João Cezar de Castro Rocha, professor titular de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lança nesta quinta (27/7), em Belo Horizonte, o livro “Bolsonarismo – Da guerra cultural ao terrorismo doméstico”, primeiro volume de uma trilogia que se completa com “Retórica do ódio: A pedagogia da desumanização do outro” e “Dissonância cognitiva coletiva: Midiosfera extremista e metaverso”, previstos para 2024 e 2025, respectivamente.
O lançamento ocorrerá após a palestra “Kasparov e a máquina”, que Castro Rocha oferece no ciclo “Mutações-Corpo-Espírito-Mundo: Passagens”. Nesse primeiro volume, o autor destrincha o mecanismo interno do bolsonarismo, a sua mentalidade e a sua transformação, temas que aborda na entrevista a seguir.
Qual é o conteúdo da guerra cultural a que se refere o seu novo livro, “Bolsonarismo – Da guerra cultural ao terrorismo doméstico?”
A extrema direita veio para ficar no Brasil. E essa radicalização se sustenta na guerra cultural que, numa definição bem sintética, é uma máquina de produzir narrativa polarizadora, com base em fake news e teorias conspiratórias. A narrativa deve ser polarizadora porque, além de produzir engajamento e monetizar as mídias digitais, desta forma ela propõe um mundo binário e permite a criação, em série, de inimigos imaginários. E uma vez que o inimigo imaginário é criado, é possível estimular a fábrica de ódio. Que tem uma linguagem, que é a retórica do ódio. Essa estratégia da extrema direita versa no mundo inteiro. O ódio, e a sua retórica, é uma resposta ao sentimento humano mais difundido, que é o medo.
Qual é o papel da pauta de costumes na produção da desinformação e dessa retórica do ódio?
A extrema direita usa essa pauta com grande habilidade: trabalha com a ideia da falta de costumes. E o que seria a falta de costumes? A ideia de que há uma campanha para destruir a família: a sua família. A ideia de que há uma campanha para sexualizar as crianças: os seus filhos. De que há uma campanha para tornar os homens transexuais: os seus filhos. De que há na escola, onde o seu filho passa, até os 18 anos, a maior parte da vida dele, um processo de doutrinação e de lavagem cerebral por professores comunistas. A extrema direita usa, assim, a falta de costumes como um conteúdo que, pelo seu caráter imediato e o mais próximo possível das pessoas, produz o medo: “Será que vai acontecer comigo? Será que vai acontecer com a minha família?” Esse medo se transforma em ódio. Mas o ódio nunca é um sentimento abstrato. Você não odeia em abstrato, você odeia inimigos específicos. Então, a falta dos costumes gera inimigos imaginários.
Em seu novo livro, o senhor afirma que ao produzir um ecossistema de desinformação, a extrema direita leva pessoas a uma espécie de delírio. Poderia esclarecer o conceito de dissonância cognitiva, muito empregado em sua produção científica?
Nenhum ser humano possui uma relação perfeita entre as coisas nas quais acredita e a maneira como se comporta. A dissonância cognitiva é a diferença entre a crença e o comportamento. Quantas vezes nós sabemos que o comportamento A ou B não é o ideal para a nossa saúde? O que caracteriza o humano é precisamente essa diferença, essa defasagem entre crença e comportamento. A extrema direita une as duas características que são essenciais à condição humana: um, a narrativa; e dois, a dissonância cognitiva. Sobre a narrativa, não existe grupo humano contatado, até hoje, que não tenha a narrativa como um dos eixos da sua articulação social. Narrar o mundo, narrar aos outros é o que nos tornou humanos. A extrema direita usa a narrativa para gerar um fenômeno inédito na história da humanidade, propiciado pelas redes sociais: a produção de dissonância cognitiva, não mais no plano individual, tratado pelo psicólogo social norte-americano Leon Festinger. A extrema direita produz, de maneira deliberada, um ecossistema de desinformação cuja finalidade é gerar um delírio coletivo, uma dissonância cognitiva coletiva, que pode levar milhões de pessoas a verem um homem, que já está no terceiro casamento, sempre seguindo o mesmo modelo: a esposa envelhece, ele a troca por uma 20 anos mais jovem. Agora, quando a dissonância cognitiva é muito acentuada, ela produz um desconforto psicológico. Então, diz Leon Festinger, é próprio da condição humana diminuir esse desconforto. O que você faz quando você tem um desconforto psicológico? Assim como quando temos fome, comemos, quando a dissonância cognitiva nos perturba, paramos de consumir informações contrárias ao que acreditamos, recusamos as fontes de informação ou informações que contrariam a nossa crença. O que aconteceu com o bolsonarismo foi a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo. As pessoas que voluntariamente se submetem à midiosfera extremista somente se informam na midiosfera extremista. Não há possibilidade objetiva de se demonstrar que há erro nessas informações, porque todas as outras fontes de informação foram desqualificadas e vedadas.
Como a religião é usada para produzir a dissonância cognitiva?
Essa é uma questão fundamental. A extrema direita transnacional – que é toda neopentecostal ou cristã ou católica conservadoríssima – realizou um movimento teológico que ajuda a entender o apoio a Bolsonaro e o apoio a Donald Trump. O movimento teológico foi a transferência do Novo Testamento para privilegiar o Velho Testamento. E no privilégio do Velho Testamento, duas figuras são enaltecidas: Davi e Salomão. Porque foram reis, senhores de exército, conquistadores. Davi não é o Davi que enfrenta o Golias e o derrota, simbolizando a astúcia contra a força bruta. O Davi que interessa à extrema direita transnacional é o Davi rei, o senhor de exércitos, rei de Israel. É um Davi que não somente cobiçou a mulher do outro, a violentou, a engravidou e mandou o marido Urias para a guerra, para morrer, de modo que Betsabé pudesse ser sua concubina. Esse é o Davi. Percebeu então o que estou dizendo? O primeiro movimento teológico: abandonar o Novo Testamento ou deixar a figura de Cristo de lado. Porque a figura de Cristo não autoriza o projeto de poder. É o oposto. Por isso a extrema direita atraca-se ao Velho Testamento. Em termos técnicos, a guerra cultural da extrema direita transnacional é satânica. René Girard, pensador francês muito importante para compreender o momento contemporâneo, chamou a atenção para o fato de que a palavra satã tem etimologia que vem do persa. Satã é o acusador. Por isso também Jesus, nos evangelhos, é dito paracleto, o advogado de defesa, na famosa cena de lapidação da mulher adúltera. Jesus se apresenta e defende a mulher. Diz: “Aquele que não tiver pecado que jogue a primeira pedra”. O neopentecostalismo não quer jogar a primeira pedra, quer jogar a última, que é aquela que mata. Porque o princípio todo é o Velho Testamento. E é o rei Davi.
Em que momento a guerra cultural se transforma de narrativa em comportamento, um estilo de vida, um ethos?
Imagina um bolsonarista que passou dois anos, três anos da sua vida disputando narrativas, como naquele famoso vídeo em que as pessoas diziam: “Sou robô do Bolsonaro... Sou robô do Bolsonaro...”. Mas na pandemia há um impasse. Porque não é possível transformar a morte num meme. Até porque, progressivamente, no Brasil e nos Estados Unidos, as mortes deixaram de ser uma estatística, que podia ser disputada narrativamente: passaram a ter rosto, pois era a morte do seu irmão atleta, do seu pai, da sua mãe. Agora, com tanta morte ou rosto próximo, as falas do Bolsonaro produzem asco. A minha hipótese é que, nestse momento de crise do próprio bolsonarismo, a solução que desponta é que a guerra cultural progressivamente se transforma numa forma de vida, num estilo de vida. Então, agora você toma kit cloroquina como café da manhã e doses cavalares de Ivermectina; você começa a aglomerar ou usar, de maneira deliberada, máscara no queixo. Nesse momento, o bolsonarismo passa por uma metamorfose. Agora, do que se trata, de fato, é de um ethos religioso. E recorde-se que foi a partir da pandemia que a radicalização das igrejas evangélicas teve lugar.
A sua análise aponta para a evolução da guerra cultural para um estilo de vida. Em que momento ela alcança também o terrorismo doméstico?
Hoje, no Brasil, não se trata mais de guerra cultural, como nós pensávamos antigamente. É bem importante que isso fique claro. Porque, uma vez que a guerra cultural se transformou em forma de vida, tem o ethos religioso. Então, a derrota eleitoral não é mais aceitável, está fora de questão: é inconcebível que o mito, o ungido, tenha perdido a eleição. Agora, se a derrota não é possível, se agora o ethos é religioso, não existe mais adversário político: o que existe é o herege ou o ímpio, que não reconhece o caráter ungido do seu favorecido. O terrorismo doméstico já está em germe. E faço a relação no livro: de 30 de outubro a 8 de janeiro, percebe-se a escalada descontrolada da violência. É muito chocante. Nós poderíamos ter tido no Brasil, no dia 24 de dezembro, um dos maiores atentados terroristas da história, se aquele caminhão de combustível explodisse no Aeroporto de Brasília. Guerra cultural, destruir a imprensa, violência física, eliminação do outro, terrorismo doméstico. Um número não pequeno de vídeos começou a circular na internet com diversos episódios de violência, inclusive nos bloqueios das estradas. O 8 de janeiro não surgiu do nada: é o resultado dessa transformação interna da guerra cultural para espírito religioso, do espírito religioso para terrorismo doméstico. Esse gênio saiu da garrafa e não vai voltar, não. Então, quando o ethos religioso passa a dominar, o Bolsonaro se torna um Davi.
Além da religião, como a classe social importa nesse processo de identificação com a retórica bolsonarista?
Não se entende o bolsonarismo no Brasil se não se entender que, em certa medida, o bolsonarismo é o que há de mais brasileiro, isto é, permitiu o retorno do recalcado, de boa parte da formação social brasileira, uma tentativa de retornar ao movimento brasileiro prévio à Constituição de 88; uma tentativa de afirmação do direito do mais forte, da incapacidade de respeitar leis, da imposição do jeitinho... Nesse sentido, o bolsonarismo é muito mais profundo do que Bolsonaro. Bolsonaro foi apenas um porta-voz de uma formação social que é muito anterior a ele. Por isso também a extrema direita veio para ficar. E a extrema direita ficará tanto mais quanto mais seja o declínio da figura física de Bolsonaro. Porque sairá o Bolsonaro, mas o bolsonarismo fica, e então, essa questão da classe social é, de fato, da formação social brasileira: profundamente desigual, profundamente hierárquica, profundamente inamovível na sua elite. A sociedade muda, mas a elite no poder é a mesma. Nesse sentido, o bolsonarismo é profundamente brasileiro; refere-se à própria formação social brasileira.
“BOLSONARISMO: DA GUERRA CULTURAL AO TERRORISMO DOMÉSTICO – RETÓRICA DO ÓDIO E DISSONÂNCIA COGNITIVA COLETIVA”
• João Cezar de Castro Rocha
• Editora Autêntica (192 págs.)
• R$ 54,90 (livro); R$ 38,90 (e-book)
• Lançamento nesta quinta-feira (27/7), no Teatro José Aparecido de Oliveira, na Biblioteca Pública Estadual (Praça da Liberdade, 21), após palestra do autor no Ciclo Mutações, às 19h30. Os ingressos devem ser retirados pelo site Sympla.