'Vejo o Bolinho muito querido pelas pessoas. Sinto o retorno muito forte, a exposição tem um fluxo grande de visitantes e de postagens nas redes sociais. Fiquei pensando: nossa, que bom saber que levei até lá pessoas que talvez nunca entraram num museu'
Raquel Bolinho, grafiteira
Grafite e picho – marcas registradas da rua e perseguidos por tantos anos – agora colorem espaços do respeitado Sesi Museu de Artes e Ofícios (MAO), em Belo Horizonte, que exibe até 19 de agosto a exposição “Bolinho x Goma: Articulações urbanas”.
Divididas em dois espaços, as obras remetem aos 14 anos do personagem Bolinho, “morador” de muros, pilastras e viadutos da capital mineira, e à trajetória do mineiro Goma, grafiteiro e pichador cujo talento é reconhecido nacionalmente.
Com telas, esculturas e instalações, a exposição tem levado público considerável ao Museu de Artes e Ofícios, que enfrentava período de baixa visitação depois da pandemia.
Mostras atraem 250 visitantes por dia
Foram 915 pessoas na noite de abertura, em 14 de julho. Em menos de um mês, a mostra já somava 3.625 visitantes. Com média de 250 pessoas por dia, a exposição é considerada marco da valorização da arte urbana da capital mineira.Quem passa pelas ruas de Belo Horizonte e da região metropolitana certamente já deparou com bolinhos coloridos, cheios de caras e bocas, pelos muros e pilares de viadutos. A responsável por esses divertidos personagens é a mineira Raquel Bolinho, que desenha diferentes versões do mascote desde 2009.
Dentro do museu, Bolinho surge em traços de outros criadores para comemorar seus 14 anos. Na primeira instalação, há telas, pinturas nas paredes e esculturas de Raquel realizadas entre 2021 e 2022, durante as atividades do projeto BH é Quem.? Nessa fase, ela trabalhou com os artistas Efe Godoy, Mac Júlia, Valmir Jr. e Drones. No MAO, Bolinho foi recriado por Fênix, Clara Valente, Kesa, Comum, Now e Goma.
“Esta exposição vem sendo criada há bastante tempo. As telas expostas são pinturas minhas com outros artistas, realizadas no processo de ateliê aberto. A ideia era de que as pessoas pudessem acompanhar a pintura sendo feita e entender como funciona a interação entre dois artistas”, explica Raquel.
Além de comemorar a longevidade do personagem, a mostra no Museu de Artes e Ofícios impulsiona outra proposta de Raquel: estimular novas pessoas a criar.
“Este ano, a gente fez outra tela, coletiva e muito especial. Comecei a pintá-la em um evento do Bolinho. Todo mundo que passava por lá pedia para fazer o seu traço nela. Várias pessoas fizeram o bolinho da maneira delas. Muitas crianças pintaram também. Foi uma forma de incentivar a galera a criar e a desenhar”, explica a grafiteira.
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A exposição do MAO se tornou um sucesso entre públicos de todas as idades. A proposta de levar o universo do grafite para dentro do museu estimula novas pessoas a conhecerem este espaço de arte, considerado elitizado – pelo menos até agora.
“É uma felicidade grande, porque vejo o Bolinho muito querido pelas pessoas. Sinto o retorno muito forte, a exposição tem um fluxo grande de visitantes e de postagens nas redes sociais”, comenta Raquel. “Fiquei pensando: nossa, que bom saber que levei até lá pessoas que talvez nunca entraram num museu.”
Arte urbana rompe fronteiras
“Bolinho x Goma” dá voz e espaço à arte urbana. Pichações e o personagem compartilham o mesmo território no Museu de Artes e Ofícios – assim como ocupam muros e paredes nas ruas. É simbólica a presença ali de João Marcelo Capelão, o Goma, um dos principais nomes do grafite e do picho de Belo Horizonte.“Quando comecei o diálogo com o museu sobre a possível exposição, eles me pediram para convidar outro artista. De imediato, pensei em procurar alguém que trabalhasse nas ruas”, explica Raquel.
“O Goma é um dos maiores pichadores que temos aqui em BH. Dificilmente ele teria um espaço assim no museu. Esta foi a oportunidade perfeita para mostrar às pessoas a história dele”, afirma a criadora do Bolinho.
“O picho sofre muita resistência e preconceito, continua marginalizado. Não o aceitam como arte. O grafite já cresceu muito, hoje o vemos em propagandas, roupas, em vários lugares. Mesmo assim, os espaços para a arte urbana são muito limitados. Para muita gente, ainda é surpreendente pensar que um grafiteiro está expondo no museu”, comenta Raquel.
'Fiquei bem feliz. (A mostra) Teve repercussão grande e me surpreendeu, porque bateu recorde no museu. Muita gente que eu nem esperava me ligou para dar os parabéns. Foi uma novidade muito positiva'
Goma, pichador e grafiteiro
Cela de cadeia dentro do MAO
Pela primeira vez, a grafia urbana de Goma ocupa paredes de um museu, em “arteFATOS”. Isso ocorre depois de João Marcelo Capelão espalhar suas tags pelos mais diversos locais da capital há mais de 20 anos.
Goma conta que esta história começou na carteira da escola. A vontade de deixar sua marca registrada por onde passasse tomou conta dos pensamentos daquele garoto nascido e criado no bairro Ipanema, na Zona Noroeste de BH.
Corretivo escolar, bisnaguinha, spray, canetão, pasta de dente e marmitex são alguns dos instrumentos já utilizados por Goma em seu picho. Essas ferramentas enfeitam espaços do Museu de Artes e Ofícios.
“Minha ideia foi relatar, mostrar tudo o que já usei para pichar. Desde o começo, com os corretivos, até hoje, com os sprays. Quis deixar no museu algumas coisas que marcaram a minha história”, afirma Goma.
'O picho sofre muita resistência e preconceito, continua marginalizado. Não o aceitam como arte. O grafite já cresceu muito, hoje o vemos em propagandas, roupas, em vários lugares. Mesmo assim, os espaços para a arte urbana são muito limitados. Para muita gente, ainda é surpreendente pensar que um grafiteiro está expondo no museu'
Raquel Bolinho, grafiteira
Além da escrita urbana, “arteFATOS” traz instalações inspiradas em momentos cruciais da trajetória de Goma. “Na exposição, tem uma cama, que representa o meu eu mais novo. Certa vez, quando era pequeno, fugi de casa para pichar. A polícia me pegou e me levou para delegacia. Quando meu pai ficou sabendo, comprou uma corrente e me prendeu na cama, para nunca mais fazer isso. Durou uma noite, porque a minha mãe não deixou. Mas me marcou bastante”, relata.
No fundo da sala, outro espaço chama a atenção. Há ali uma cela, com grades, beliches e paredes pichadas representando a vida de Goma na prisão.
Goma foi preso sob acusação de pichar monumentos e espaços públicos, além da Igreja de São Francisco de Assis, a Igrejinha da Pampulha.
“A cela é a parte mais pesada e marcante da exposição. Ela simboliza as três vezes que fui preso por causa de pichação. Nas três, eu não tinha nada a ver com aquilo. Só fui preso porque eles queriam que eu dedurasse quem pichou aqueles lugares”, afirma o artista.
Em 2019, Goma recebeu diploma de honra ao mérito na Câmara Municipal de Belo Horizonte, durante as comemorações da Semana do Hip Hop. Houve polêmica. De um lado, criticou-se a homenagem ao pichador; de outro, defendeu-se a importância da arte urbana, alvo de preconceito. Destacou-se também que o homenageado fora acusado injustamente de pichar monumentos públicos.
Orelhão: suporte para o picho
O famoso orelhão, telefone público instalado nas ruas brasileiras até o início dos anos 2010, também faz parte de “arteFatos”.
“A gente tirava as plaquinhas e pichava aquele papel que tinha os números públicos. Eu não tinha dinheiro para fazer coisas maiores, então essa era a solução”, conta Goma.
Adepto da arte das ruas, ele revela que nunca cultivou a vontade de expor em museu, mas foi surpreendido pela recepção aos trabalhos exibidos no MAO, agradecendo o apoio do curador Alonzo Pafyeze e de sua equipe.
“Fiquei bem feliz. Teve repercussão grande e me surpreendeu, porque bateu recorde no museu. Muita gente que eu nem esperava me ligou para dar os parabéns. Foi uma novidade muito positiva. Já estamos planejando levar a exposição para outros lugares”, afirma Goma.
“BOLINHO X GOMA”
Em cartaz até 19 de agosto, no Sesi Museu de Artes e Ofícios (Praça Rui Barbosa, 600, Centro). O espaço funciona de terça a sexta-feira, das 11h às 17h, e sábado, das 9h às 17h. Informações: (31) 3248-8600.
* Estagiária sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria
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