O Brasil perdeu nesta terça-feira (15/8) a atriz Léa Garcia, de 90 anos, estrela negra que deixa importante legado para a cultura brasileira. Ela estava em Gramado, onde receberia o Troféu Oscarito no Festival de Cinema gaúcho, e não resistiu a um infarto. Desde sábado na cidade, a artista havia assistido a sessões dos filmes “Retratos fantasmas” e “Tia Virginia”.
Na tarde desta terça-feira, Marcelo Garcia, filho da artista, recebeu o troféu que seria dado à mãe. “Dona Léa deixa um legado muito grande e deixa lembranças. Esta homenagem que foi feita por vocês foi em vida, porque a Léa vive, ela está aqui, ela vai continuar”, disse Marcelo, no palco do festival De Gramado. A atriz deixou três filhos, três netos, dois bisnetos e uma tataraneta.
Em suas sete décadas de carreira, Léa Garcia lutou contra o racismo e foi exemplo para artistas negros de várias gerações. Lázaro Ramos publicou fotos com Léa nas redes sociais e agradeceu pelos anos de aprendizado.
“Não sei como fazer esta despedida, dona Léa. Dói. Sua vitalidade, sua força, sua jovialidade e seu talento sempre foram inspiradores. Poder trabalhar com a senhora foi um sonho alimentado por anos e realizado com muita celebração”, escreveu o ator. Ambos trabalharam em “Mister Brau”, que estreou em 2017, na Globo.
“Dói. Como dói ler isso. Obrigado pela vida que viveu e nos ensinou a viver”, afirmou o apresentador Manoel Soares. “Te honro e te honrarei sempre. Grata por tudo e por tanto”, despediu-se a atriz Isabel Zuaa.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou a importância da atriz para o Brasil: “Ao longo de seis décadas, Léa iluminou nossas telas em mais de 70 filmes e novelas, e também teve um papel muito importante como incentivadora para seguidas gerações de artistas negros na nossa cultura.”
“Imensa na TV e no teatro, foi inspiração e representatividade para uma legião que festejou muito sua carreira em papéis memoráveis e marcantes da nossa história”, disse Margareth Menezes, ministra da Cultura.
Da literatura para o palco
Léa Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1933. Na juventude, pensava em ser escritora. Aos 16 anos, havia decidido entrar para o curso de letras da Faculdade de Filosofia da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Nessa época, conheceu o intelectual e dramaturgo Abdias Nascimento (1914-2011). Casou-se com ele, que morreu em 2011.
Por influência do parceiro, entrou para o teatro. Estreou na peça “Rapsódia negra” (1952), montada pelo Teatro Experimental do Negro, grupo formado por Abdias Nascimento para combater o racismo e dar protagonismo aos afrodescendentes, sempre relegados a papéis menores.
Léa declamava versos de “Navio negreiro”, poema de Castro Alves, na cena que simulava a diáspora africana. Devido a essa participação, desistiu da carreira de escritora e decidiu ser atriz.
Integrante do Teatro Experimental do Negro, marco das artes cênicas brasileiras, Léa atuou em “O imperador Jones”, “Todos os filhos de Deus” e “Onde está a marca da cruz” – peças de Eugene O’Neill. Também encenou “O filho pródigo”, de Lúcio Cardoso; “Sortilégio (mistério negro)”, de Abdias Nascimento; e “O sapo e a estrela”, de Hermilo Borba Filho.
'Orfeu' nos palcos e nas telas
O sucesso veio com “Orfeu da Conceição”, peça de Vinicius de Moraes, em 1956. Léa ganhou destaque no papel de Mira. Inicialmente, interpretaria a protagonista Eurídice, mas, ao ler o texto, ficou encantada com a ciumenta ex-namorada de Orfeu.
Em 1959, o cineasta francês Marcel Camus dirigiu o filme “Orfeu negro”, a partir da peça de Vinicius de Moraes. O longa ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e, em 1960, deu o Oscar de melhor filme estrangeiro à França. Em Cannes, Léa, que fazia o papel de Serafina, concorreu ao prêmio de melhor atriz, mas perdeu para Simone Signoret.
No cinema, a atriz participou de “Ganga Zumba” (1963), dirigido por Cacá Diegues. Deu vida a Cipriana, a ex-escravizada amante do líder do Quilombo dos Palmares. Também rodou “Cruz e Sousa, poeta do desterro” (1998), de Sylvio Back; “Filhas do vento” (2004), de Joel Zito Araújo, rodado em Minas Gerais; “O maior amor do mundo” (2006), de Cacá Diegues; “Hoje tem ragu” (2008), de Raul Labanca; e “Acalanto” (2012), de Arturo Sabóia, entre outros.
A atriz estava entre os pioneiros da televisão brasileira. Sua estreia ocorreu no “Grande Teatro”, da TV Tupi, em 1950, ano da inauguração da emissora. Na Tupi, Léa participou do programa “Vendem-se terrenos no céu”, em 1963. Em 1968, na TV Rio, participou da novela “Os acorrentados”, de Janete Clair.
Em 1970, a carioca iniciou sua bem-sucedida carreira na TV Globo. O primeiro papel dela na emissora foi como a empregada doméstica Dalva em “Assim na terra como no céu”, novela de Dias Gomes. O patrão, vivido por Jardel Filho, levava a moça para eventos da alta sociedade, apresentando-a como a princesa de Tobocobucu. Em 1971, ela participou do sucesso “Minha doce namorada”, de Vicente Sesso, e, a seguir, de “O homem que deve morrer”, de Janete Clair.
No ano seguinte, um momento histórico: Léa Garcia fez parte de “Meu primeiro baile”, o primeiro programa gravado inteiramente em cores no Brasil. Também atuou na primeira versão de “Selva de pedra” (1972), grande sucesso de Janete Clair. Em 1973, contracenou com Paulo Gracindo em “Os ossos do barão”.
Em 1974, sentiu na pele a censura do governo militar, durante “Fogo sobre terra”, novela de Janete Clair. A personagem de Léa matava o patrão, mas a cena teve de ser mudada, porque censores consideraram o assassinato “mau exemplo”.
Vilã de 'Escrava Isaura'
A atriz brilhou como vilã Rosa em “Escrava Isaura”, novela que estreou em 1976 e fez sucesso até na China. Má, invejosa e cruel, a personagem perseguia a mocinha, vivida por Lucélia Santos, enciumada por causa do interesse do patrão, Leôncio (Rubens de Falco), pela moça. Léa chegou a ser agredida na rua por causa de Rosa.
Em 1980, pela primeira vez na TV ela fez uma personagem que militava pela causa negra. Em “Marina”, novela de Wilson Aguiar Filho, viveu Leila, professora de história de um colégio da elite de São Paulo. Quando a filha sofre preconceito, Leila contou a história de Zumbi dos Palmares aos alunos – e também ao telespectador.
Na década de 1980, a atriz trocou a Globo pela extinta TV Manchete, onde fez as novelas “Dona Beija” (1986), de Wilson Aguiar Filho, e “Helena” (1987), de Mario Prata. Em 1988, de volta a Globo, atuou nas minisséries “Abolição”, de Aguiar Filho, e “Agosto” (1993), de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil.
Retornou à Manchete, no final da década de 1990, para trabalhar em “Tocaia grande” (1995), de Duca Rachid, Mário Teixeira e Marcos Lazarini, e “Xica da Silva” (1996), de Walcyr Carrasco, marco da teledramaturgia brasileira. Na Band, atuou em “O campeão”, de Mário Prata e Ricardo Linhares.
Em rápida passagem pela Record, Léa gravou as novelas “Cidadão brasileiro” (2006), de Lauro César Muniz, “Luz do sol” (2007), de Ana Maria Moretzsohn, e “A lei e o crime” (2009).
O retorno definitivo à Globo ocorreu em 2016, em “Êta mundo bom!”, de Walcyr Carrasco, e “Sol nascente”, de Walther Negrão, Júlio Fischer e Suzana Pires.
Os últimos trabalhos de Léa Garcia foram as séries “Assédio” (2018), “Sob pressão” (2018), “Carcereiros” (2019) e “Arcanjo renegado” (2020), todas do Globoplay.