'Me predisponho a escutar os metais. Todo o meu trabalho é um processo de escutar as coisas para entender uma maneira de falar junto com elas'
Luana Vitra, artista plástica
Nascida e criada em Contagem, a mineira Luana Vitra, de 28 anos, cumpriu percurso sinuoso no mundo das artes. Começou a dançar com 13 anos, fez curso de confecção em moda aos 16, o que a aproximou do desenho, e resolveu estudar artes visuais na Guignard, formando-se em 2018. Adotou a escultura e a instalação como suas principais formas de expressão.
Este ano, a mineira foi uma das quatro vencedoras do Prêmio Pipa, o mais importante do país na seara da arte contemporânea, e foi selecionada para a 35ª Bienal de São Paulo, que será realizada de 6 de setembro e 10 dezembro, com o tema “Coreografias do impossível”.
A arte de Luana converge para as várias experiências vivenciadas por ela. A maneira como organiza suas esculturas vem da forma como trabalha o próprio corpo na dança. Suas criações tridimensionais incorporam, em grande medida, o ponto e a linha, dialogando com o desenho.
Momento de celebração
Indicada ao Prêmio Pipa em 2021 e 2022, o anúncio da vitória este ano – ao lado de Glicéria Tupinambá (BA), Helô Sanvoy (GO) e Iagor Peres (RJ) – não chegou a ser propriamente uma surpresa. Mas ela se surpreendeu com o convite para expor na 35ª Bienal de São Paulo.
“É um momento muito especial para mim, de celebração, porque nem sempre as pessoas com o tempo de carreira que tenho são convidadas para um evento como esse. É uma responsabilidade grande, mas me sinto apta a vivê-la. Construí o trajeto do meu trabalho com muito foco e muita dedicação. Tudo o que está chegando este ano é condizente com minha caminhada. É uma grande honra participar da Bienal”, diz.
Com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, a mostra paulista de arte contemporânea reunirá 120 artistas, grupo diverso que amplia as possibilidades de diálogo na criação dentro e fora do Brasil, afirma José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal de São Paulo.
Ao comentar o prêmio dado a Luana, Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto Pipa, diz que a presença da dança, do corpo e da performance perpassa as quatro poéticas vitoriosas este ano. As obras, no geral, falam “de transição, de passagem, do abandono das identidades fixas e da busca por simbioses indeterminadas”, afirma.
'Diferentemente do resto do país, as pessoas negras em Minas Gerais desenvolveram sua sabedoria embaixo da terra, trabalhando na mineração. Isso tem a ver com o oculto, o silêncio, o segredo. Então, minha criação muitas vezes se volta para o desejo de pensar esse corpo e as tecnologias, sabedorias e mandingas que emergem daí'
Luana Vitra, artista plástica
Devido à confidencialidade exigida pela Fundação Bienal, Luana não pode dizer o que exatamente vai apresentar em São Paulo, mas não se furta a dar pistas sobre sua criação, recorrendo a um fato histórico para balizar o trabalho que levará ao evento.
“Os africanos que vieram escravizados para o Brasil trouxeram tecnologias muito desenvolvidas para trabalhar nas minas, porque já faziam isso nos países de origem. Uma dessas tecnologias consistia em levar um canário para dentro da mina. É um pássaro com pulmão muito sensível. Então, se tivesse algum problema no ar, o canário era o primeiro a sentir, um sinal para que os mineiros saíssem”, explica.
Ferro e ar: fontes de inspiração
O trabalho que ela está preparando parte dessa história e tem relação com o uso do ferro, o que se vincula ao fato de Luana ter crescido em uma cidade industrial. A artista destaca que a obra também parte da compreensão de que o ar é veículo para a liberdade.
“Na medicina chinesa, o metal é o elemento do pulmão, então sinto que a relação entre o metal e o ar é uma coisa muito íntima. Meu trabalho está todo ancorado nas dinâmicas minerais. Essa produção lida, sobretudo, com metais, e estou me movimentando no sentido de investigar a relação entre o ar e o metal”, diz.
O trabalho aborda os corpos que habitaram as minas e desenvolveram práticas a partir do desenvolvimento de tecnologias embaixo da terra, diz. Trata-se, assim, de algo que se relaciona não só com a cidade natal de Luana – onde seu corpo experimentou o ferro e a fuligem das fábricas –, mas com o estado.
“Diferentemente do resto do país, as pessoas negras em Minas Gerais desenvolveram sua sabedoria embaixo da terra, trabalhando na mineração. Isso tem a ver com o oculto, o silêncio, o segredo. Então, minha criação muitas vezes se volta para o desejo de pensar esse corpo e as tecnologias, sabedorias e mandingas que emergem daí”, ressalta.
O ferro está presente nas primeiras esculturas e instalações de Luana, faz parte da vida dela desde a infância. Seu raio de interesse tem se ampliado para todo o reino mineral. “Fui me aproximando do ferro, entendi que ele tem uma subjetividade que me ensina algumas coisas, mas outros minerais também ensinam”, diz.
São quase relações familiares, comenta. “É como se o ferro fosse meu avô, mas eu também precisasse também conhecer os filhos, os primos, os tios. Então fui me aproximando de outros metais, como o cobre e o chumbo, que estou tentando compreender melhor. Preciso de um tempo ainda para me aprofundar neles, antes de chamar outras matérias para a conversa”, explica.
Criar uma escultura passa por entender como “fala” a matéria de que ela é feita. “Se você não entende, a voz dessa matéria pode se voltar contra você. As coisas falam por si só, a gente só completa a ladainha”, afirma.
O rosário de Luana
A artista mineira revela outra instância da criação dela, relacionada com a ideia de reza. O paralelo com a religiosidade se dá pelo gesto da repetição, explica.
“É como se estivesse rezando um rosário. A repetição é que me leva, muitas vezes, a compreender quais milagres estou tentando alcançar dentro da obra. Existe uma dinâmica relacional muito grande quando estou trabalhando”, aponta.
Tais relações se estabelecem também pelo movimento. Nos últimos dois anos e meio, Luana tem experimentado a vida nômade. “Fico viajando o tempo inteiro, sem casa. Isso movimenta um jeito de perceber as coisas, com o encontro e com o desvio. Na medida em que vou me deslocando, parece que as ideias se organizam”, diz.
Dessa forma, observa, sua obra se faz a partir da viagem, da repetição e da devoção – no caso, aos minerais. “Me predisponho a escutar os metais. Todo o meu trabalho é um processo de escutar as coisas para entender uma maneira de falar junto com elas”, ressalta.
'Penso a dança como desenho, por isso o interesse em evidenciar os desenhos da dança. Quando a gente se movimenta, fica um rastro no espaço, que desaparece pouco depois. Sempre pensei maneiras de fixar por um tempo maior esse rastro, esse desenho'
Luana Vitra, artista plástica
Luana conta que está retomando a dança de forma mais sistemática, em diálogo com sua produção no campo das artes visuais. Ela desenvolve um trabalho com a bailarina Iara Izidoro. “A dança está em tudo. Meu modo de viver é muito regido pela dança. A própria escultura, abracei pensando na dança”, aponta.
O trabalho que desenvolve em parceria é uma proposta para vivenciar o ferro em barra, em pó e no próprio corpo. “É ferro sobre ferro sobre ferro”, diz. E observa que, a despeito do entendimento do material como algo rígido, o ferro se movimenta o tempo inteiro.
“A oxidação movimenta muito o corpo do ferro. Uma das coisas que mais me interessa dizer sobre o ferro é o processo de transmutação e também desobediência à forma dada pela indústria, porque a metamorfose é da natureza dele. O trabalho que desenvolvo com a Iara passa por aí”, diz.
Corpo e dança: desenhos no ar
A dança também se insere na obra ao criar desenhos no espaço. “Penso a dança como desenho, por isso o interesse em evidenciar os desenhos da dança. Quando a gente se movimenta, fica um rastro no espaço, que desaparece pouco depois. Sempre pensei maneiras de fixar por um tempo maior esse rastro, esse desenho. Associar o corpo a outras matérias é uma maneira de imprimir o gesto no espaço”, destaca.
Além do Pipa, Luana ganhou os prêmios Residência de Criação em Artes Visuais, de Teresina (PI), EDP Artes, do Instituto Tomie Ohtake, e Prince Claus Seed Award, em Amsterdã.
Desde 2017, ela participa de coletivas. Também apresentou quatro individuais em Belo Horizonte, São Paulo e Lisboa. Como vencedora do Pipa, Luana Vitra vai participar de exposição no Paço Imperial do Rio de Janeiro, de 9 de setembro a 12 de novembro.
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