Gosto não se discute, pelo menos é o que diz o senso comum. Os de Bráulio Garrazazuis Bestianelli revelam quase tudo sobre ele. Sua cor preferida é o verde; um filme, "O exterminador do futuro"; um remédio, qualquer um de cor azul; uma raiva, o politicamente correto; um livro… Bem, não há, já que ele não lê (ok, depois de alguma insistência, ele se sai com "A arte da guerra"). Além de mau leitor, ainda afirma ser pouco vaidoso. "Como disse, sou heterossexual."
Bráulio Bestianelli é um dos seis candidatos à presidência do Plazil, um ex-paraíso tropical que, após uma invasão, vê sua população ser tomada por um enjoo que deixa todos com uma vontade irrefreável de vomitar. "Vamos passar pano nos problemas pra limpar o Plazil", é o mote do candidato do Partido Armamentista Ufanista (PAU).
Bestianelli ronda a cabeça da escritora belo-horizontina Bruna Kalil Othero, de 27 anos, desde 2016. "Ainda hoje é um pesadelo recorrente que tenho o circo no Congresso Nacional (para a votação do impeachment de Dilma Rousseff). Naquela época, me veio a ideia de que eu tinha que escrever algum romance que brincasse com a política brasileira. Algo meio fantástico, meio maluco."
Algo que se concretizou em seu romance de estreia, "O presidente pornô" (Companhia das Letras), a partir desta sexta-feira (14/7) nas livrarias. Doutoranda e professora na Universidade de Indiana, Bruna está atualmente no Brasil, onde fica até meados de agosto. Até lá, fará turnê de lançamento do livro, que começa neste sábado (15/7), na Livraria Quixote.
"O presidente pornô" é um romance, mas foge de todo padrão, como a obra poética que Bruna lançou até então - a mais recente, por sinal, é "Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas" (2019), que recebeu prêmio do Ministério da Cultura (a última premiação do MinC antes de ser desmantelado pelo governo anterior, diga-se de passagem).
A narrativa – escrita na maior parte em minúsculas – foi estruturada como uma peça de teatro que é apresentada ao imperador e à imperatriz durante três anos. O primeiro mostra a corrida eleitoral; o segundo, a história pessoal de Bestianelli e o último, os desdobramentos de seu governo, que se tornou uma ditadura.
O Plazil, conforme descreve Bruna, foi “república no passado e império no passado e no futuro”. É, portanto, “um sanduíche de impérios com a república de recheio”.
Liberdade é a meta
Em capítulos curtos, Bruna escreve ora em prosa, ora em poesia, ora no passado, ora no presente. "Um dos grandes objetivos do livro foi fazer um romance que usa e abusa da liberdade", comenta ela.
E esta foi utilizada ao máximo, tanto na forma quanto no conteúdo. Em "Advertência", que abre o romance, a autora escreve: "Todos os acontecimentos políticos narrados neste livro ocorreram, ocorrem e ocorrerão na história republicana do Brasil."
Bruna guardou a ideia de 2016 até as eleições, dois anos mais tarde. "Com todo o processo (eleitoral) muito emotivo e esquisito, me veio nítido o título. Escreveria sobre um presidente pornógrafo. E quando decidi, fui para a pesquisa." Que foi feita nos velhos livros de história. "Lendo, me vieram as ideias para o enredo e para compor o personagem. Resolvi fazer um presidente só que misturasse coisas de todos os outros que passaram tanto pelo Catete (no Rio de Janeiro) quanto por Brasília."
A exceção foi aberta para a única mulher do grupo, Dilma Rousseff, que está presente na dedicatória: "Às presidentas que vieram e que virão".
De acordo com Bruna, pelo menos uma característica de todos os homens que já governaram o Brasil está na saga de Bestianelli. "E quando fui pensar no personagem, não queria fazer uma sátira a alguém específico, mas à instituição da Presidência, com seus homens brancos, oficialmente héteros, com tesão na ditadura. Estas são características recorrentes nos presidentes brasileiros."
Não há como não pensar em Jair Bolsonaro (2019-2022) ao acompanhar a saga de Bestianelli. "Mas há fatos curiosos (que estão no personagem ficcional) que vêm de outros, e muitas pessoas não sabem", observa Bruna.
O atentado que o candidato sofre não faz referência à facada em Juiz de Fora, mas a um atentado que Prudente de Morais (1894-1898) sofreu já no poder, em 1897. Bestianelli ficou órfão quando criança, assim como Epitácio Pessoa (1919-1922); teve a certidão de nascimento falsificada para entrar no Exército, a exemplo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951); adorava andar de jet ski, a preferência de Fernando Collor (1990-1992).
Em dado momento, há uma sequência de carnaval com uma "modelo e atriz" sem calcinha. Como não lembrar do escândalo Itamar Franco (1992-1994) com Lílian Ramos? O presidente Lula só tem uma menção, a uma "marolinha" (em seu segundo governo, em 2008, ele afirmou que a crise que o Brasil enfrentava era apenas uma "marolinha").
Já Michel Temer (2016-2018) ganhou um personagem próprio, Michel Linhares, o vice-presidente. O sobrenome foi tirado de José Linhares (1945), que governou apenas três meses. Mas entrou para a história com a expressão "Linhares são milhares", pois ele empregava inúmeros parentes.
Até o governador de Minas Gerais Romeu Zema teve seu quinhão no livro – ele é representado no candidato Romeu Sufra, do Partido Libera Geral (PLG), e tem como bordão "Privatizaremos até as privadas!"
Pornochanchada antiditadura
O romance traz doses cavalares de sexo. "Acho que humor e erotismo são as duas armas, digamos principais, no livro. Para mim, são ótimas maneiras de lidar com situações difíceis. Como cidadã política, me ajuda pensar no homem mais poderoso do país de quatro (a autora conclui a frase usando uma expressão popular que descreve a prática de sexo anal). Isto lembra a gente que os grandes líderes são humanos. A pornochanchada surge como uma revolta à ditadura. Os governos militares querem tirar o tesão do povo, já que um povo que goza não se deixa dominar. Então, não tem nada mais político do que falar de sexo."
Tanto assim que, em dado momento, o governo Bestianelli, na figura do Estado-Maior do "Exércuto", tem que lidar com a revolta Komiku, uma "famosa organização comecuísta internacional". Não é preciso somar dois mais dois para ver que Bruna se refere aos comunistas.
São vários os neologismos que a autora criou. "Como boa mineira, acho que Guimarães Rosa criou neologismos muito poéticos, bonitos. Por que não posso fazer alguns meio malucos, escatológicos? Queria que o livro tivesse essa atmosfera fantástica, fizesse piada, mesmo que tivesse um pezinho na realidade. Não entendo por que muitos dos meus contemporâneos insistem em obedecer as regras da realidade nos seus livros. Não preciso obedecer: os cudetes, as Forças Mamadas, o Plazil, tudo isso foi surgindo enquanto eu escrevia. Me inspirei em Guimarães, mas fui mais libertina", finaliza.
TRECHO
"ele era um cuzão. por isso, elegeu-se presidente.
crianças, vamos a este conto de fadas, fodas & fedor.
era uma vez a terra: nela vivia um povo feliz, inteligente e livre. plantavam, comiam, sentiam prazer. um dia, a terra foi violentamente invadida. de imediato um enjoo milenar contaminou o ar e desde então todo mundo tem vontade de vomitar. eis o nascimento do Plazil, nosso amado país - berço oficial dos distúrbios proctogastrointestinais mais chiques do planeta.
vocês podem acompanhar a historinha pelos seus programas, isso mesmo, esse troço que foi entregue na portaria. preparem-se para uma peça de arrepiar! com todo tipo de arrepio! tesão & terror. tortura & tontura. emoção & amor! o ser humano, por assim dizer."
bom espetáculo!"
*Foi mantida a grafia adotada pela autora
“O PRESIDENTE PORNÔ”
• De Bruna Kalil Othero
• Companhia das Letras (248 págs.)
• R$ 74,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book).
>> O lançamento será neste sábado (15/7), das 11h às 15h, na Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi. Às 12h, haverá performance com a presença da atriz Teuda Bara