Tudo pode ser fado? Definitivamente, não. “Quase nada. Só o que é fado é fado”, resume Carminho, de 38 anos, uma das cantoras portuguesas mais conhecidas no mundo. Mas isso não impediu que um samba (logo quem!) se tornasse um dos fados que ela desfia em seu novo álbum.





“Portuguesa”, seu sexto disco, é também a base da turnê que ela fará no Brasil entre o final de agosto e o início de setembro. Serão cinco datas: em Belo Horizonte, o show será em 1º de setembro, no Sesc Palladium. Os ingressos já estão à venda.

Pode ser bairrismo, Carminho ri do comentário, mas ela acaba concordando. Fato é que das 14 faixas do álbum, a que logo gruda no ouvido é a penúltima.  “Levo o meu barco no mar” é brasileiríssima, letra e música de Marcelo Camelo. Carminho a considera um “hino transatlântico”.

“Parece um fado, mas é uma canção que tem qualquer coisa de pop. Tem refrão, cadência. Veio de alguém de fora do fado, mas que entende bem a cultura, o encontro com a língua portuguesa. Marcelo me mandou a música dizendo que achava que tinha a ver comigo. O mais engraçado é que quando chegou até mim era um samba. Tive que transformar um bocadinho, colocar a minha linguagem. Foi bom porque ela veio de um lado mas é compreendida entre os outros”, conta.




 


Três anos de trabalho

 O álbum “Portuguesa” teve concepção complexa, foram quase três anos. Mas nasceu quase de supetão, 10 dias intensos de estúdio com Carminho e seus músicos tocando juntos, sem qualquer separação. O período seria dedicado à pré-produção, ela conta, mas no meio do processo viu que o que estava sendo registrado era pra valer.

A cantora que despontou há pouco mais de uma década e que no Brasil ganhou ressonância graças a parcerias com os grandes – Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento, este também seu padrinho artístico – é responsável pela renovação do fado. Não é preciso deixar as tradições, mas há como trazer novos autores, sonoridades e influências.
 
 

O novo disco é mais uma prova dessa confluência. Para este álbum, Carminho diz que pensou no conceito de forma “mais cerebral”. “Se a base é o fado tradicional, então começo todo disco com um fado do (Alfredo) Marceneiro (tradicional fadista, morto em 1982, dois anos antes do nascimento de Carminho). Ele fazia os próprios fados e se tornou um dos meus compositores originais. Não o conheci, mas a mensagem que ele me deixou foi de que eventualmente eu deveria fazer meu repertório.”





Diante disso, o disco é aberto com “O quarto (fado Pagem)”, com letra dela para a música de Marceneiro. “A ideia era colocar uma letra nova em um fado antigo, mostrar que isto é possível, desde que se respeite as características. Quis fazer uma reconstrução do repertório tradicional como algo contemporâneo. Era importante para mim fazer esta junção”, ela explica.

Sete faixas têm a autoria de Carminho, seja na letra, na melodia e, em alguns casos, em ambas (“As flores” e “Praias desertas”). Ela também trabalhou obras de grandes autores portugueses. Musicou “É preciso saber porque se é triste” e “As fontes”, dos poetas Manuel Alegre e Sophia de Mello Breyner Andresen, respectivamente. Regravou marcha que havia sido registrada por Amália Rodrigues (“Marcha de Alcântara de 1969”, de José da Silva Nunes e Jorge d’Ávila).
 
Ela também foi ao encontro de compositores contemporâneos. Autoras, aliás, todas da mesma geração de Carminho e que trafegam por outras praias: jazz, pop, folk. “Simplesmente ser” tem melodia e letra de Rita Vian, cantora que despontou recentemente na cena portuguesa e traz referências tanto do fado quanto da eletrônica. “Sentas-te a meu lado” é de Luísa Sobral e “Ficar” da cantautora Joana Espadinha.





A predominância da autoria feminina não foi planejada, diz Carminho. “Quando pedi temas a compositores, não pensei se eram homens ou mulheres. Escolhi pelos temas, pela unidade da peça. Fui fazendo muitas escolhas. Rasurei, cortei, numa dança muito sentido. O que mais me deixou feliz foi a constatação de que a maioria dos compositores eram mulheres. Essa presença feminina surgiu de forma intuitiva, natural. E o Marcelo está aí para quebrar a regra.”
 
 

Paixão pelo Brasil

Há um ano, Carminho veio ao Brasil participar, como convidada, da estreia da turnê do cantor português António Zambujo. Com turnê própria, ela nem se lembra da última vez em que esteve no país.

“Dois meses antes da pandemia despontar, eu tinha turnê marcada no Brasil. Tive que cancelar. Estava grávida, foi um momento muito delicado. Ainda hoje me dói não ter feito o show do disco 'Maria' (2018) no Brasil”, comenta ela, que nos shows deste ano, diz que poderia ficar até “três horas no palco”.





Carminho se diz “apaixonada mesmo” pelo Brasil e sua música. “A princípio, era uma atração pela linguagem musical. Comecei a ouvir a música através das novelas da Globo. A certa altura percebi que a música era separada da personagem. Ou seja, que a Marieta Severo, ou a personagem que ela fazia, não tinha nada a ver com a música cantada por Tom Jobim. Quando percebi que eram dois mundos, vi que um deles era porta aberta para um novo mundo.”
 
• Leia também: Carminho participou de série brasileira ao lado de Adriana Calcanhoto, Ney Matogrosso e Nelson Motta

A cantora mergulhou na música brasileira e, por meio dos já citados parceiros ilustres e das turnês, se tornou também querida do público do Brasil. “Há muitas forças que nos atraem (brasileiros e portugueses) e fico feliz porque acho que esse magnetismo também está acontecendo no sentido Brasil/Portugal, não só no sentido Portugal/Brasil. Acho que nós (portugueses) conhecemos muito bem a vossa cultura, vossos artistas. Mas não havia esse entendimento do lado inverso da mesma forma. Sinto, com alegria e orgulho, que isto está a inverter-se. E não só a ideia da música, mas as pessoas (os brasileiros) estão conhecendo melhor o fado, sua estrutura.”

A maior prova que ela poderia dar aos brasileiros veio em seu quarto álbum, “Carminho canta Tom Jobim” (2016). “Foi ele que tornou a música brasileira mundial. Não só a tornou, como contaminou a música do mundo.”




Caetano e a 'fuga da língua'

O álbum lhe valeu um grande debate com Caetano Veloso sobre a escolha do repertório. “Ele me acusou  de fuga da língua, pois fugi do você, já que dissemos cá o tu, não o você. Houve outras questões, mas para mim foi uma honra que ele se debruçasse sobre o assunto. Na verdade, fui procurar a mim própria no repertório do Tom Jobim. E, no final das contas, posso ter provocado esse sentimento em outros. Continuamos a discussão por alguns anos, o que resultou em um convite”, conta Carminho.
 
Em seu álbum mais recente, “Meu coco” (2021), Caetano Veloso convidou Carminho para interpretar “Você-você”. Um dos trechos diz: “Tu és você, sou você/ Eu e tu, você e ela/ Ary, Noel, Tom e Chico/ Amália, blues, tango e rumba.”

“Fiquei completamente honrada em fazer parte deste disco. De alguma forma esse fado foi inspirado na nossa discussão. Isto mostra a importância do diálogo sobre a língua que nos torna irmãos, mas que também nos torna livres”, finaliza.



(foto: Warner Music/reprodução)
“PORTUGUESA”

•  Disco de Carminho
•  Warner Music Portugal
•  14 faixas
•  Disponível nas plataformas digitais
•  A cantora faz show em 1º de setembro, às 21h, no Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Ingressos: R$ 200 (inteira), R$ 130 (cliente Sesc) e R$ 100 (meia-entrada),à venda na bilheteria e no sympla.com.br

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