Biografia especulativa. É assim que o professor e escritor carioca Felipe Charbel define “Saia da frente do meu sol”, seu mais recente livro, lançado pelo selo Contemporânea, da editora Autêntica.
Partindo de memórias da juventude, período em que o tio-avô Ricardo morou na casa de seus pais, Charbel constrói uma narrativa que tenta desvendar a vida desse homem soturno, que vivia no quartinho dos fundos da casa, de onde raramente saía.
Diagnosticado com sífilis neurológica, Ricardo tinha problemas para andar. Arrastava-se pela casa e, pela dificuldade de se locomover, não conseguia ir ao banheiro, de modo que carregava consigo um balde onde urinava.
“O cheiro de tio Ricardo era uma morrinha difícil de suportar, combinação de mijo, nicotina, suor e abandono”, escreveu Charbel.
“Há 10 anos penso em escrever essa história”, afirma o escritor ao Estado de Minas. “O que me dei conta logo cedo é que eu não tinha tantos elementos para escrever uma história que fosse fundamentada do jeito que um historiador e biógrafo convencional faria (Charbel é historiador). Optei, então, por uma biografia especulativa, que, embora seja uma narrativa verdadeira, tem sempre um elemento ficcional presente”, conta.
Nesta quarta-feira (26/7), o escritor é o convidado do projeto Sempre um Papo, que será realizado na Livraria Quixote, com mediação do jornalista Carlos Marcelo, diretor de redação do Estado de Minas.
O 'solteirão convicto'
Mais do que expor a vida do tio agregado à rotina doméstica, “Saia da frente do meu sol” traça um panorama de como a homossexualidade era tratada pelas famílias entre as décadas de 1970 e 1990. Em casa de Charbel, todos sabiam que Ricardo era gay, mas ninguém aceitava esse fato como natural. Diziam que ele era um solteirão convicto, que chegou a ter um noivado com uma moça e que era boêmio quando jovem.
Faziam comentários maldosos, como “ele é amigado dos cantores e artistas”, “tinha o hábito de sair de casa na sexta-feira e voltar só no domingo” e “se dava muito bem com os malandros da Lapa” – por muito tempo, o bairro boêmio carioca abrigava pensões para que casais gays pudessem manter relações sexuais.
“São frases que não diziam nada, mas, ao mesmo tempo, diziam muita coisa nas entrelinhas, pelo tom em que eram ditas. Era como se o tio Ricardo estivesse fazendo algo condenável”, lembra Charbel.
Ricardo, por sua vez, não ousava se declarar gay para a família. Sua alternativa foi se calar e se fechar dentro de seu próprio mundo, até o fim da vida.
No tempo em que o tio morou com Charbel, foram raras as vezes que os dois conversaram. Normalmente, eram poucas palavras trocadas, como um “bom dia” ou “boa noite”. E, mesmo assim, nas primeiras horas da manhã, quando Charbel chegava bêbado das festas de faculdade e Ricardo já estava acordado, lavando a louça do dia anterior que a família havia deixado na pia.
Descoberta
Charbel só começou a se dar conta de que o tio era gay quando descobriu fotos antigas de Ricardo. Sempre acompanhado de homens e, em algumas delas, tocando com mais intimidade outro corpo masculino. “Aí que eu fui ligando os pontos”, comenta o escritor.Foi a partir dessas fotos que Charbel passou a especular mais sobre a vida do tio e decidiu imaginar como teria sido a juventude dele. O que mais lhe chamou a atenção nem era tanto o fato de Ricardo ser homossexual, mas sim a vitalidade que ele exibia nas fotos, que contrastava com a figura melancólica que ele conheceu em casa.
Contrariando todos os historiadores, Charbel não foi atrás de dados e depoimentos de quem conviveu com o tio. Preferiu especular. “Mas deixei isso claro para o leitor desde o início, como se fosse um pacto para dizer: ‘Olha, tem muita coisa que eu estou imaginando a partir dos dados que tenho’”, afirma.
“É uma vida única – toda vida é, obviamente –, mas é também a vida de muita gente naquela época. Pessoas que não podiam se colocar no ambiente familiar como queriam por conta dos preconceitos, por conta da homofobia. Então eu pensei que por meio dessa história muita gente que viveu isso (seja tendo atitudes preconceituosas ou sendo reprimidas pelo preconceito dos familiares) compreende que essa situação é insustentável”, diz.
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Diógenes e Ricardo
Em seu perfil de tio Ricardo, Charbel o compara com o filósofo grego Diógenes, de Sínope. Daí inclusive vem o título do livro. Reza a lenda (narrada por um outro filósofo, chamado Diógenes Laércio) que Alexandre, o Grande, um grande admirador do filósofo de Sínope, chegou a conhecê-lo pessoalmente. Na ocasião, Diógenes (o de Sínope) estava tomando sol numa praça pública, quando o imperador se apresentou: “Sou Alexandre, o Grande, diante de mim prostram-se os reinos, eu sou possuidor de muitas riquezas”.
Com sua habitual firmeza, Diógenes respondeu: “Eu sou Diógenes, e isto me basta”. Alexandre ainda tentou estabelecer algum tipo de relação com Diógenes, dizendo que ele poderia pedir o que quisesse. O filósofo, por sua vez, teria respondido: “Não me faças sombra. Saia da frente do meu sol”.
Não se sabe se o encontro ocorreu de fato. E, caso tenha ocorrido, se foi como narrado. Fato é que Diógenes entrou para a história como um personagem de humor ácido e respostas afiadas, o que bastou para Charbel.
“O que me levou a associar o tio Ricardo ao Diógenes foi o humor”, comenta o escritor. “Tio Ricardo tinha um mau humor tão forte que chegava a ser engraçado. Depois, fui fazendo outras analogias, pensando no modo de vida dele e no do filósofo. No fim das contas, ‘o sai da frente do meu sol’ quer dizer que ele se contenta com muito pouco, mas vai brigar para ter esse pouco”, conclui o escritor.
“SAIA DA FRENTE DO MEU SOL”
• Felipe Charbel
• Autêntica Contemporânea (136 págs.)
• R$ 59,90
• Lançamento nesta quarta-feira (26/7), a partir das 19h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi). Em seguida, o autor autografará o livro. Entrada franca. Mais informações: (31) 3227-3077 e no Instagram @quixotelivraria.