A professora  Lucia Castello Branco

Professora da UFMG, Lucia Castello Branco fez palestra na abertura da mostra "Cartas aos escritores do meu ramo", na noite de quinta passada (20/7)

Marcos Vieira/EM/D.A.Press

'Os herdeiros (do espólio literário) que hoje estão à frente do Espaço Llansol (em Portugal) estão fazendo um apagamento de tudo sobre a relação (da escritora) com o Brasil. É um trabalho colonizador da obra'

Lucia Castelo Branco, escritora e professora



“Falta-me uma flor branca, para compor com rigor um ramo lilás.” Foi com esta frase que a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008) iniciou carta à escritora e professora da Faculdade de Letras da UFMG Lucia Castello Branco (e a seus alunos). Datada de 4 de julho de 1998, a missiva, ora manuscrita, ora datilografada, está na gênese da exposição “Cartas aos escritores do meu ramo”.
 
Em cartaz no Centro Cultural UFMG como parte da programação do 55º Festival de Inverno da universidade, a mostra abre as portas para o universo de uma escritora “supostamente hermética”, para usar as palavras da própria Lucia.
 
Reúne cartas, manuscritos e publicações de Llansol trocadas com a professora, que divide a curadoria com a poeta e artista plástica Angela Castelo Branco (o sobrenome das curadoras é o mesmo; o parentesco, nenhum).
 
Exposição exibe correspondência entre Lucia Castelo Branco e Maria Gabriela Llansol

Correspondência entre Lucia Castelo Branco e Maria Gabriela Llansol está exposta no Centro Cultural UFMG

Marcos Vieira/EM/D.A.Press
 

Fora do padrão

Lucia comenta que a exposição traz um lado B de Llansol. “O lado Brasil da história”, explica ela, que, ao realizar a mostra, “dentro de um festival cujo título é ‘Emergências e insurgências’”, pretende lançar luzes sobre a relação da portuguesa com o país. 
 
“Os herdeiros (do espólio literário) que hoje estão à frente do Espaço Llansol (em Portugal) estão fazendo um apagamento de tudo sobre a relação (da escritora) com o Brasil. É um trabalho colonizador da obra. Querem transformá-la em uma escritora portuguesa padrão”, afirma Lucia. E padrão era tudo o que Llansol não foi, na própria vida e, por consequência, em sua obra.

Um dos adjetivos mais relacionados a sua obra é “inclassificável”. Autora de não muitos, mas fidelíssimos leitores (que chamava legentes), ela rompeu com as normas da escrita. “É muito sofisticada, mas, ao mesmo tempo, muito simples. Seus afetos são muitos”, comenta Lucia. Para os brasileiros, a comparação mais fácil seria com Clarice Lispector ou Hilda Hilst. “Só que a obra dela não é popular, demanda tempo. Ela propõe outra perspectiva de leitura.”
 
Nascida em Lisboa, Llansol viveu em Portugal até 1965. A ditadura salazarista a levou, ao lado do marido, Augusto Joaquim, para o autoexílio na Bélgica, onde o casal viveu até 1984. Escritora prolífica, só havia publicado um livro no país natal, “Os pregos da erva” (contos, 1962). Sua produção, escrita “na mais absoluta solidão”, como descreve Lucia, começou a ser editada a partir do exílio, e intensificou-se da década de 1980 em diante. 
 
Foto mostra detalhe de carta trocada entre Lucia Castelo Branco e Gabriela LLansol

Cartas expostas no Centro Cultural UFMG podem ser lidas pelo público

Marcos Vieira/EM/D.A.Press

 
A história de Llansol com Lucia e, por consequência, com o Brasil, tem início nos anos 1990. E assim como sua escrita, carrega lances absolutamente poéticos. Em 1992, Lucia passava uma temporada na capital portuguesa, onde realizava um pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa (UNL).
 
Encontrou-se com uma amiga, a escritora Teolinda Gersão, que fez um comentário sobre sua tese de doutorado, “A traição de Penélope: Uma leitura da escrita feminina da memória” (UFMG, 1990). “Você fez uma tese sobre a Maria Gabriela”, foi o que Lucia ouviu da colega portuguesa. Só que ela nunca havia lido nada de Llansol. Ficou curiosíssima e comprou o livro “Um beijo dado mais tarde” (1990, que havia sido premiado pela Sociedade Portuguesa de Escritores pouco antes).
 
“Fiquei louca, tinha que conhecer aquela pessoa, já que o que ela escreveu era muito especial”, Lucia relembra o primeiro impacto. Os próprios pares não chegavam muito perto de Llansol. Muito avessa a tudo e a todos, não se deixava fotografar, filmar e se recusava a dar entrevistas. Foi a crítica Silvina Rodrigues Lopes quem passou o telefone de Llansol a Lucia. 
 
“Ela tinha me dado o telefone do Augusto. Liguei para ele, que perguntou o que eu queria com a mulher”, conta Lucia. “Só quero conhecê-la”, ela disse. “Mas a senhora é jornalista?”, perguntou o marido. Quando ela informou que era professora, ele a autorizou a fazer a ligação na manhã seguinte. 

"Ela me atendeu com a melhor voz do mundo, eu falei que era professora, contei da tese, que tinha encontrado coisas na obra dela.” Llansol finalmente aceitou o encontro, que seria realizado dali a um mês, no café de nome Ramisco, na Praia das Maçãs, em Colares, Azenhas do Mar, lugar próximo a Sintra. A poesia estava até mesmo no nome do lugar onde seria o primeiro encontro, conforme Lucia relembra. 
 
Antes de desligar, Llansol perguntou a ela quantos livros havia lido. A brasileira afirmou que só “Um beijo dado mais tarde”. Pois a autora enviou-lhe mais quatro títulos, que ela leu nas quatro semanas até o encontro. Chegou a sugerir um telefonema uma semana antes, para reforçar a data. “Para mim está definitivamente marcado”, respondeu Llansol.
 
Lucia foi antes até a praia para descobrir se o tal café Ramisco existia mesmo. Confirmado o local, no dia combinado ela acabou se atrasando. “Quando cheguei, vi uma pessoa atravessando a rua. Como ela não se deixava fotografar, não sabia como era. Parei o carro, e ela não virou o rosto. Disse: ‘Você é a Lucia. Tive uma antevisão de que era você.”
 
Escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol

Obra da portuguesa Maria Gabriela Llansol é comparada à de Clarice Lispector

Alvaro Rosendo/divulgação

'(Maria Gabriela Llansol) É muito sofisticada, mas, ao mesmo tempo, muito simples. Seus afetos são muitos'

Lucia Castelo Branco, escritora e professora

Quatro horas na praça

A primeira conversa, numa praça, durou quatro horas. Lucia tinha levado um gravador de fita cassete, mas Llansol não autorizou a gravação. “Vamos devagar, senão as palavras voam de nossas bocas.” A conversa, intensa, deixou a brasileira exausta e extasiada.
 
Na despedida, Llansol disse que iria pensar se daria a entrevista. Telefonou para ela algum tempo mais tarde e confirmou: “Agora estou pronta. Pode levar o gravador”. A entrevista foi num lugar ainda mais longe, Praia Grande. “E desta vez eu já tinha lido os 11 livros dela.”
 
 
No retorno ao Brasil, Lucia continuou a se relacionar com Llansol por meio de cartas - foram mais de 30. A portuguesa também se correspondeu com alguns alunos de Lucia. Além disso, a professora levou a obra da portuguesa, que ninguém conhecia no Brasil, para suas aulas na UFMG. “Foram mais de 20 trabalhos em menos de 20 anos, entre dissertações e teses. É uma das autoras mais estudadas na pós-graduação e hoje dou cursos sobre ela no Brasil todo, do Amapá ao Rio Grande do Sul.”
 
Para Lucia, Llansol chegou a prever essa relação. Recentemente, um aluno chamou a atenção dela para um trecho do livro “Amigo e amiga. Curso de silêncio de 2004”, obra de Llansol que Lucia já se cansou de ler. O trecho diz: “Por que me veio a ideia súbita de marcar neste Curso 25 de Julho de 2023, quando certamente já não viverei? Deve ser um sentimento de permanência antecipado...”
 
A data da exposição “Carta aos escritores do meu ramo” não foi marcada por Lucia, mas pela UFMG. E na próxima terça-feira, 25 de julho de 2023, Angela Castelo Branco, cocuradora da mostra, ministrará a oficina (A) Bordar a escrita. Os trabalhos resultantes da oficina, que vai até o dia seguinte, serão exibidos na própria exposição.
 
Além disso, a chamada “Carta ao legente”, a missiva que fala do “ramo lilás”, foi escrita por Llansol em um 4 de julho, também a data de aniversário de Lucia. A portuguesa nunca soube o dia de nascimento de sua amiga brasileira.
 

“CARTAS AOS ESCRITORES DO MEU RAMO. DE MARIA GABRIELA LLANSOL”

Exposição no Centro Cultural UFMG, Avenida Santos Dumont, 174, Centro. Visitação de terça a sexta, das 9h às 20h, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h às 17h. Amanhã (23/7) e segunda (24/7), das 9h às 12h, a poeta e arte educadora Angela Castelo Branco fará uma residência artística aberta ao público. A mostra fica em cartaz até 20/8. Entrada franca.
 

FILMES NO YOUTUBE

Além de ter escrito livros sobre Maria Gabriela Llansol, Lucia Castello Branco também codirigiu dois filmes, um longa e um curta, sobre a escritora portuguesa: o documentário “Redemoinho poema” (2008) e o curta “Proposição 24” (2009), ambos em parceria com Gabriel Sanna. Os títulos estão disponíveis no YouTube