“Mas que brotinho!” A edição de 25 de agosto de 1951 da revista “O Cruzeiro” destacava tal matéria – texto de Luiz Carlos Barreto e fotos de Indalecio Wanderley. O título referia-se à principal personagem desta história, a Miss Brotinho de Goiás. Naqueles anos, o Centro-Oeste exportava misses.
Como boa goiana, Lucíola Villela ofereceu sua casa no Rio de Janeiro para um chá para a miss. Uma equipe da revista foi chamada para cobrir o evento. E Barreto, fotógrafo de 23 anos, ali fazendo as vezes de repórter, se encantou por outro brotinho: a filha de 18 de Lucíola, Lucy, que naquela tarde foi a pianista do chá.
Setenta e dois anos depois deste primeiro encontro, Luiz Carlos Barreto, 95, o Barretão, e Lucy, 90, continuam juntos. São 69 anos de casamento, três filhos, nove netos e a sociedade numa das mais importantes produtoras de cinema do Brasil. Em maio passado, a LC Barreto completou 60 anos. As comemorações estão começando agora, precisamente por Belo Horizonte.
Nesta sexta (11/8), Lucy chega à capital mineira para a abertura da mostra “LC Barreto – 60 anos filmando o Brasil”, que será realizada até 24 deste mês, no Cine Humberto Mauro. Dezessete longas serão exibidos no cinema do Palácio das Artes, seis deles em cópias 35mm. A programação ainda leva 12 filmes para sessões on-line, na plataforma Cine Humberto Mauro Mais.
Mesmo os não familiarizados com os bastidores da produção audiovisual brasileira hão de reconhecer a relevância dos Barreto. Entre os cerca de 150 títulos que eles trazem no currículo (longas, curtas, séries e documentários) estão alguns clássicos da cinematografia nacional.
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A retrospectiva vai exibir “Vidas secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, um marco do período inicial do Cinema Novo; “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), de Bruno Barreto, o primogênito de Lucy e Luiz Carlos, título que por 34 anos figurou como a maior bilheteria de uma produção nacional; “O quatrilho” (1995), de Fábio Barreto, o filho do meio do casal, morto em 2019, e “O que é isto, companheiro?” (1997), de Bruno Barreto, esses dois últimos indicados ao Oscar de Filme Internacional.
Clássicos
A lista traz outros clássicos, “Bye bye Brasil” (1980), de Cacá Diegues, “Memórias do cárcere” (1984), de Nelson Pereira dos Santos, “Ele, o boto” (1987), de Walter Lima Jr., entre eles. Depois de BH, a mostra segue para o Rio de Janeiro e, em setembro, para Recife. Lucy ainda vai ao Festival de Gramado na próxima semana, onde recebe o Troféu Eduardo Abelin.O ciclo comemorativo irá até 2024, com retrospectiva no Lincoln Center, em Nova York, homenagem na seção Cannes Classics, no Festival de Cannes, mais exibições em Londres, Portugal, Espanha e Alemanha.
“Na verdade, você tem que fazer com que um filme chegue ao mercado na hora que este mercado quer vê-lo. É um jogo de risco. Você pode ter um bom filme, mas o mercado, naquele momento, não querer ver aquilo. Acho que essas homenagens estão ocorrendo porque temos títulos, por volta de 50, que foram comercializados no mundo todo. Sempre me preocupei muito em diversificar a produção da LC Barreto. Cinema é uma indústria, e você tem que falar para o mundo”, afirma Lucy.
As dificuldades são grandes nos dias de hoje, a produtora admite. A LC Barreto está com três títulos inéditos que não têm previsão de estreia nos cinemas. “Vovó Ninja”, de Bruno Barreto, estrelado por Glória Pires, está pronto desde 2022.
“Mas o mercado está muito ocupado. Neste momento, o cinema brasileiro está com 1% do mercado (de exibição). Chegamos a ter 42%, só que hoje o cinema é ocupado pela produção americana. As cinematografias locais, inglesa, francesa, italiana, alemã, têm seus sistemas de cotas de tela para se protegerem. É preciso ter uma regulamentação do mercado, pois o cinema brasileiro está completamente exposto, desregulamentado”, comenta a produtora.
Há outros dois títulos à espera de verba para conclusão, “Deus ainda é brasileiro”, de Cacá Diegues, e “Traição entre amigas”, outro de Bruno Barreto, com Larissa Manoela. Ambos foram rodados e montados, mas precisam ser finalizados.
A LC Barreto nasceu como uma empresa familiar e permanece como tal – além dos dois filhos cineastas, o casal fundador tem a caçula Paula Barreto, produtora, e vários netos envolvidos em suas produções.
Lucy nasceu em Uberlândia e logo se mudou para a vizinha Araguari, onde o pai, cardiologista, foi convidado para criar o Hospital Santa Lúcia. Foi no Cine Rex, vizinho de sua casa, que ela descobriu o cinema – primeiramente com “Tarzan” e “O Gordo e o Magro”. Era pequena, morou ali somente até os 9 anos, porém o dono do cinema sempre deixava a menina entrar.
Piano
Mas seu objetivo não estava na tela grande, e sim na música. Começou a ter aulas de piano aos 4 e, já no Rio, aprimorou-se nos estudos. Quando conheceu Barretão, havia vencido um concurso e conseguido uma bolsa para o Conservatório de Paris. Os dois namoraram alguns meses, e ela partiu para a França, para uma temporada de um ano.Nas férias, ao retornar ao Rio, os dois se reencontraram. Lucy tinha conseguido renovar a bolsa, e o namorado decidiu ir também para Paris, como correspondente estrangeiro para “O Cruzeiro”.
Os planos da musicista mudaram por vontade própria. “Enquanto meus companheiros (de conservatório) tinham que estudar quatro, cinco horas por dia, eu precisava de oito. Conversei com um professor e perguntei-lhe o que ele pensava de mim como intérprete. Ele me disse que eu tinha um grande sentimento, bom gosto, mas que não tinha boas mãos. Peraí: não tenho boas mãos? Sou perfeccionista, se não tenho o instrumento básico para ter sucesso, vou ser professora de piano.”
Em Paris, o namorado não pensou duas vezes. “Ele me disse que deveríamos nos casar. Recentemente, o Luiz Carlos me lembrou que eu disse: ‘Não posso me casar com você. Tenho 20 anos, não sei nem quem eu sou direito.’” Ele, por seu lado, insistiu: “Deixa de bobagem, vamos nos casar, levar nossa vida”. Casaram-se. A lua de mel foi no Festival de Veneza de 1954.
Na volta ao Rio, depois de uma reportagem na Bahia, Barretão conheceu Glauber Rocha (1939-1981) e quando este foi filmar seu primeiro título, “Barravento” (1962), ele se envolveu com o Cinema Novo. Escreveu o roteiro de “O assalto ao trem pagador” (1962), de Roberto Farias.
“Neste momento, fomos morar na Rua 19 de Fevereiro, número 138, em Botafogo, que foi a casa do Cinema Novo. Tinha um quintal imenso, um pavilhão ao fundo, porque eu queria um lugar onde meus filhos não precisassem ir para a pracinha, fossem livres para brincar”, relembra Lucy.
Pouco depois, ela mesma colocou a mão na massa. Estreou no cinema fazendo assistência de continuidade de “Vidas secas” – Barretão foi o diretor de fotografia e um dos produtores. Depois, em 1968, Lucy fez assistência de direção de arte em “Os herdeiros” (1968), de Cacá Diegues.
Nunca mais parou, assim como toda a família. Até sua mãe, Lucíola, que viveu até os 101 anos, passou a produzir os filmes. Vendeu um apartamento para bancar “Tati, a garota” (1973), estreia do neto Bruno em longas. Na direção, Lucy só se aventurou uma vez, no documentário “Grupo Corpo 30 anos – Uma família brasileira” (2007), que codirigiu com Fábio Barreto e Marcelo Santiago.
Ela diz ter um carinho especial pelo filme – além do piano, dançou balé. Na sessão de amanhã do documentário, Lucy estará no Humberto Mauro, ao lado de alguns integrantes do Corpo. Os irmãos Rodrigo e Paulo Pederneiras já confirmaram presença.
Destaques da programação
Neste fim de semana
» Hoje (11/8)
17h – “Menino do Rio” (Antônio Calmon, 1982)
19h30 – “Dona Flor e seus dois maridos” (Bruno Barreto, 1976) – Exibição em 35mm. Sessão com a presença de Lucy Barreto e comentários de Rodrigo Sampaio e Gabriel Matavel
» Sábado (12/8)
18h – “O quatrilho” (Fábio Barreto, 1995) – Sessão com a presença de Lucy Barreto e comentários de Laura Godoy
20h45 – “Grupo Corpo 30 Anos – Uma família brasileira” (Lucy Barreto, Fábio Barreto e Marcelo Santiago, 2006). Sessão com a presença de Lucy Barreto e integrantes do Grupo Corpo
» Domingo (13/8)
18h – “Bye bye Brasil” (Carlos Diegues, 1980). Exibição em 35mm.
20h – “O que é isso, companheiro?” (Bruno Barreto, 1997). Exibição em 35mm.
. Exibições on-line gratuitas
(durante todo o período da mostra, na plataforma do cinema)
“O Barão Otelo no barato dos bilhões” (Miguel Borges, 1971)*
“Dona Flor e seus dois maridos” (Bruno Barreto, 1976)
“Bye bye Brasil” (Carlos Diegues, 1980)
“Aventuras de um paraíba” (Marco Altberg, 1982)*
“Menino do Rio” (Antônio Calmon, 1982)
“Garota dourada” (Antônio Calmon, 1983)*
“Romance da empregada” (Bruno Barreto, 1988)
“Bossa nova” (Bruno Barreto, 2000)*
“O casamento de Romeu e Julieta” (Bruno Barreto, 2005)*
“Caixa dois” (Bruno Barreto, 2007)*
“O homem que desafiou o diabo” (Moacyr Góes, 2007)
“Polaroides urbanas” (Miguel Falabella, 2007)*
*Exibição exclusivamente on-line
LC BARRETO – 60 ANOS FILMANDO O BRASIL
Desta sexta (11/8) até 24/8, no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3236-7400). Entrada franca (os ingressos devem ser retirados na bilheteria uma hora antes de cada sessão). Programação completa no site da Fundação Clovis Salgado.