Os Gentis: Flavio Bauraqui e Felipe Oládélè

(foto: Instagram/reprodução)
 

Do teatro de rua à novela

É a primeira vez que o mineiro faz uma novela. Aos 35 anos, ele fez carreira no teatro, passando por diferentes linguagens cênicas. Experimentou o teatro de rua, a palhaçaria, o teatro de bonecos, o teatro físico e contemporâneo, até se encontrar no teatro negro.

Com a peça “Chão de pequenos” (2013), concebida em parceria com Ramon Brant, rodou o país e fez sua primeira temporada internacional, apresentando-se em outros países da América do Sul e também na Europa. Na sequência, ingressou em uma residência artística de um ano com o Bando de Teatro Olodum, em Salvador, e, ao retornar para a capital mineira, fundou a Cia. Negra de Teatro. 

O grupo foi o primeiro composto por alunos negros do Centro de Formação Artística e Tecnológica da Fundação Clóvis Salgado (Cefart-FCS) a se apresentar no Grande Teatro do Palácio das Artes, durante a mostra Cefart Concerto, em 2013.





Passados cinco anos, Oládélè foi convidado a integrar o elenco do espetáculo “Preto”, da Cia. Brasileira de Teatro. Contracenou com Renata Sorrah e Grace Passô, atrizes que ele já admirava. O sucesso da peça de Marcio Abreu – o espetáculo foi indicado aos prêmios APCA, Shell, Veja e Estadão – garantiu ao grupo um tour na Europa.

No mesmo ano, Oládélè fez outra residência artística na Alemanha. Em seguida, foi para Cabo Verde, no intuito de pesquisar o teatro e a dança locais. Como resultado desses estudos, estreou no final de 2020 seu primeiro espetáculo solo, “Travessia”, no Grande Teatro do Sesc Palladium.

Na TV, participou do especial “Comadres”, da Globo; e das séries “Rota 66”, do Globoplay, e “A História delas”, do Star+, protagonizada por Letícia Spiller. Já no cinema, rodou "A torre" (2019), de Sérgio Borges; e “Velho Oeste”, de Thiago Taves Sobreiro, ainda sem previsão de estreia.





Dedicado ao teatro e à pesquisa dos diferentes elementos que cercam e compõem as artes cênicas, é natural pensar que a atuação seja uma atividade que sempre esteve presente na vida de Oládélè. A verdade, no entanto, é que o teatro só chegou na vida dele em 2009, quando ele tinha 22 anos.
 
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Skate Vivo

“Minha praia era outra. Eu queria ser skatista”, revela o ator. “Disputei campeonatos e criei um projeto social em Vespasiano chamado Skate Vivo, que até hoje existe e ganhou dimensão muito grande pelo programa estadual Fica Vivo. O skate era um meio para falar sobre arte, educação e empregabilidade para jovens em situação de vulnerabilidade social”, conta.

Ele ressalta que, graças ao projeto, que ainda existe, mas não é mais coordenado por ele, muitas crianças e jovens não foram para o tráfico de drogas e nem para a criminalidade. 

No entanto, por mais que se dedicasse ao skate, Oládélè não via retorno financeiro naquele esporte. Por isso, aos 16 anos começou a trabalhar com informática. Em um momento da vida, chegou a ter dois empregos, começando a trabalhar às 8h e terminando a 0h. 





Não satisfeito, decidiu entrar para a Polícia Militar (PM) por dois motivos: queria estabilidade no emprego e, silenciosamente, alimentava o desejo de ser uma espécie de garantidor da justiça. Assim, quando não estava trabalhando, estudava para a prova da PM. 

Com o dinheiro que juntou, comprou um carro para facilitar a locomoção entre os dois empregos e ainda ganhar tempo para estudar. O veículo, no entanto, acabou sendo crucial para fazê-lo abandonar tudo e se dedicar ao teatro.

“Sofri um acidente grave que me fez repensar a vida”, lembra o ator. “Ali, percebi que os amigos que eu tinha nesse período só estavam ao meu lado por interesse. Eu era um jovem da periferia, que tinha dois empregos e um carro. Eu me afirmava mostrando meu poder aquisitivo. Quando me acidentei, perdi meu carro e me afastei do emprego; quase todos os meus amigos foram embora. Foi um processo de abandono”, relembra. 





Nesse período, um dos poucos amigos que restaram convidou Oládélè para ir ao Festival de Inverno de Milho Verde. Embora não soubesse do que se tratava, ele foi e adorou. 

“Conheci um monte de artistas da música, da dança e do teatro. E, pelo que eu me lembro, vi a primeira peça de teatro lá. Três palhaços tentavam tocar uma música. O que me deixou mais chocado foi a reação das pessoas. Aquilo, tão simples, encantava a todos. E me encantou também. Aí vi que era aquilo que eu queria fazer na minha vida”, diz ele.

Oládélè começou, então, a estudar teatro. Mas, paralelamente, continuava trabalhando no setor de informática. Somente com a aprovação na residência artística do Bando de Teatro Olodum ele decidiu viver apenas de arte.

No período em que morou na capital baiana, ganhou confiança para montar a própria companhia e passou a ter um pensamento mais crítico a respeito do ofício do ator.
 

Felipe Oládélè (ao centro) com o elenco da peça 'Chega de saudade'

(foto: Instagram/reprodução)
 

Bossa nova

Hoje, além de integrar o elenco de “Terra e paixão”, Oládélè está em cartaz no Rio de Janeiro com a peça “Chega de saudade”, na qual interpreta Ronaldo Bôscoli. A peça, montada somente com atores negros, pretende mostrar outra perspectiva da Bossa Nova, contextualizando-a de acordo com o momento político em que surgiu, de pré-ditadura militar (1964-1985).





Oládélè também se aventura na música. Em 2021, lançou o rap-manifesto "Chamado para aquilombar", gravado em parceria com Abraão Kimberley. No single, ele expõe os diferentes tipos de violência a que o povo preto está sujeito, desde o racismo explícito até a sexualização de seus corpos, sobretudo o das mulheres.

Para este ano, pretende lançar outro single – ainda sem título definido – e montar a peça “A Terra desce”, com Aquela Cia.

Já para os próximos anos, o que está na mira de Oládélè são montagens de obras de Shakespeare. “Nunca tinha me imaginado montando peças dele. Era um universo tão distante para mim, pelo menos aparentemente, porque, na verdade, Shakespeare trabalha questões muito humanas”, afirma.

A carreira na Polícia Militar? Ele descarta. Mas ainda alimenta o desejo de fazer justiça, que vem se concretizando com as constantes revelações de seu personagem Gentil.

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