Movido pela curiosidade e por uma dose de pressão familiar, o jornalista, escritor e professor Sérgio de Sá resolveu escrever a história que o acompanha desde sempre. Ele acaba de lançar o livro “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades”, em que resgata passagens da vida de seu avô, o engenheiro desbravador responsável pela construção da rodovia Belém-Brasília, que participou da gênese do que viria a ser a nova capital do país – missões recebidas do então presidente Juscelino Kubitschek.





Bandeirante moderno, pioneiro do Oeste brasileiro, aventureiro e líder nato são alguns adjetivos que a literatura dispensa a Bernardo Sayão. Reportagens de jornais e revistas, livros e documentos guardados em arquivos públicos foram as principais fontes de pesquisa de Sérgio de Sá, que não chegou a conhecer o avô pessoalmente, pois ele nasceu 11 anos depois da morte trágica de Bernardo, em 15 de janeiro de 1959, aos 57 anos.

Faltando apenas 16 dias para Sayão e sua equipe concluírem a confluência das frentes de desbravamento Norte e Sul da Belém-Brasília, em plena selva, no limite entre Pará e Maranhão, uma enorme árvore desabou sobre a tenda em que ele estava acampado, no canteiro de obras. Com diversas fraturas pelo corpo e o crânio partido, o homem de compleição avantajada – “um Golias em tudo similar a Davi”, como descreve o neto – não resistiu aos ferimentos.

A escritora Ana Miranda descreve, na orelha do livro, o impacto do episódio: “A morte trágica, inesperada e de uma beleza inexcedível transformou o engenheiro Bernardo Sayão em um mito amado e reverenciado pelo povo. Determinado, impetuoso, ele já era um herói; suas aventuras corriam por todo lado, desde os acampamentos candangos até a mesa do presidente Kubitschek, que nele encontrou um dos mais sólidos esteios para a construção de Brasília”.




 

Bernardo Sayão e trecho de estrada recém-aberta, ao fundo

(foto: Acervo de família)
 

O pioneiro do Campo da Esperança

Um trecho do livro “Brasília, pioneiros e candangos”, que o deputado federal baiano Raymundo Brito (1900-1982) lançou em 1960, destaca a morte de Sayão na estrada: “Brutalmente desvirginada, ao impacto das foices, dos machados e dos tratores, a floresta vingara-se do comandante da portentosa batalha”. O corpo do engenheiro foi o primeiro a ser enterrado no cemitério Campo da Esperança, que ele próprio havia delimitado, menos de dois meses antes, para a incipiente nova capital.

“Brinco que estou escrevendo este livro desde que nasci. Sendo ele meu avô, escuto e convivo com as histórias desde sempre”, diz Sérgio de Sá, acrescentando que a “encomenda familiar” foi a motivação definitiva para a feitura da obra. Os descendentes diretos de Sayão sentiram a necessidade de um livro para recuperar um pouco da memória que ia se perdendo, aponta.

“Juntei coisas escritas sobre ele e dei nova organização, com as vantagens e desvantagens de ser neto. Sou jornalista, professor, então a família via em mim o neto intelectual, digamos assim, a pessoa mais apta a recuperar a história e escrever um livro”, explica. Sá já havia assinado um texto para a revista Piauí, que acabou se configurando como esboço de “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades”.





O autor realizou entrevistas, buscou confirmar afirmações e viajou por lugares que marcaram a trajetória do avô – Belo Horizonte, inclusive. “A primeira mulher dele era filha do jurista Mendes Pimentel, que criou a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Depois que ficou viúvo dela, meu avô se casou com minha avó, Hilda, em um casarão na Savassi. Nesse período, ele morou na Rua Pium-Í”, revela.

Sérgio de Sá entrevistou, sobretudo, familiares, conversas demandaram checagens. “É difícil pegar gente que tenha convivido com ele, porque essas pessoas já se foram. Quem se lembra de alguma coisa, já é de segunda ou terceira mão”, destaca.

Outra fonte foi o diário da avó, o que permitiu resgatar muito do período em que Sayão foi designado por Getúlio Vargas para, no embalo da Marcha para o Oeste, nos anos 1940, implantar a Colônia Agrícola Nacional de Goiás, que daria origem ao município de Ceres. A temporada goiana seria, de certa forma, o embrião do surgimento da Belém-Brasília.





“Convivi com minha avó em casa, então tinha muitas histórias dela e também dos meus tios”, diz, ressalvando que a apuração não se limitou à esfera familiar. “Também fui atrás de quem fala mal, mas é pouca gente. Tive acesso a alguns jornais sensacionalistas ou politicamente marcados do interior de Goiás que queriam a expulsão dele da Colônia Agrícola. Quando foi cumprir a missão dada por Getúlio, meu avô teve que desapropriar terras, e os desapropriados não ficaram muito contentes”, relata.

De acordo com ele, as pessoas com quem conversou se referiram a Sayão com tons de grandeza. “Tentei até baixar um pouco a bola. O que se diz é que a construção de Brasília parou com a morte dele, porque era quem guiava os candangos naquele momento e exercia liderança baseada em um carisma enorme. Também para mim, dentro de casa, ele é uma figura mítica, então foi o processo de humanizá-lo”, ressalta.
 
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Entrevero com Israel

No capítulo dedicado à morte do avô, o autor conta que a avó não permitiu que o caixão fosse aberto no velório, pois queria se poupar e aos demais da visão do corpo dilacerado, preservando, dessa forma, a imagem da virilidade de Sayão. Isso acabou gerando muitos boatos.





“Alguns diziam que ele foi raptado por indígenas, que não tinha morrido e até mesmo que tinha sido assassinado. Meu avô tinha um entrevero com um mineiro famoso, Israel Pinheiro, o presidente da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, criada por JK em 1956). Ele bateu um dia na casa da minha avó para dizer que não tinha mandado matar meu avô. Foi o boato que correu à boca pequena, a despeito de a própria família nunca ter dado crédito”, diz.

Durante a pesquisa, esta informação envolvendo Sayão e Israel Pinheiro, que viria a ser o primeiro prefeito do Distrito Federal, foi das mais surpreendentes para Sérgio. “Uma pessoa que deu depoimento fala que eles chegaram a se desentender fisicamente, mas deixei só o que tinha confirmação. No capítulo da morte, apresento vários depoimentos, várias versões que circularam, mas com a ideia de deixar o menor grau possível de ambiguidades”, pontua.
 

Bernardo Sayão e Israel Pinheiro: suposto entrevero deu origem a boatos envolvendo o futuro prefeito de Brasília na morte do engenheiro

(foto: Reprodução)
 

Outra surpresa foram fotos do avô com Getúlio Vargas. As imagens foram descobertas pela esposa do jornalista no Arquivo Nacional. “Eu não sabia da existência dessas fotos. É um momento importante, em que meu avô ganha a vida de desbravador, quando Getúlio resolve que ele seria o administrador da Colônia Agrícola no interior de Goiás, em 1941. As imagens comprovam o quanto ele era realmente querido”, destaca.





Sérgio observa que não se pode dizer que Sayão e JK fossem amigos íntimos, mas tinham relação fraterna, de confiança. “Meu avô era tido como braço direito, mas acho que Juscelino era mais próximo de Israel Pinheiro. Um estava no campo de batalha, enquanto o outro estava no escritório. Meu avô era grande, forte, passava imagem muito impactante, era talhado para a liderança. Ele não era conselheiro político, era o cara que fazia, não tinha a ver com partido político”, aponta.

“Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades” não é propriamente uma biografia, já que a instância afetiva se faz presente, afirma o autor. Trata-se de um “perfil afetivo biográfico”, comenta.
 

Sérgio de Sá define seu livro como o 'perfil afetivo biográfico' do avô

(foto: Patrick Grosner/divulgação )
 

On the road

Entre as muitas viagens que Sérgio fez, uma delas foi ao longo da Belém-Brasília, em 2019. Parou em todas as cidades às margens da rodovia onde era possível se hospedar.





“Foi uma viagem que precisei fazer para verificar o boato de que todos os municípios do percurso têm placas de ruas, avenidas e praças com o nome do meu avô. Também queria conferir a estrada. Fiz o capítulo 'On the road' contando um pouco dessa experiência”, diz.

O autor pôde sentir o peso do nome Bernardo Sayão nos muros e nas placas. Não foi até Belém; quis apenas refazer o caminho do avô, chegando até o lugar onde ele morreu. “Ele subia com a turma de baixo para encontrar os que desciam do Norte. É sempre bom viajar, eu queria sentir a estrada, sem frescura metafórica”, ressalta.

A despeito do nome do avô em vários logradouros, ele não é, necessariamente, personalidade conhecida pelos atuais moradores da região, diz Sérgio. Isso reforça a importância do livro ao resgatar a memória de Bernardo Sayão. 





“A viagem que fiz pela Belém-Brasília me trouxe essa constatação. As pessoas leem o nome nas placas, mas na maioria das vezes não sabem exatamente quem ele foi ou o que ele fez. Sua morte gerou muita fantasia”, conclui Sérgio de Sá.

(foto: Reprodução)
“BERNARDO SAYÃO: CAMINHOS, AFETOS, CIDADES”

• De Sérgio de Sá
• Edição do autor
• 257 páginas
• O livro pode ser encomendado diretamente ao autor pelo e-mail sergiodesa50@gmail.com

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