No entrelaçar dos dedos, fagulhas despontam energicamente. No passar do tempo, folhas coloridas atravessam a tela. Nos beijos, raios brilham e emolduram Nick e Charlie, fazendo de “Heartstopper” uma espécie de quadrinho vivo, saturado e lúdico.
Após o sucesso inesperadamente superlativo de sua primeira temporada, a série da Netflix retorna com oito episódios, agora como uma das joias da coroa da plataforma e, de quebra, como propulsor de vendas das HQs nas quais é inspirada.
Série e quadrinho têm uma relação profunda, com diálogos inteiros transpostos das páginas para as telas. Não que isso seja incomum no ramo das adaptações literárias. Aqui, no entanto, o visual também se manteve absolutamente fiel, já que a série se apropriou das firulas gráficas e brincalhonas do papel.
Episódios, também, são separados como os capítulos de um livro, com um grande numeral à frente de seus títulos, ordenando a história. Em cena, o clima é de casa de boneca, com objetos e figurinos minimalistas e uma paleta de cores cuidadosamente pensada, para que a camiseta de um personagem não destoe do tênis de outro, e por aí vai.
Tudo graças ao envolvimento direto da quadrinista Alice Oseman, que atua como criadora, roteirista e produtora de “Hearstopper”, conta Patrick Walters, também produtor.
Mantra
”Sua série literária é muito autoral, então queríamos ter sua arte na tela. Acrescenta muito à história e alegra o espectador. Seguimos um mantra de fazer uma série que as pessoas queiram ver, que as deixe felizes”, diz ele.
No episódio inaugural da segunda temporada, os personagens Tao e Elle passam inexpressivos por prateleiras de mercado, abrindo caminho num mar de rótulos. Eles param diante de uma única embalagem de suco de maçã, despida de informações para além do desenho da fruta. A simplicidade captura a atenção da câmera e do espectador, mesmo com dezenas de garrafas de café do Starbucks à esquerda e latas de Fanta à direita.
Esses mesmos personagens, em outra cena, estão flertando em meio às folhas outonais de um jardim. Elle usa um blazer alaranjado, enquanto Tao veste uma camisa num tom de rosa defumado, com detalhes em bege. E, como o outono, ambos estão num momento de incerteza, divididos entre o calor dos sentimentos que nutrem um pelo outro e a frieza de uma possível rejeição.
Epifania
Em “Hearstopper”, figurinos, para além de combinar entre si e com o ambiente ao redor, ajudam a expressar de maneira hiperbólica o estado de espírito de seus personagens e a traduzir os embates impronunciáveis que vivem internamente.
As luzes, também, são usadas à exaustão, como quando o protagonista Nick, na primeira temporada, tem um momento de epifania e é iluminado, numa festa, pelas cores da bandeira bissexual.
Seguindo a proposta, a nova leva de episódios tem luzes quentes e intensas para os momentos de confiança, mas elas vão se apagando em meio às fragilidades dos personagens. O contraste é claro quando Nick, mais velho e próximo de entrar na vida adulta, está numa sala de prova cinzenta, que contrasta com o tom solar da sala de aula do namorado Charlie.
“Nós queríamos que o mundo desses personagens, as locações, fossem reais, fossem identificados como uma cidadezinha do Reino Unido. Mas também queríamos dar vazão a certa magia, o que acontece por meio de animações, cores e figurinos. Assim, o romance ganha vida”, diz Walters.
Desafios
O desafio foi maior nos novos episódios. Se a primeira temporada se dedicou a mostrar a proximidade dos protagonistas, com toda a delicadeza de uma história de primeiro amor, a segunda assume temas mais maduros, como transtornos alimentares, saúde mental, homofobia e um romance que deixa a dupla na porta do florescer sexual.
Tudo sem perder o tom fofo que é marca registrada dos quadrinhos de Alice Oseman, no entanto. “Heartstopper” é, afinal, a antítese das séries adolescentes que invadiram o streaming. Uma espécie de Bairro do Limoeiro da “Turma da Mônica”, onde sujeira, violência e drogas, se aparecem, o fazem de forma inofensiva.
Foi isso que ajudou a série a se tornar um fenômeno com uma base de fãs tão apaixonada, que superou o desafio de extrapolar a bolha LGBTQIA+.
Gravações acompanhadas por psicólogos e historiadores queer
“Heartstopper” ganhou popularidade impulsionado por seu jeito leve e fofo, capaz de apresentar uma fuga da realidade aos seus vários espectadores. É uma história de primeiro amor, afinal, e fez muita gente se derreter pelo romance dos protagonistas Nick e Charlie.
Nada mais justo, então, que os responsáveis por levar a história às telas o façam num ambiente confortável e seguro. Por isso, um dos produtoreas da série da Netflix, diz que o elenco é acompanhado por um time de psicólogos e historiadores queer.
”Desde o começo nós tentamos transformar a produção no ambiente mais seguro possível. Tivemos treinamentos de história LGBTQIA e terapeutas à disposição, com os quais os atores podiam conversar de forma anônima. Se há um problema, nós podemos resolver”, diz ele à reportagem, ao ser questionado sobre a pressão vivida pelos astros da série, Kit Connor e Joe Locke, diante da imensa base de fãs conquistada.
Após o sucesso da primeira temporada, Connor, intérprete do bissexual Nick, começou a ser criticado nas redes sociais porque seria, em teoria, um heterossexual contando uma história intrinsecamente queer. Diferentemente de seu par romântico em cena, ele nunca tinha falado publicamente sobre a própria sexualidade.
Nas redes, cedeu à pressão. “Parabéns por forçar um jovem de 18 anos a se assumir. Eu acho que alguns de vocês não entenderam a mensagem da série”, escreveu em novembro do ano passado.
“Nós, produtores, queremos que todos os envolvidos com a série saibam que podemos resolver qualquer problema juntos. Não quero falar pelos atores, mas na segunda temporada isso foi mais fácil, porque nos sentíamos como uma comunidade. Uma bolha em que todos podíamos existir de forma livre”, diz Walters agora.
O caso envolvendo Connor aconteceu em meio às gravações da segunda temporada, apesar de as críticas ao ator terem se acumulado desde a exibição da primeira leva de episódios. Pouco depois, ele veio ao Brasil para a CCXP, ocasião em que falou com a reportagem sobre os benefícios e malefícios da fama que conquistou.
Fama
“Eu não sinto que preciso advogar pela causa LGBTQIA , não é uma necessidade. Mas é algo que eu genuinamente quero fazer. É importante para mim e para o Joe”, afirmou em dezembro.