Eduardo Moreira*
Especial para o Estado de Minas
Aderbal descansou e nós continuamos por aqui, um tanto mais órfãos, tentando recolher os cacos com a perda dessa figura extraordinária, pura generosidade e talento, que deixa um vácuo imenso no nosso teatro e em nossas vidas.
Companheiro fiel de todas as horas, Aderbal sempre estava na nossa lista de sonhos para ser nosso parceiro diretor e criarmos finalmente a nossa “epifania teatral” (a expressão jocosa, carregada de uma certa ironia, era dele).
Companheiro fiel de todas as horas, Aderbal sempre estava na nossa lista de sonhos para ser nosso parceiro diretor e criarmos finalmente a nossa “epifania teatral” (a expressão jocosa, carregada de uma certa ironia, era dele).
O Galpão conseguiu virar e se entender como Galpão, um grupo que pensa o teatro como lugar de integração coletiva e de aprendizado obsessivo, porque cruzou em seu caminho com um mestre como Aderbal.
Operário incansável dessa construção permanente e inesgotável que é o teatro, ele estava sempre ali, por perto, observando, aconselhando, se irmanando nessa loucura inquietante do aqui e do agora que sempre nos surpreende e que faz do ato teatral esse lugar único e insubstituível.
Operário incansável dessa construção permanente e inesgotável que é o teatro, ele estava sempre ali, por perto, observando, aconselhando, se irmanando nessa loucura inquietante do aqui e do agora que sempre nos surpreende e que faz do ato teatral esse lugar único e insubstituível.
Aderbal era o próprio teatro, encarnado de forma radical e sem nenhum tipo de concessão. Um teatro construído com absoluta amorosidade, companheirismo, alegria e, acima de tudo, uma enorme lucidez e uma infinita paixão.
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A primeira e arrebatadora impressão que ganhamos desse seu talento foram dois espetáculos que tive a felicidade de assistir. O primeiro, ainda na década de 1970, foi “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde, com Marília Pêra. Era um grito de imaginação e de provocação teatral.
Já no início dos anos 1980, foi a vez de “Mão na luva”,de Oduvaldo Vianna Filho, com Marco Nanini e Juliana Carneiro da Cunha. Outro jogo de pura teatralidade.
Farol
As duas montagens eram arrebatadoras e representavam uma lufada de esperança em meio à atmosfera sufocante de falta de liberdade e de opressão da medonha ditadura militar. Um farol que deixava claro como o teatro pode ser um lugar de encontro radical que nos reconecta com a vida.Sempre inquieto, Aderbal levou o teatro para a rua, montando, com o apoio da Prefeitura do Rio, inúmeras peças que eram adaptações de grandes autores da literatura brasileira. Nascia ali o projeto Cenas Cariocas, que era uma investigação não só sobre a ocupação do espaço das ruas, mas também sobre o próprio Brasil.
Aliás, Aderbal era um incansável perseguidor de um Brasil relegado ao esquecimento, revelando-nos autores e obras extraordinários do país, como “A mulher carioca aos 22 anos”, de João de Minas, “O púcaro búlgaro”, de Campos de Carvalho, e “O que diz Molero”, de Diniz Machado, além de outros autores, como Flávio Marcio, Aldomar Conrado.
Aliás, Aderbal era um incansável perseguidor de um Brasil relegado ao esquecimento, revelando-nos autores e obras extraordinários do país, como “A mulher carioca aos 22 anos”, de João de Minas, “O púcaro búlgaro”, de Campos de Carvalho, e “O que diz Molero”, de Diniz Machado, além de outros autores, como Flávio Marcio, Aldomar Conrado.
Pesquisador sem limites, Aderbal perscrutava novos lugares, promovia a inquietação de um teatro que se revelava em diferentes formas e inusitados espaços.
Duas experiências extraordinárias foram exemplos disso. A primeira foi a montagem do espetáculo “O tiro que mudou a história”, escrito por ele e que conduzia o público pelo espaço do prédio do Palácio do Catete/Museu da República, contando de maneira viva e inusitada os momentos finais da vida do presidente Getúlio Vargas.
Duas experiências extraordinárias foram exemplos disso. A primeira foi a montagem do espetáculo “O tiro que mudou a história”, escrito por ele e que conduzia o público pelo espaço do prédio do Palácio do Catete/Museu da República, contando de maneira viva e inusitada os momentos finais da vida do presidente Getúlio Vargas.
Outra experiência arrebatadora foi a montagem de “A morte de Danton”, de Buchner, encenada na cratera aberta para a construção da estação do metrô do Largo da Carioca. A montagem era uma metáfora do sufocamento do desejo de mudança num país destroçado pela violência de décadas de ditadura.
Movimento
Aglutinador por natureza, Aderbal criou um extraordinário movimento de ocupação dos teatros públicos também no Rio, que gerou o grupo/movimento Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, que, ocupando primeiro o teatro Gláucio Gil, em Copacabana, e, em seguida, o Carlos Gomes, no Centro da cidade, foi o responsável pelo maior movimento de renovação da história do teatro carioca e brasileiro, com a formação de uma geração de formidáveis e talentosos atores e diretores.Ali ele deixava sua assinatura definitiva, mostrando-nos como o teatro não tem limites, precisando a todo momento ser construído e desconstruído, numa permanente renovação e reinvenção.
Foi o convite feito por Aderbal que permitiu ao Galpão compartilhar desse projeto, levando nossos espetáculos de rua às praças da cidade, e a temporada do espetáculo “Álbum de família”, de Nelson Rodrigues, em 1991, no teatro Gláucio Gil. Ali aprendemos como o teatro precisaria estar sempre junto com o público, presente de forma indelével em parceria com a comunidade e renovando permanentemente seu valor social.
Três anos depois, estávamos mais uma vez juntos, quando Aderbal e seu Centro nos chamaram para apresentar “Romeu e Julieta” no palco do teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes.
Dali para a frente, estávamos sempre próximos, seja no Rio, em Belo Horizonte, Montevideo, Cádiz ou nos inúmeros festivais de teatro latino-americano em que estivemos juntos e por onde ele circulava com desenvoltura. Queridíssimo por onde passava, Aderbal era amado e admirado por todos, cativando gregos e baianos, com sua prosa inteligente e animada.
A sucessão de presentes epifânicos teatrais a nós oferecidos por sua genialidade seguiu com uma lista que contém pérolas como os já citados “O que diz Molero”, “A mulher carioca aos 22 anos”, “O púcaro búlgaro” e também “Hamlet”, “Moby Dick”, “As centenárias”, de Newton Moreno, e “Incêndios”, de Wajdi Mouawad, já aí em parceria com nossa querida e amada Marieta Severo, com quem fundou e administrou, junto com Andréa Beltrão, o teatro Poeira, em Botafogo.
Partidário do elemento essencialmente coletivo do ato teatral, ele sempre defendia a formação e a presença do grupo como pólo irradiador da criação, cunhando a jocosa expressão “teatro de morte anunciada” para definir as reuniões de elencos esporádicos, reunidos para a montagem de um determinado projeto teatral específico e que não tinha continuidade.
Dentre muitos de seus caminhos artísticos, que sempre irradiavam audácia e criatividade, seu processo de criação de romance-em-cena, em que mergulhava com radicalidade na força da narrativa, unindo de forma intensa teatro e literatura, era de uma coragem e de um despojamento que nos colocavam diante da mais pura teatralidade extraída da linguagem espinhosa da literatura. Aderbal nos dava certeza de que o teatro era sempre possível e capaz das maiores travessias, fazendo-se um permanente desafio.
No Galpão, sempre que pensávamos num novo projeto, seu nome estava na cabeça da nossa lista de possíveis diretores convidados. Chegamos a passar quase 10 dias juntos, na nossa sede, em 2014, tentando costurar o que poderia vir a ser uma montagem sobre o universo do futebol.
Infelizmente, nunca conseguimos concretizar nosso sonho de um projeto conjunto. As agendas sempre nos traíam, e fica aí a lição de não deixar para a frente o que precisa ser feito já.
Infelizmente, nunca conseguimos concretizar nosso sonho de um projeto conjunto. As agendas sempre nos traíam, e fica aí a lição de não deixar para a frente o que precisa ser feito já.
Nos nossos últimos encontros, seu entusiasmo pelo teatro e a vida pareciam um pouco contaminados por um temor e apreensão, gerados por receios por sua saúde e pela amargura de presenciar a tragédia que se abateu sobre o país, sobretudo a partir da deposição de Dilma Rousseff e do assalto e estupro da cultura do país, causados pela tomada do poder pela extrema direita. Parecia que ele pressentia que algo de trágico aconteceria.
Sem Aderbal ficamos tristes, órfãos, desolados de forma irremediável. Sobra um enorme vazio. Um vazio que só nos resta tentar preencher, reafirmando, a cada dia e sempre, através da prática do nosso ofício do teatro, este ato de amor e generosidade radical que ele nos transmitiu e ensinou.
O resto é silêncio.
*Eduardo Moreira é ator, diretor e um dos fundadores do Grupo Galpão.