Em outubro de 1983, um grupo de artistas e intelectuais funda a revista La Luna eme Madri. A ditadura estava terminada e, nas eleições do ano anterior, o Partido Socialista havia conseguido a maioria – algo inédito na Espanha desde 1936. O clima político e cultural, pós-Franco e pré-Aids, era de absoluta efervescência.
Espécie de estandarte da “movida madrileña”, o periódico convida para o posto de colunista Patty Diphusa, que se apresenta, no número de estreia, como “sex symbol internacional ou estrela internacional do pornô”.
“Naturalmente, aceitei”, conta Patty Diphusa, na coluna de estreia. “O diretor dessa revista, afinal, foi direto: escreva sobre qualquer coisa da atualidade. E EU pensei: 'A atualidade é a capacidade de atuar'. E EU tenho uma boa dose dessa capacidade. Sou a atualidade. Quero dizer que me convenci imediatamente de que o melhor e mais interessante era EU MESMA.”
Patty era, na realidade, personagem de Pedro Almodóvar. Então jovem cineasta, autor de um punhado de curtas e de dois longas, ele escrevia roteiros e fotonovelas – foi numa dessas histórias ilustradas que Patty despontou, antes de ir para La Luna.
Primeira pessoa em letras maiúsculas
De 1983 a 1984 na revista e no início da década de 1990 no jornal El Mundo, as crônicas de Patty Diphusa chegavam assinadas em primeira pessoa. Eram escritas com uma verve própria, muitas palavras em letras maiúsculas e intimidade com o mundo pop, além de amplo conhecimento da noite da cidade.
Dezesseis textos desses dois períodos estão reunidos no livro recém-lançado no Brasil pela Tusquets. O volume inclui ainda o conto “Fogo nas entranhas”, que rivaliza em maluquice com as aventuras narradas pela estrela do pornô internacional, embora seus personagens não tenham o mesmo encanto.
Com linguagem desbocada e deliciosa, figuras dos anos 1980 vão povoando as histórias. Sobre um garoto se movimentando com talento na pista de dança, Patty comenta: “Tina Turner teria molhado a calcinha vendo o que aquele garoto fazia com seu último sucesso”. Um primor de construção narrativa, o personagem do taxista taciturno de coração bom surge numa crônica e volta meses depois, sempre comparado ao tesudo Robert Mitchum.
Quarenta anos após sua publicação original, não é sem estranheza ou incômodo que as proezas de Patty chegam ao leitor – e sobretudo à leitora – de hoje.
Não há por que condenar o fato de que se trata de protagonista feminina que narra histórias inventadas por um homem. O debate sobre “lugar de fala” e “lugar de falo” se tornou arroz com feijão dos anos 2020, algo quase tão banal quanto carreiras de cocaína e sexo em banheiros de bar nos “ochentas madrileños” de Patty. E é impossível descartar no vaso sanitário obras-primas escritas por machos com eu lírico feminino.
Não há problema em Almodóvar ter criado a personagem – e que personagem. Patty, é preciso que se diga, esbanja carisma. Originalíssima em seu comportamento, recusa com brio o papel de vítima e busca SEMPRE o prazer – perdão pelas maiúsculas: é um dos traços do estilo de Patty que dá vontade de copiar. Não seria exagero enfatizar a falta que mulheres como ela fazem nos moralistas dias de hoje.
Choque de realidade
Por outro lado, engasgo, já na segunda crônica, “A realidade imita o pornô”, quando Patty narra o fim de uma festa: depois de beber demais e vomitar, pega carona com uns rapazes, cochila no carro e acorda sendo violada numa casa de campo. “Não dei um grito porque não sou tão reclamona”, ela escreve, “mas mentalmente fiz a mim mesma as típicas perguntas 'onde estou?', 'o que é que estou fazendo aqui?', etc”.
Será que eu acharia mais divertido se não soubesse de tantas histórias parecidas? Será que nos anos 1980 minha mãe teria lido esse relato de um jeito mais descontraído do que consigo hoje? Há mais do que machismo na maneira como o estupro é contado?
Na narrativa, Patty dá a volta por cima, transforma a tragédia que viveu em comédia, romance, aventura. Recusa o lugar da vítima, não tem a autoestima abalada. O que só torna as coisas mais complicadas para a resenhista: diante de boa literatura, não se trata de aprovar ou condenar – mas de reconhecer o prazer e lidar com o incômodo.
Ainda assim, algumas piadas causam hoje mais constrangimento do que riso. Gordofóbicas, as que envolvem Addy Posa (uma das melhores amigas de Patty, ao lado de Ana Conda) são forçadas.
Um dos personagens centrais do conto “Fogo nas entranhas” é o chinês Chu Ming Ho, que se instala em Madri e cria bem-sucedida fábrica de absorventes. Outra figura da narrativa é Isidra, septuagenária virgem e vaidosa. Se há pouca graça nos comentários sobre o tamanho do sexo de Chu e a caricatura da mulher que se recusa a envelhecer soa gasta, resta interesse no erotismo da escrita, sem o menor recalque.
Ao longo da leitura, reconhece-se a imaginação sem limites que está na base do cinema de Almodóvar. Sua atração por corpos incomuns, comportamentos heterodoxos e situações absurdas já estava presente em sua literatura de juventude, que dá prova de uma liberdade de pensamento muito estimulante.
Nos anos 1990, quando Patty retorna depois de longa ausência, ela já não tem a mesma energia festeira e orgiástica – e se faz sentir a guinada moralista de tempos desiludidos.
“PATTY DIPHUSA E FOGO NAS ENTRANHAS”
• De Pedro Almodóvar
• Tradução: Eric Nepomuceno
• Editora Tusquets
• 160 páginas
• R$ 56,90
Sign in with Google
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do Estado de Minas.
Leia 0 comentários
*Para comentar, faça seu login ou assine