O novo espetáculo do grupo Trampulim, que estreia neste sábado (5/8), na Casa Circo Gamarra, propõe um movimento do íntimo para o coletivo, do privado para o público, ao mesmo tempo em que fecha um ciclo iniciado há cerca de duas décadas. O nome com que foi batizado, “Casamento”, diz tudo, já que a montagem é estrelada por Adriana Morales e Tiago Mafra, diretores do Trampulim, que são parceiros na arte e na vida há 23 anos.
Na pele dos palhaços Benedita Jacarandá e Sabonete, eles levam à cena reflexões sobre o relacionamento institucionalizado, as dores e as delícias da convivência. Nesse novo trabalho, o Trampulim se debruça na investigação de jogos de improvisação denominados impro short form – que são baseados em títulos, situações e histórias, tudo criado em tempo real, para construção das linhas fixas do espetáculo.
Acabou a surpresa...
“Casamento” nasce, em boa medida, do desejo de dar um desfecho para uma montagem do grupo, “Uma surpresa para Benedita”, de 2003, de acordo com Mafra. Ele explica que aquele espetáculo, que segue como um dos mais prestigiados do repertório da trupe, termina com Sabonete pedindo Benedita em casamento. Desde então, as pessoas perguntam quando, afinal, vai ser a união dos dois palhaços, conforme diz.
“Alguns anos atrás, a gente resolveu retomar essa ideia. Em 2019, estávamos envolvidos em uma pesquisa sobre a impro na palhaçaria, com a Mariana Muniz, professora da Escola de Artes Cênicas da UFMG. Foi nessa ocasião que conhecemos o José Luis Saldaña”, conta, referindo-se ao diretor teatral mexicano que, por ter esposa e filho brasileiros, volta e meia está no Brasil, apresentando espetáculos e ministrando oficinas.
“Trocamos uma ideia sobre 'Casamento' e ali mesmo se definiu que ele seria o diretor da montagem”, diz Mafra. Ele explica que a vasta experiência de Saldaña com a improvisação é o que orientou essa escolha. “A impro é um sistema desenvolvido, muito usado ao redor do mundo; é uma técnica decupada, estudada, com vários fundamentos, os motores, as provocações que iniciam uma cena, a escuta, a espacialidade, enfim, os elementos de construção de uma dramaturgia em tempo real”, ressalta.
"Adriana e Tiago têm 23 anos de casamento, então o assunto deveria ser esse, mas de que forma? O casamento nos permite falar de individualidade, de protagonismo, falar sobre como lidar com as crises, sobre o que é o amor dentro de um relacionamento e como ele vai mudando. É um espetáculo que vai reverberar em qualquer pessoa que tem ou já teve experiência com o casamento. As pessoas vão assistir a uma montagem que funciona como um espelho, mas um espelho bem divertido"
José Luis Saldaña, diretor
Ele observa que a arte da palhaçaria já trabalha com a improvisação, mas de uma outra forma, e que ela funciona como uma ferramenta complementar. O interesse em trabalhar com essa técnica levou Mafra e Adriana a Portugal, para uma residência artística com César Gouvêa, fundador da Cia. do Quintal. Essa experiência serviu à construção de uma proposta dramatúrgica autoficcional, na qual a essência das histórias criadas evoca as memórias de mais de 20 anos de união dos artistas.
“A improvisação pode ser muito complementar à linguagem da palhaçaria, mas ela também tem pontos de conflito. É muito racional. O César, além de palhaço, é improvisador, o que nos ajudou a tornar esse casamento entre linguagens mais fluido, sem a gente perder a espontaneidade do palhaço”, conta Adriana. Mafra acrescenta que a residência em Portugal contribuiu para que a dupla de artistas encontrasse os caminhos que levaram a “Casamento”.
“César trouxe um atalho para as possíveis dificuldades de se unir essas duas linguagens, fazer essa junção. Tem pontos em que a impro pode travar o palhaço, e tem pontos em que o palhaço avacalha a impro. A visão experiente dele nos ajudou a equacionar essa questão, até porque o José tem uma bagagem grande com a impro, mas não é da palhaçaria”, pontua.
Risco calculado
Saldaña, por sua vez, assente que se atirou em águas escuras ao topar assumir a direção do novo espetáculo do Trampulim. Ele diz já ter trabalhado com as técnicas da palhaçaria, mas ressalva que não é mesmo uma área sobre a qual tenha domínio. “Foi um risco legal. Sei que não conheço bem a linguagem do palhaço, mas sou diretor, então posso me aprofundar numa determinada técnica para lidar com ela. Pedi a Tiago e Adriana material para que eu pudesse conhecer melhor o trabalho deles”, comenta.
Ele diz que a temática também o instigou a abraçar o projeto. O diretor considera que esse contrato social – e religioso, em alguns casos – suscita muitas reflexões importantes, o que dá margem para se desenvolver uma estrutura dramatúrgica coesa, ainda que atravessada por muita improvisação.
“Adriana e Tiago têm 23 anos de casamento, então o assunto deveria ser esse, mas de que forma? O casamento nos permite falar de individualidade, de protagonismo, falar sobre como lidar com as crises, sobre o que é o amor dentro de um relacionamento e como ele vai mudando. É um espetáculo que vai reverberar em qualquer pessoa que tem ou já teve experiência com o casamento. As pessoas vão assistir a uma montagem que funciona como um espelho, mas um espelho bem divertido”, afirma.
Sobre a trama, Mafra observa que não existe propriamente uma dramaturgia, mas sim a “estrutura dramatúrgica” a que Saldaña se refere. Ele diz que a maioria das cenas é improvisada, a partir das reações ou sugestões do público, o que faz de “Casamento” uma encenação viva, que se molda em tempo real, em sintonia com os elementos do entorno. “Mas tem um passo a passo, um certo roteiro que a gente procura seguir”, observa.
"Mais do que explanar sobre esse contrato, acordo, instituição, queremos mesmo é falar do nosso casamento, com humor, sob a ótica da Benedita e do Sabonete. Que essas figuras sejam nossas guias para um olhar divertido, espontâneo e louco para essa experiência simbiótica de mais de duas décadas"
Adriana Morales, atriz e palhaça
Esse roteiro, conforme aponta, é baseado na realidade cotidiana, ou seja, leva para a cena, efetivamente, o que é a vida dos dois na intimidade do casamento. Ele diz que isso se dá em ordem cronológica, com o casamento, a lua de mel, a rotina, o tédio, a redescoberta, a renovação, os filhos, enfim, tudo o que viveram ao longo desses 23 anos de união.
“Mais do que explanar sobre esse contrato, acordo, instituição, queremos mesmo é falar do nosso casamento, com humor, sob a ótica da Benedita e do Sabonete. Que essas figuras sejam nossas guias para um olhar divertido, espontâneo e louco para essa experiência simbiótica de mais de duas décadas”, afirma Adriana. Ela considera que os próprios personagens Benedita e Sabonete devolvem ao casal o verdadeiro sentido de estarem juntos.
“Eles são o que a gente acredita que seja um casamento. Já houve muitas situações de a gente brigar antes de entrar em cena e, quando acaba o espetáculo, aquele conflito foi dissolvido. É difícil sustentar uma briga depois de uma apresentação, porque em cena precisamos jogar, nos escutar e nos divertir. Passa pelo prazer de existir, de coexistir e de construir algo juntos”, afirma.
"O palhaço nos amplifica, nossas luzes e sombras, para que possamos compartilhar com o público, porque nossas questões são questões da humanidade. É uma intimidade que é de todo mundo, as pessoas se reconhecem na nossa relação"
Tiago Mafra, ator e palhaço
Palhaço roteirista
Mafra não nega que levar a público situações que pertencem a uma esfera íntima seja um desafio, mas pondera que a própria linguagem da palhaçaria funciona como um instrumento facilitador. “O palhaço nos amplifica, nossas luzes e sombras, para que possamos compartilhar com o público, porque nossas questões são questões da humanidade. É uma intimidade que é de todo mundo, as pessoas se reconhecem na nossa relação”, destaca.
Para Mafra, a união da improvisação com a palhaçaria foi como trazer para o palhaço – que está sempre na relação com o presente – uma visão de roteirista. “Quando o palhaço se perde na história, ele não está pensando no roteiro. Já na improvisação, para escrever histórias mais longas, você precisa considerar o passado e o futuro. Por exemplo, se você inserir um elemento aqui na narrativa, isso pode ser retomado lá na frente e assim por diante”, diz.
Nessa temporada de estreia, a peça vai circular por espaços culturais da cidade que são sede de outras companhias. Depois de ficar em cartaz neste fim de semana na Casa Circo Gamarra, “Casamento” segue para a ZAP 18, na próxima sexta-feira (11/8), e para o C.A.S.A. – Centro de Arte Suspensa Armatrux, no Vale do Sol, em Nova Lima, no sábado (12/8).
“CASAMENTO”
• Com grupo Trampulim
• Neste sábado (5/8) e domingo (6/8), às 19h, na Casa Circo Gamarra (Rua Conselheiro Rocha, 1.513, Santa Tereza)
• Neste sábado (5/8) e domingo (6/8), às 19h, na Casa Circo Gamarra (Rua Conselheiro Rocha, 1.513, Santa Tereza)
• Na próxima sexta-feira (11/8), às 20h, na ZAP 18 (Rua João Donada, 18, Santa Terezinha); no próximo sábado (12/8), às 19h, no C.A.S.A. (Rua Himalaia, 69, Vale do Sol, Nova Lima)
• Entrada franca, com retirada de ingressos pelo Sympla ou na bilheteria dos espaços, uma hora antes do espetáculo
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