A castração é a maneira mais humilhante para ferir um homem. Uma violenta (e detalhada) sequência de emasculação, logo seguida de morte, dá início a "Longas lâminas" (Rocco), novo romance (o de número 13) do escritor escocês Irvine Welsh, de 64 anos. Não se espere muito da vítima. Parlamentar conservador da Escócia, era depravado, racista e corrupto.





O assassinato cruel abre espaço para outros crimes do mesmo estilo, sempre com vítimas que já foram algozes. O detetive Ray Lennox é o responsável por investigar o caso. Traumatizado, caótico, mas também nobre, Lennox não demora a simpatizar com as atitudes do justiceiro - o próprio policial carrega fantasmas de uma infância de violência sexual.

A narrativa, intensa e fragmentada, coloca o protagonista se envolvendo com o movimento dos direitos trans. Logo ele, que passa a vida trabalhando ao lado de homens mentalmente desequilibrados e sexistas. Não demoramos a perceber que o grande vilão é o establishment. 

Ainda que em essência seja uma trama detetivesca, "Longas lâminas" foi escrito por Welsh, o autor que 30 anos atrás colocou um grupo de jovens transitando entre drogas pesadas, relacionamentos sem sentido e violência no submundo de Edimburgo. 





"Trainspotting" é o primeiro romance do escritor, e também sua obra mais conhecida. Graças à sua adaptação cinematográfica, lançada em 1996 por Danny Boyle, a história de uma geração perdida impacta ainda hoje jovens de todo o mundo. Welsh, três décadas mais tarde, mantém seu estilo. É irônico, por vezes cruel, com o que está estabelecido. 

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Embora pessimista quanto ao futuro não só da literatura, mas da cultura em geral, o escritor não tem muito do que reclamar. "Longas lâminas" é o segundo livro de uma trilogia protagonizada por Lennox. O livro original, "Crime" (2008), foi adaptado para uma série britânica há dois anos. No mês que vem, a segunda temporada chega à TV. E o terceiro livro já está pronto.

Músico frustrado que se tornou escritor, Welsh criou há um ano um selo dedicado à dance music, compôs 14 canções para o musical "Trainspotting Live", que está em cartaz até o final deste mês no Festival de Edimburgo, o maior evento de artes do mundo. 





Agora, para ser feliz, ele tem que tomar coragem, como revela em entrevista ao Estado de Minas. "Tenho um grande amigo escritor que nunca teve um celular na vida. Ele é um homem mais feliz. Conheço outro, que vive em Chicago, que jogou fora o telefone no ano passado e nunca esteve tão feliz. Hoje tem sempre uma tela empurrada na nossa cara. Quero me livrar do smartphone, mas é tão difícil. Espero que esses caras me mostrem como fazer."    


Ray Lennox traz características de um detetive clássico: é atormentado, tem uma vida pessoal complicada, abusa do álcool e das drogas. A partir destes elementos, você criou uma história de detetive absolutamente contemporânea. Por que decidiu incorporar o debate de gênero à trama? 

Todo mundo se sente deslocado, ninguém está totalmente feliz consigo mesmo, porque as mudanças aconteceram rapidamente e todos estamos desfavorecidos economicamente para concordar em maior ou menor grau com qualquer coisa. Isto significa que todos somos servos da internet e do capital da nuvem.

Tudo o que fazemos é lutar e tentar vender nossas identidades e descobrir os grupos certos. É algo que não conseguimos alcançar porque a sociedade está se movendo e mudando. Seja o homem rico, branco e tóxico, ou o jovem que está experimentando sua própria sexualidade, ninguém está feliz.

Nós estamos constantemente tentando ser compreendidos em um mundo que não nos compreende. Chegamos a este bizarro modelo econômico neoliberal com o tecnofeudalismo (hipótese que prega que as big techs recriam as lógicas política e econômica do sistema feudal). Não há nada que possamos fazer para impedir isto.





Como Ray Lennox se coloca neste mundo?

Ele é um cara que se protege no meio em que atua, já que não é exatamente um dos velhos dinossauros. Também não é o novo cara experiente em tecnologia. Ele tem que negociar com o policial que fica em frente ao computador monitorando as imagens que vêm das câmeras e também com o policial que está fazendo batidas na rua.

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Então ele está tentando lutar contra esses dois mundos, já que os acha bastante desconfortáveis. Não é um cara que tem bens imóveis, não tem realmente um plano. É muito representativo ele ter um chefe, um velho policial, e sua primeira subordinada ser Drummond (uma mulher).

Ele é meio que uma mistura de tudo, mas não pertence a mundo algum, porque não é realmente um policial. Está na polícia por conta de uma agenda própria, já que ele próprio foi abusado (sexualmente).





A inadequação de Lennox é também sua?

Ao criar personagens, você coloca algumas características suas, obviamente. Mas quando está escrevendo, você também deve se desafiar para que obtenha alguma reação de si mesmo. Eu realmente não tenho empatia por muitos dos personagens, tampouco simpatizo com algumas de suas visões.

"Longas lâminas" é uma sequência de "Crime", que foi adaptado pela TV britânica em 2021, mas ainda não chegou ao Brasil. A segunda temporada da série será lançada em setembro. Até quando você vai escrever sobre Ray Lennox?

A segunda temporada está ainda melhor. É baseada neste livro. Fizemos algumas mudanças, mas o foco da história ainda é o mesmo. Já terminei o terceiro livro, "Resolution", que sai no ano que vem. 



Vários de seus livros foram adaptados para o cinema e a TV. Como você lida com as adaptações?

Escritores tendem a ser muito criteriosos com suas histórias (quando adaptadas). Eu quero que elas tenham tantas mudanças quanto possível. Quero pegar, rasgar e usar pedaços delas para algo que eu possa assistir, mas que não reconheça bem.



Quero ser surpreendido. Não quero exatamente a mesma coisa como está nos livros. Quero que a mesma história seja contada de uma maneira diferente. Se no palco ou na tela, isto realmente não importa. 


Aventando a possibilidade de que a terceira aventura de Lennox, "Resolution", possa ser adaptada, te pergunto: quando você escreve um romance chega a pensar numa possível adaptação dele para outro meio?

Não, porque se você não pensar naquela história como um livro, ele não funcionará como tal. O que aconteceu com a série "Crime" é que eu percebi, em certo momento, que entre o primeiro livro ("Crime") e o terceiro ("Resolution"), haveria uma história no meio.

Então escrevi a série como uma espécie de franquia. Nunca deveríamos ter a intenção de fazer isto, nunca foi o meu tipo de ambição, mas o fiz por ter sido algo divertido. Agora estou no meio da televisão e estou realmente gostando disto.

Obviamente temos que falar sobre "Trainspotting", além do mais porque são 30 anos desde sua publicação. Quão difícil foi para você, um escritor totalmente desconhecido, publicar o livro?

Comecei o livro em 1989, terminei em 1990, levei para a editora em 1991 e ele saiu em 1993. Foi fácil. A primeira editora que o enviei era a maior do Reino Unido e eles o publicaram absolutamente sem esforço algum.



Não é uma história comum para um escritor que, como músico, tentou conseguir de várias maneiras algum contrato com uma gravadora. Você sabe, eu apenas não era bom o suficiente. Foi muita luta pela música, mas nenhuma para escrever.

Você pensa muito neste livro? Te pergunto porque ele foi tão importante para você e para tanta gente. 

Para falar a verdade, não. Não penso em nenhum dos meus livros a não ser no que estou escrevendo no momento. Escrever um livro é basicamente um ato de desistir, já que você o dá para o mundo pela internet.

Minha principal experiência com "Trainspotting" se deu através da reação das pessoas com ele. Sou satisfeito por terem gostado, mas hoje ele não tem muito mais conexão comigo, assim como os outros livros que já escrevi.



Estou totalmente conectado com o que estou fazendo agora, mas ninguém sabe ou se importa com isto. Acho que esta é a maldição de qualquer escritor. As pessoas se importam com o que já foi feito, mas o que te entusiasma no momento não pode ser dividido com ninguém. É uma posição realmente estranha. 

No começo da entrevista você falou sobre o caos do mundo atual. Você consegue relacionar o mundo de hoje ao mundo da época em que escreveu "Trainspotting"?

Acho que o que traz "Trainspotting" para os dias de hoje e o que faz com que ele continue relevante é a nossa tentativa de nos resolver na vida sem trabalho remunerado. Se formos substituídos por robôs ou por alguma inteligência artificial, trabalharemos cada vez menos até não poder realmente sobreviver. Ou seja, faremos parte de um sistema que realmente não precisa mais de nós.

Você trabalha em diversas mídias: literatura, música, cinema, TV. No mundo das multitelas, como a literatura pode sobreviver?

Não sei. Não tenho certeza nem se a cultura pode sobreviver. Passamos de um tipo de cultura de rua para uma cultura da internet, na qual apenas reciclamos e remixamos coisas antigas.



Nós nos mudamos para uma sociedade pós-cultural. Tudo está se tornando sem sentido, a menos que aconteça algum tipo de revolução massiva que saia da tela. Não vejo nenhum futuro para a cultura do jeito que a conhecemos. Vamos apenas receber instruções. 

Por que continua a escrever?

Porque amo. Amo o tipo de liberdade que tenho. O livro é o meio definitivo de liberdade, onde você pode realmente expressar todas as suas ideias. Você não tem nenhum público emocional como a TV e o cinema. E uma editora não interfere da mesma forma que uma emissora ou uma produtora de cinema fariam porque você não tem realmente um público-alvo.


Qual livro mudou a sua vida e qual você gostaria de ter escrito?

"Trainspotting", porque me tornou famoso. Se você quer duas coisas que mudam a vida, elas são dinheiro e influência. Mudarão a sua vida para melhor ou não, tudo tem dois lados.



Agora, sobre escrever, seria algo como "O código Da Vinci", porque eu teria tanto dinheiro que nunca mais teria que escrever nada. Ou escreveria somente o que quisesse. Há também os livros que admiro muito, como "Ulisses" (de James Joyce) e clássicos como "Crime e castigo" (de Dostoiévski). São obras que realmente amo, mas estou satisfeito com aqueles que eu próprio escrevi. 

“LONGAS LÂMINAS”
• Irvine Welsh
• Tradução: Rogério Galindo
• Rocco (384 págs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)

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