Cena do documentário 'Máquina do desejo'

O documentário em cartaz em BH foi concluído em 2021 e teve exibição naquele ano para Zé Celso, morto no último dia 6, vítima de um incêndio em seu apartamento, em São Paulo

Descoloniza Filmes/divulgação


Por trás da figura libertária e psicodélica de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, morto no último dia 6 de julho, vítima de um incêndio em seu apartamento, havia um intelectual. Roberto Machado, um dos principais tradutores de Nietzsche no Brasil, inclusive, costumava dizer que Zé Celso ainda seria reconhecido pelos brasileiros como um dos maiores pensadores contemporâneos.
 
"Muita coisa que ele escreveu, desde as direções dos atores até os e-mails, tudo trazia um fundamento filosófico e teórico muito grande", afirma o cineasta Lucas Weglinski. "Ele passava de seis a oito horas por dia se alimentando de tudo o que estava acontecendo no mundo. Lia diversos livros por semana. Estava ligado em tudo", acrescenta.
 
Em parceria com o também cineasta Joaquim Castro, Weglinski dirigiu o documentário "Máquina do desejo", sobre a história do Teatro Oficina e de Zé Celso à frente da companhia. O filme está em cartaz em Belo Horizonte, no UNA Cine Belas Artes e no Centro Cultural Unimed-BH Minas. 
 
A dupla de diretores tem uma longa história com o Oficina, que começa em 2007, quando a companhia montou "Os sertões", em Canudos, na Bahia. Lucas entrou para a trupe como ator e depois acabou por se tornar produtor-executivo. Joaquim, por sua vez, foi chamado para ser cinegrafista - uma das características do Teatro Oficina era registrar em audiovisual tudo o que era feito, desde apresentações de peças até os ensaios.
 

'O nosso recorte do filme, dentro desse oceano de imagens que é o acervo do Oficina, foi político. Porque o Teatro Oficina é político. A gente tinha vontade de fazer um filme artístico, mas também popular, no sentido pedagógico. Porque a gente acredita que a cultura e a política, quando se encontram, têm um poder de transformação social muito grande'

Joaquim Castro, codiretor do documentário

 

Nenhum desses registros estava digitalizado, contudo. Sequer foram armazenados em condições ideais de cuidado. É daí, portanto, que nasceu a ideia do filme, no intuito de cuidar do acervo audiovisual do Teatro Oficina - todo o longa foi feito com as imagens do acervo, a partir do trabalho de pesquisa de Eloa Chouzal.
 
"A nossa ideia era contar a história do Teatro Oficina, dessa companhia que é homérica, chocante. Até mesmo para mostrar para os próprios atores coisas que ninguém sabia", diz Joaquim.
 
 
 
Estão no filme cenas de espetáculos marcantes do repertório do Oficina, como "Andorra", "O rei da vela", "Cacilda!" e o já citado "Os sertões", entre outros. Há também registros raros, como as participações de Eugenio Kusnet (1898-1975) em ensaios do grupo. O ucraniano, que se tornou o principal divulgador do método Stanislavski no Brasil, fez parte do Teatro Oficina nos primórdios da companhia fundada em 1958. 
 
Em certas ocasiões, inclusive, ele fazia oposição a Zé Celso em questões relacionadas ao método teatral. Influenciado por Stanislavski, Kusnet propunha um processo imersivo dos atores nos personagens, a fim de trazer à tona dilemas internos do ser humano. 
 
Já Zé Celso à época era influenciado por filmes americanos e admirava o modo como Marlon Brando e James Dean interpretavam seus personagens na telona. "Era o que a gente tinha na época", diz o encenador em um trecho do documentário.
 
ator do grupo teatro oficina com os braços abertos

Os diretores do filme procuraram fazer um paralelo entre a história do Teatro Oficina, fundado em 1958, e os fatos da política brasileira, ao longo do tempo

Descoloniza Filmes/divulgação
 

Em 1963, quando o Oficina estreou "Os pequenos burgueses", de Gorki, Kusnet não poderia dar um prognóstico mais equivocado. Afirmou, na época, que o texto já estava ultrapassado e, justamente por isso, não faria sucesso.
 
A montagem, contudo, fez enorme sucesso. Só saiu de cartaz no ano seguinte, porque os militares censuraram o espetáculo.
 
Com a ditadura militar (1964-1985), o Oficina andou numa corda bamba. Desafiava o regime com peças recheadas de críticas sociais e cenas de nudez, o que provocava a ira dos militares. 
 
A resposta mais violenta do governo ocorreu em 1968, durante a montagem de "Roda viva", quando integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) disfarçados de civis invadiram o teatro, bateram nos atores e queimaram os seios das atrizes com ponta de cigarro.
 
 
O caráter político de "Máquina do desejo" é claro. Toda a história do Oficina é contada em paralelo com a política brasileira do momento, concentrando-se mais no período do regime militar.
 
"O nosso recorte do filme, dentro desse oceano de imagens que é o acervo do Oficina, foi político. Porque o Teatro Oficina é político. A gente tinha vontade de fazer um filme artístico, mas também popular, no sentido pedagógico. Porque a gente acredita que a cultura e a política, quando se encontram, têm um poder de transformação social muito grande", diz Joaquim.
 
O que também influenciou os diretores a adotar o tom político para o filme foi o momento em que "Máquina do desejo" foi produzido. "Coincidiu de fazermos o filme num momento político muito forte. Dilma tinha acabado de sofrer um golpe, o Ministério da Cultura deixou de existir, o Instituto de Preservação Arquitetônica e Cultural 'destombou' o Teatro Oficina. Então, de repente, havia um incêndio para ser apagado ali", comenta Lucas.
 
"Sem contar que, durante a montagem do filme, a Cinemateca pegou fogo, o Guilherme Vaz (responsável pela trilha sonora) morreu, as instituições de pesquisa foram fechadas e teve a pandemia. Foi um travamento geral. Além disso, o Ministério da Cultura, que virou uma secretaria, estava sendo dirigido por um nazista", complementa Joaquim.

Zé Celso versus Silvio Santos

O filme, no entanto, passa também por momentos de leveza, mesmo quando se trata de política ou da luta que Zé Celso travou por 40 anos com Silvio Santos, envolvendo o terreno entorno do Teatro Oficina, de propriedade do apresentador e empresário. Silvio Santos tem a intenção de construir ali um megaempreendimento imobiliário. 
 
A obra prejudicaria a proposta de Zé Celso de transformar o espaço num parque público - o projeto do parque chegou a ser vetado pela Prefeitura de São Paulo, mas, recentemente, alguns deputados estaduais voltaram a discutir a possibilidade de construção da área verde, que passaria a se chamar Parque Zé Celso do Rio do Bexiga.
 
Silvio Santos, Zé Celso, Eduardo Suplicy e o então prefeito de São Paulo, João Dória, se reuniram para discutir a criação do parque em volta do Teatro Oficina

Silvio Santos, Zé Celso, Eduardo Suplicy e o então prefeito de São Paulo, João Dória, se reuniram para discutir a criação do parque em volta do Teatro Oficina

Reprodução
 

Uma das cenas mais hilárias do longa, contudo, é o registro que Zé Celso fez da trupe indo ao gabinete do então deputado estadual Paulo Maluf, na década de 1980, no intuito de cobrar a criação de políticas culturais. Na ocasião, o dramaturgo e diretor conseguiu fazer o político contracenar com Elke Maravilha (1945-2016) um trecho da cena de "As bacantes", de Eurípedes. 
 
Sem o menor traquejo para a dramaturgia, Maluf interpretava um Penteu discreto (por mais paradoxal que seja dizer que Maluf seja discreto), com a sua voz já caricata.
 
"O filme e a história do Teatro Oficina nos mostram como vencer as barreiras que temos no nosso caminho. O Zé, por exemplo, foi torturado, foi exilado. Mas nunca desistiu e nos deixou esse legado", comenta Joaquim.
 
Quando ficou pronto, em 2021, "Máquina do desejo" foi visto por Zé Celso, em sessão especial em uma sala de cinema de São Paulo. "Foi a primeira saída dele depois da pandemia. Ele adorou e disse que ver o filme o fez relembrar que a principal razão do Oficina existir é o povo. Foi o maior prêmio que a gente poderia receber", diz Lucas.

“MÁQUINA DO DESEJO”

(Brasil, 2021, 119min.). Direção: Joaquim Castro e Lucas Weglinski. Documentário sobre a história do Teatro Oficina. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes, às 16h30, e no Centro Cultural Unimed BH-Minas, às 20h.