Um dos mais celebrados fotógrafos brasileiros, Walter Firmo chegou a Belo Horizonte para acompanhar a montagem da exposição “No verbo do silêncio a síntese do grito”, que será aberta ao público nesta quarta-feira (12/7), no CCBB. Uma das primeiras coisas que ele fez foi ir ao Mercado Central tomar uma cachacinha da roça. “Na Paraíba também se fabrica uma cachaça muito boa, mas, para mim, a melhor é a de Minas”, comentou, ontem, já no centro cultural da Praça da Liberdade, onde recebeu a imprensa.
Atualmente com 86 anos – 71 deles empunhando uma câmera –, Firmo diz ainda se sentir jovem e, de fato, esbanja vitalidade e boa disposição para falar de seu trabalho. Composta por aproximadamente 200 imagens, a retrospectiva contempla trabalhos produzidos desde o início de sua carreira profissional, em 1950, até 2021.
As fotos que integram a mostra destacam a população e a cultura negras de diversas regiões do país, em ritos, festas populares e religiosas, além de cenas cotidianas. A seleção foi feita a partir de um vasto acervo de mais de 140 mil imagens de Firmo, que estão sob guarda do Instituto Moreira Salles (IMS), parceiro do CCBB na realização da exposição.
A curadoria ficou a cargo de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, e Janaina Damaceno Gomes, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do grupo de pesquisa Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra. Firmo, naturalmente, foi consultado, mas diz que preferiu não interferir no processo.
“O fotógrafo, o artista, no geral, ele se acha, então não teria sentido eu ficar brigando com meus curadores”, diz. “Eu os deixei à vontade para escolher o que quisessem, e foi essa maravilha, o encantamento que é essa exposição, uma das melhores da minha carreira.”
'Acabei colocando os negros numa atitude de referência no meu trabalho, fotografando os músicos, os operários, as festas folclóricas, enfim, toda a gente. A vertigem é em cima deles, no sentido de colocá-los como honrados, totens, como homens que trabalham, que existem'
Walter Firmo, fotógrafo
Ensaios
As fotografias apresentadas nas galerias do térreo do CCBB-BH registram, segundo Burgi, a poética do artista associada à experimentação e à criação de imagens muitas vezes encenadas e dirigidas, com destaque para ensaios aclamados, como o de Pixinguinha sentado em sua cadeira de balanço ou a série com o artista Arthur Bispo do Rosário.
Dividida em núcleos temáticos, a mostra traz retratos memoráveis de grandes nomes da música brasileira, como Cartola, Clementina de Jesus, Dona Yvone Lara e Aniceto do Império, além de imagens de brasileiros e brasileiras anônimos, pescadores, vendedores ambulantes, mães de santo, brincantes, casais, noivas, crianças e até a própria família do artista. A exposição lança luz ainda sobre a importante trajetória de Firmo como fotojornalista.
'Clementina foi como uma segunda mãe para mim, fomos amigos durante 15 anos, até sua morte'
Walter Firmo, fotógrafo
Um dos destaques é a seção dedicada à fotografia em preto e branco do artista, pouco conhecida e, em grande parte, inédita. Firmo é conhecido como “mestre da cor”, título que ele refuta, precisamente, por sua relação com um leque amplo da fotografia, tanto em termos de forma quanto de conteúdo. O início de seu percurso profissional foi no fotojornalismo.
“Comecei fotografando em preto e branco, porque era a realidade da época. Os jornais não possuíam maquinário para publicar foto colorida”, observa. A guinada na produção veio por influência do fotógrafo norte-americano David Drew Zingg, que trabalhou em São Paulo. “Quando descobri a cor, foi um fascínio. Eu via David fazendo aqueles ensaios maravilhosos e queria ser como ele. De repente, me tornei um homem dedicado, fazendo esse trabalho das cores.”
Firmo encara sua atuação no fotojornalismo como uma passagem. Segundo diz, nunca pretendeu ter no foco de suas lentes somente o que se passa à sua frente. “Eu queria trabalhar com o coração, com a questão estética, e isso me levou a esse lugar, me levou a fotografar todos esses artistas negros.”
Amizades
A famosa série de fotografias de Pixinguinha feita em 1967, quando Firmo acompanhou o jornalista Muniz Sodré em uma pauta na casa do compositor, é o exemplo clássico do direcionamento que deu a seu trabalho. Após o término da conversa, o fotógrafo pegou uma cadeira de balanço que ficava na sala da residência, colocou no quintal, ao lado de uma mangueira, e propôs que Pixinguinha se sentasse nela com o saxofone no colo. “É a foto mais importante da minha carreira, embora eu não considere”, diz.
Sua relação com os grandes nomes do samba e da MPB – quase todos negros –, dos quais se aproximou por intermédio de Hermínio Bello de Carvalho e Sérgio Cabral, com quem tinha prestado o serviço militar no 1º Regimento de Infantaria do Exército, extrapolou o âmbito profissional. A exposição no CCBB-BH traz, por exemplo, imagens de Clementina de Jesus deitada na relva, Jamelão com arquétipos coloridos ao fundo e Paulinho da Viola recostado em uma árvore.
“Clementina foi como uma segunda mãe para mim, fomos amigos durante 15 anos, até sua morte. Com Cartola também foi assim. Ele me ligava para dizer que Dona Zica ia fazer um feijão no domingo, me convidando para ir lá comer. Eu pensava: Puxa, Cartola me convidando para uma feijoada feita pela mulher dele. Eu tinha intimidade com todos eles, o que acho que tem a ver com a cor da pele mesmo. Tinha ali uma coisa de confraria, onde todos eram da mesma família”, conta.
Para Burgi, as fotografias de Firmo antecipam em mais de meio século a representação do negro na sociedade brasileira, e não necessariamente dentro de uma estética documental. “Acabei colocando os negros numa atitude de referência no meu trabalho, fotografando os músicos, os operários, as festas folclóricas, enfim, toda a gente. A vertigem é em cima deles, no sentido de colocá-los como honrados, totens, como homens que trabalham, que existem”, ressalta o fotógrafo.
Beleza negra
Filho único de paraenses – seu pai, de família negra e ribeirinha do Baixo Amazonas, e sua mãe, de família branca portuguesa, nascida em Belém –, ele diz que direcionar suas lentes para a beleza negra é algo que tem raiz em sua adolescência. O fato de ter nascido em 1937, menos de 50 anos após a “tal da abolição da escravatura no Brasil”, tem um peso grande no que se tornaria um dos traços definidores de sua arte.
“Minha mãe me pariu quando tinha 15 anos, então quando eu tinha 15, ela estava com 30, era uma mulher jovem, bonita. Quando ela andava pelas ruas de braços dados comigo, as pessoas pensavam que ela tinha um caso com um garoto de 15 anos”, diz, com a voz embargada, antes de prosseguir. “Certa vez ela me contou que, quando estava grávida, a vizinhança costumava falar uma coisa que a marcou muito: que ela estava levando um fruto indigno na barriga, porque meu pai era negro”, relata.
Firmo começou a fotografar cedo, após ganhar uma câmera de seu pai. Em 1955, então com 18 anos, passou a integrar a equipe do jornal “Última Hora”, após estudar na Associação Brasileira de Arte Fotográfica, no Rio de Janeiro. Mais tarde, trabalharia no “Jornal do Brasil” e, em seguida, na revista “Realidade”, como um dos primeiros fotógrafos da publicação. Em 1967, já pela revista “Manchete”, foi correspondente, durante cerca de seis meses, da Editora Bloch em Nova York.
Neste período no exterior, o artista teve contato com o movimento pelos direitos civis, que marcaria todo o seu trabalho posterior. De volta ao Brasil, trabalhou em outros órgãos de imprensa e começou a fotografar para a indústria fonográfica. Iniciou ainda sua pesquisa sobre as festas populares, sagradas e profanas, em todo o território brasileiro, em direção a uma produção cada vez mais autoral.
A exposição “No verbo do silêncio a síntese do grito” está dividida em cinco núcleos temáticos. No primeiro, o público há aproximadamente 20 imagens em cores, de grande formato, produzidas ao longo de toda a carreira de Firmo, entre elas o retrato da Mãe Filhinha (1904-2014), que fez parte da Irmandade da Boa Morte durante 70 anos.
O segundo núcleo, “Encantamentos e experimentações”, aborda seus primeiros anos de atuação na imprensa. O conjunto inclui uma fotografia do jogador Garrincha feita em 1957 e imagens de políticos como Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek, além de registros de ensaios de escolas de samba do Rio de Janeiro.
Encantamento e teatralidade
Nas seções seguintes, a retrospectiva evidencia como, ao longo da carreira, Firmo passou a se distanciar do fotojornalismo documental e direto, tendo como base a ideia da fotografia como encantamento, encenação e teatralidade, em diálogo com a pintura e o cinema.
Estão em destaque retratos de músicos feitos a partir da década de 1970 que ilustram capas de discos. Há também registros de celebrações como a Festa de Bom Jesus da Lapa, a Festa de Iemanjá e o Carnaval do Rio de Janeiro. E um núcleo com fotos de personagens da diáspora, feitas em outros países, como Cuba, Jamaica e Cabo Verde.
O público poderá assistir, ainda, ao curta “Pequena África” (2002), de Zózimo Bulbul, no qual Firmo trabalhou como diretor de fotografia e que trata da história da região que recebeu milhões de africanos escravizados.
“NO VERBO DO SILÊNCIO A SÍNTESE DO GRITO”
• Exposição de fotografias de Walter Firmo. Em cartaz a partir desta quarta-feira (12/7) até 18/9, no CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários, 31.3431-9400), com horário de visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h. Ingressos gratuitos podem ser retirados pelo site bb.com.br/cultura ou na bilheteria física do centro cultural
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