Ninguém queria ser advogado. Mas pelo menos no curso de direito não havia química, física ou matemática, matérias que estariam presentes caso aquele grupo quisesse estudar engenharia civil ou medicina. Na USP, em meados dos anos 1950, não eram poucos os que estavam em busca de uma vocação que fugisse à regra vigente.
Amir Haddad nem chegou ao terceiro ano da Faculdade de Direito. “A gente só estava lá esperando para saber o que ia fazer da vida”, ele diz. Nesta turma também estavam José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi, Moracy do Vale e Carlos Queiroz Telles.
Todos eles fizeram parte dos espetáculos iniciais que deram origem ao Teatro Oficina, mas só os três primeiros continuaram nos palcos. Moracy se tornou produtor e jornalista (lançou o Secos & Molhados) e Telles, escritor, poeta e dramaturgo.
SEM REPOSIÇÃO
''Ele (Zé Celso) sabia tanta coisa, era bem informado, ilustrado, lia muito mais do que eu''
Amir Haddad, diretor de teatro
A morte de Zé Celso, na quinta-feira (6/7), pegou Amir em meio às comemorações de seus 86 anos. O aniversário foi em 2 de julho, também o dia de lançamento do 1º Festival de Teatro Amir Haddad que, até o próximo domingo (16/7), vai apresentar, na sede do grupo Tá na Rua, na Lapa, Rio de Janeiro, espetáculos, shows, debates, workshops e exposição.
“O Zé Celso era bom demais, melhor do que eu. Ele sabia tanta coisa, era bem informado, ilustrado, lia muito mais do que eu”, comenta Amir, que acredita que “o teatro brasileiro não tem peça de reposição” para o encenador morto em decorrência de incêndio em seu apartamento, em São Paulo.
Para Amir, só é possível discorrer sobre a vida de Zé Celso, não a morte. E o teatro chegou para os dois, ambos da mesma idade, exatamente no mesmo momento. Zé Celso chegou a São Paulo vindo de Araraquara e Amir de Rancharia, também no interior paulista – mas ele é mineiro de Guaxupé, Sudoeste do estado, onde viveu até os 5 anos.
O diretor acha difícil explicar como o teatro surgiu na sua vida. “Não havia televisão, então o teatro era muito importante. Se você quisesse fazer uma atividade artística, o teatro é que se apresentava mais fortemente para o jovem. E São Paulo tinha, na época, o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), o Sérgio Cardoso.”
O teatro era um tema frequente das conversas dos alunos de direito. Renato e Amir eram atores, Zé Celso escrevia. Um dia resolveram fazer uma peça. “O Renato tinha estudado no Colégio São Bento. Disse que lá tinha um auditório que poderia ser utilizado como teatro. Ele conseguiria com os padres do colégio”, conta Amir. A oportunidade apareceu e o grupo resolveu montar “Cândida” (1895), texto de Bernard Shaw sobre amor, casamento e identidade masculina. A estreia foi em 1957.
DIAMANTES
''O Zé Celso queria dirigir também e não queria disputar direção com ele (ao explicar a saída do Oficina)''
Amir Haddad, diretor de teatro
“A peça tinha um papel bom para o Renato, outro para um amigo cujo nome esqueci. Mas não tinha papel para mim. Então me falaram: ‘Você dirige’. Eu disse que estava bom, mas nunca tinha pensado em dirigir peça. Mas fiz direitinho, os atores se movimentaram bem em cena, ninguém se atropelou e o espetáculo foi saudado como uma coisa que revelava talentos de pessoas muito jovens. Diziam que éramos diamantes a serem lapidados. E fomos.”
Mas e o Zé Celso nesta história? “Na primeira peça ele não era nada, só estava perto. Depois é que entrou escrevendo”, continua Amir. Ele refere-se a "Vento forte para um papagaio subir" (1958). A montagem, inspirada em uma história de Zé Celso e uma pipa perdida em Araraquara, estreou no Teatro Novos Comediantes, que fica no mesmo espaço do Bairro Bela Vista, que é ocupado até hoje pelo próprio Oficina.
“Como não sobrava papel de ator para mim, fui dirigindo naturalmente. Aí gostei da função”, acrescenta Amir, que dirigiu somente mais um texto de autoria de Zé Celso. “A incubadeira” (1959) acompanhava um jovem asmático que sofria com as tensões familiares e a superproteção da mãe neurótica. O texto deu um prêmio a Zé Celso de melhor autor no 2º Festival de Teatro de Estudantes, em Santos.
Pouco depois, Amir deixou o Oficina, naquela época ainda um grupo de teatro amador. “O Zé Celso queria dirigir também e não queria disputar direção com ele.” Acabou indo para Belém, onde passou três anos para implantar a primeira escola de teatro universitário do Pará. “Foi muito bom para mim porque me abriu muito. Eu achava que o Brasil era São Paulo.”
Na volta, depois de formar a primeira turma da universidade, Amir resolveu parar no Rio de Janeiro em uma escala de sua passagem. Chegou numa sexta e retornaria para São Paulo três dias depois. Nunca mais foi embora da capital fluminense.
DO PALCO PRA RUA
Hoje, soma mais de 400 espetáculos sob sua direção ou supervisão. Autodidata, aprendeu tudo na prática. Além disto, há 43 anos comanda o Tá na Rua, que mudou radicalmente sua maneira de fazer teatro.
“Fiz muito teatro no palco tradicional. Fiz bem e com sucesso. Depois comecei a mexer na questão do espaço. Tirei a quarta parede e os atores passaram a se dirigir para a plateia. Depois os atores desceram na plateia. Em determinado momento coloquei a plateia no palco e os atores na plateia. Até que um dia resolvi fazer no espaço sem nenhuma definição, que é o espaço aberto das ruas, para descobrir qual o limite que o meu espetáculo poderia ter sem paredes.”
Foi transformador, diz Amir. “Descobri o público da rua, que eu não conhecia. Um público heterogêneo, onde toda a estratificação social estava representada. Mesmo se você tivesse 10 pessoas numa roda, eram 10, cada um de um lado. Você poderia ter 200 em um teatro que seriam todas do mesmo grupo social. Na rua, não. Essa foi a melhor coisa que a rua me deu, pois tive que desenvolver uma linguagem que servisse a todos.”
A partir de 1980, como uma forma de ocupar a então decadente e violenta região da Lapa, casarões foram cedidos para grupos culturais. O Tá na Rua, com Amir à frente, se formou em uma das antigas edificações da Região Central do Rio. A premissa do grupo é a de levar a locais públicos espetáculos em que a participação da plateia é parte da cena.
MONTAGENS
''Fiz muito teatro no palco tradicional... até que um dia resolvi fazer no espaço sem nenhuma definição, que é o espaço aberto das ruas... onde toda a estratificação social estava representada''
Amir Haddad, diretor de teatro
Como encenador, dirigiu também meio Rio de Janeiro. Tanto que o recém-estreado Festival de Teatro Amir Haddad nasceu disto. “Vi que havia muitos espetáculos dirigidos ou supervisionados por mim em cartaz. Monólogos, principalmente. Aí resolvemos botar tudo junto”, conta ele.
Entre as montagens estão “Antígona”, com Andrea Beltrão; “Virginia”, com Cláudia Abreu; “A alma imoral”, com Clarice Niskier; e “Sombras no final da escadaria”, com Vanessa Gerbelli. “Trabalho muito, dia e noite. Mas o que me interessa hoje é o teatro em espaços abertos, horizontal, popular, democrático. O teatro tradicional, fechado, é ultrapassado, não corresponde mais aos nossos tempos.”
Tanto que hoje ele dirige menos. “Atualmente, tenho muito pouca vontade de dirigir uma peça. Gosto de supervisionar. Alguém tem o trabalho, me chamam, assisto os ensaios e dou meus palpites. Agora, eu ficar na sala de ensaio mandando o ator trabalhar? Faz tempo que não faço. Estou pronto é para dar palpite, igual Deus. Deus é assim, né?”, brinca.
PROFESSOR
Sala mesmo, ele gosta é de aula. Com uma atividade intensa como professor, Amir aguarda retornar, em breve, para os cursos no Tá na Rua. “É uma coisa que me renova, me desafia, e me coloca em contato com jovens atores. É bom estar ativo, útil, importante. Seria muito ruim se eu estivesse aposentado ou não tivesse trabalho. ‘Ah, o Amir tá velho!’ Seria horrível isto. Mas meu trabalho faz sentido, então estou na crista da onda”, conclui.
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