Claudio David se considerava um “devoto” do heavy metal já em sua adolescência. O som dos LPs dos britânicos do Iron Maiden, Judas Priest e Black Sabbath que emanava de sua vitrola em casa e as primeiras composições que escrevia para um ainda embrionário Overdose atestavam essa condição.



Mas mesmo com certo conhecimento daquele segmento musical, o então jovem de 18 anos viria a ficar em “estado de choque”, como ele mesmo enfatiza, ao conferir pela primeira vez “Kill ‘em all”, do Metallica, e “Show no mercy”, do Slayer, as estreias fonográficas das duas bandas norte-americanas. Lançados em 1983 e considerados pedras fundamentais do thrash metal, os dois álbuns influenciariam diretamente a cena mineira do metal naquela época e ao longo desses 40 anos.

“Meu irmão e eu éramos pessoas que compravam discos importados. Não tinha importadora em BH, então tínhamos que pegar os LPs no Rio e na Woodstock (loja em São Paulo)”, relembra Claudio. “Caras tipo Wagner (Lamounier, que viria a integrar Sepultura e Sarcófago), Max (Cavalera, um dos fundadores do Sepultura) e uma galera do metal de BH iam lá em casa ouvir esses discos. Nem tinha Sepultura nessa época. E todo mundo ficou chocado com aquela nova linguagem”, completa o guitarrista de 57 anos, do Overdose, BH2o e EletriKa.

A abordagem musical de “Kill ‘em all”, que completa exatas quatro décadas nesta terça-feira (25/7), e “Show no mercy", aniversariante de dezembro deste ano, trazia referências inglesas, vide o Judas Priest e nomes da New Wave of British Heavy Metal, como Maiden e Saxon, e a crueza do punk, de ícones do calibre de Ramones e Misfits. Porém, os dois álbuns deram um passo além, como enfatiza Vladimir Korg, de 59 anos, vocalista do The Mist e ex-Chakal, ambas as bandas munidas de componentes de thrash, dentre outros elementos, a partir daquela década.





“Acho que o Metallica pensou assim: ‘Podemos começar a palhetar na velocidade da luz’. Somado com o headbanging (‘bater cabeça’ acompanhando a sonoridade de músicas de metal), que era quase como inseparável aos riffs, acho que nasceu o thrash metal naquele disco”, destaca. Porém, apesar de atestar a importância de “Kill” como um dos progenitores do thrash, Korg se diz mais inclinado à obra do Slayer. “O ‘Show no mercy’ era e ainda é um disco ‘mau’. Mesmo você não sabendo inglês, sabe que aqueles caras não estão falando sobre coisas do dia a dia. O Metallica falava sobre a postura e a estética do thrash, sobre tocar rápido e beber, enquanto o Slayer queria apenas levar todo mundo para o inferno, e é claro que, por isso, o Slayer me influenciou mais.”


Assim como outros grupos mineiros oitentistas, como Sepultura e Mutilator, o Overdose também beberia daquela fonte. "Esses discos influenciaram minha carreira e serviram de inspiração para riffs e composições. No ‘Século XX’ (split com ‘Bestial devastation’, do Sepultura, de 1985), a gente traz a ‘Anjos do Apocalipse, com influência de Mercyful Fate, Maiden e Judas, mas também a faixa-título e ‘Filhos do Mundo’, com uma pegada mais Slayer e um pouco de Metallica. Mais para frente, o Overdose teria uma fase mais melódica, mais heavy tradicional e prog e depois voltaria a ‘pesar mais’ com o ‘Circus of death’ (1992), com influências desses dois discos. A faixa ‘Good day to die’ é bem baseada no ‘Show no mercy’, e a ‘Violence’ tem um quê de Metallica”, declara Claudio.



Crítico musical e apresentador do programa Alto-Falante, da Rede Minas, Terence Machado evidencia o quanto Metallica e Slayer, por meio de seus debutes, “criaram caminhos, mostraram muitas novas possibilidades a todos os outros artistas que seguiriam por esses caminhos, musical e mercadologicamente falando”. “Foram uma espécie de Beatles nesse segmento”, pontua. “O que de fato aconteceu é que esses dois grupos extrapolaram muito o que estávamos preparados a digerir em termos de som pesado”, completa.





Além do som, os dois clássicos – cada um deles composto de dez faixas – serviram de espelho em outras frentes. “Influenciaram muito na atitude, na estética e em frases do tipo: ‘Fodam-se! Morte aos cuzões!’. BH era o lugar que tinha mais boys e crentes por metro quadrado, e esse tipo de atitude mudou muita coisa por aqui. Durante muito tempo, a estética grotesca do metal fez muita gente atravessar a rua para não cruzar com a gente”, recorda Korg.


Gerações


O impacto de “Show no mercy’ e “Kill ‘em all” em terras mineiras não se restringiu àquela década e atravessou gerações. Nos anos posteriores, vários músicos e grupos de BH e outras cidades pediriam “benção” a James Hetfield (vocalista e guitarrista do Metallica) e a Kerry King (guitarrista do Slayer) para cunharem suas próprias obras. É o caso de Alan Wallace, de 50 anos, guitarrista do Eminence, banda nascida em 1995 e que traz um som pesado e cheio de grove, com nuances mais modernas. “Aprendi muito com ‘Show no mercy’ e ‘Kill ‘em all’, principalmente a técnica da palhetada para baixo. James Hetfield, Jeff Hanneman (guitarrista do Slayer; 1964-2013) e Kerry King são muito criativos. Os riffs deles são agressivos e rápidos. Acredito que não somente o metal mineiro como o metal mundial foram influenciados pelos álbuns do Slayer e Metallica”, diz.

Fernando Lima, vocalista do grupo de death/thrash Drowned, engendrado em 1998, também reconhece o valor dos “pais do thrash” na concepção de sua arte. “Direta ou indiretamente, influenciaram o que fazemos. Os dois álbuns são bem crus, empolgantes e com sinceridade no som. E são muito bem tocados também, muito bem executados, e isso tem a ver com o Drowned”, comenta para, em seguida, recordar da primeira vez em que os ouviu. “Foi na casa de um colega de escola. Achei bem porrada e agressivo. Gostei mais do ‘Kill’ naquele momento. Gostei tanto que ganhei o disco, e ele quase furou de tanto que escutei.”





Baixistas


Daniel Tulher, de 28 anos, vê na figura de Tom Araya, vocalista e baixista do Slayer, o exemplo-mor para desempenhar os mesmos papeis à frente dos thrashers do Payback, surgido no início da última década. “Sempre me inspirei em frontman que toca, canta e com grande performance. O Tom é animal. Não tem tanto carisma para falar com as pessoas, como o James, mas possui um vocal característico também. São dois monstros que me influenciaram bastante.”

Por sua vez, a baixista do grupo de death metal Divine Death e ex-integrante das bandas Chuck, Insurrection e Vector Underfate, Mallu Andrade, ressalta o quanto Cliff Burton (1962-1986), baixista dos três primeiros álbuns do Metallica (“Kill ‘em all”, “Ride the lightning”, de 1984, e “Master of Puppets”, de 1986), representou para ela. “Era um mestre extraordinário, talentoso, muito técnico, um cara que era só elogios. Influenciou muitas pessoas, musicistas, fãs, teve uma contribuição imensa no metal. Acredito que influencia até hoje, e sou uma dessas pessoas. ‘Anesthesia’ (quinta faixa de ‘Kill ‘em all’, instrumental com distorção no baixo) é a grande obra dele. Era uma conversa entre ele e o instrumento. O melhor baixista de todos os tempos.”


Bateria


Os bateristas Dave Lombardo, do Slayer, e Lars Ulrich, do Metallica, também são exaltados por musicistas das Gerais, tanto pelo trabalho efetuado nas estreias de suas respectivas bandas como no decorrer de suas carreiras. “Me inspiram bastante na forma de tocar bateria, principalmente em aprender a técnica do skank beat (estilo de tocar presente no thrash), de forma rápida e definida. O Dave é uma das minhas maiores influências para tocar thrash, e o Lars é sempre criativo, com suas viradas matadoras e grooves marcantes”, enfatiza Lu Diniz, de 34 anos, da recém-formada banda de thrash punk Subversa e ex-integrante de Last Conscious e The Damnnation.





Quem endosso o coro é o batera do grupo de doom/death Inventtor, Alan Souza, de 33 anos. “O Lars, nos quatro primeiros discos do Metallica, foi um puta baterista, principalmente no ‘...And justice for all’ (1988), com muito ritmo e tocando muito pesado. Nos meus primeiros contatos tocando bateria, eu queria que soasse como a bateria do Lars. Eu ainda não tinha noção que tinha ali uma produção. Do Slayer, tocava ‘Die by the sword’ (terceira faixa de ‘Show no mercy’) com 12 ou 13 anos de idade. Foram discos essenciais para bateristas também”, conta o dono das baquetas da banda formada em 2008.

Tecladista


Mesmo que os primeiros registros de Slayer e Metallica não tenham sequer uma nota de teclado, um tecladista pode ser influenciado por eles? Sim, pode! Mesmo que não diretamente. Guilherme Alvarenga, de 35 anos, do Paradise in Flames e D.A.M, ambas bandas que reúnem death metal e outros elementos em sua essência, explica. “A inspiração desses discos, por eu ter tido menos contato com suas raízes, foram mais no nível de querer uma sonoridade mais ‘speed’. Eu ouvia Blind Guardian (banda alemã de power metal) e percebia que eram as mesmas escalas, a mesma ideia na bateria. Uma influência indireta. Como tecladista, o teclado faz coisas um pouco diferentes do que acontece na guitarra e no baixo. Mas tem uma música do Paradise in Flames, que se chama ‘Blurred faith’, com um som de piano que é meio thrash metal, umas ‘palhetadas’, uma técnica de três dedos, uns arpejos meio cromáticos, com um pouco mais dessa vibe. Não enxergo uma influência direta, é mais a inspiração do momento.”
 

(foto: Reprodução)
 
 
“KILL ‘EM ALL”
Metallica
Megaforce Records (10 faixas)
Gravado em maio e lançado 
em julho de 1983
 

(foto: Reprodução)
 
 
“SHOW NO MERCY”
Slayer
Metal Blade Records (10 faixas)
Gravado em novembro e lançado 
em dezembro de 1983 
 


Faixas são clássicos de setlists  

 
Gravado em maio de 1983 e lançado em 25 de julho daquele ano, “Kill ‘em all” emplaca várias de suas músicas nos setlists da banda até hoje. No único show até hoje do Metallica em BH, em 12 de maio de 2022, no Mineirão, James Hetfield mencionou o fato de a banda estar na “terra do Sepultura” e por isso o público ser “tão louco”, antes de executar “Seek and destroy”, clássico do primeiro álbum. 




Quarenta anos depois, essas faixas estão no repertório da turnê de “72 seasons” (2023). A obra do Slayer, que fez seu último show em 30 de novembro de 2019, continua sendo revisitada por artistas de vários cantos do mundo.

 
“Acho muito interessante quando a banda põe um ponto final na carreira, ainda entregando uma performance incrível no palco e sendo cultuada por milhares de fãs. E é louvável a banda entender que era melhor parar ali em vez de descer ladeira e não terminar de forma não tão gloriosa”, diz o crítico Terence Machado. 
 
"Por outro lado, o Metallica mostra ter gás. Lançou neste ano um discaço. Virou uma banda de thrash metal de arena, mas extrapolando a barreira do thrash. Não tem um caminho melhor ou pior. O pior seria uma banda não entender o início de uma possível decadência e mesmo assim continuar. Não são os casos de Metallica e Slayer”, acrescenta.


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