Ailton Krenak

Ailton Krenak diz contar com as bênçãos de 'São Drummond' em sua campanha pela cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras

Marcos Vieira/EM/D.A Press

'As instituições ocidentais estão sendo constrangidas a rever algumas injustiças que foram perpetuadas, que se alongaram por dois, três, quatro séculos de exclusão e de invisibilização de grandes contingentes de povos e culturas. Não só no Brasil. A ABL está se atualizando em relação à agenda global'

Ailton Krenak, escritor

Cento e vinte e seis anos depois de sua fundação por Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras (ABL) poderá ter, pela primeira vez em sua história, um escritor indígena exatamente na cadeira de número 5, que em 1977 acolheu Rachel de Queiroz, a primeira mulher integrante da instituição.


Longe de uma perspectiva pessoal, o escritor indígena Ailton Krenak, que em 29 de setembro completará 70 anos, sustenta que sua candidatura à ABL tem dimensão coletiva e sentido de reparação histórica.


“Só tem sentido se for uma reparação histórica, se, ao admitir a minha presença naquela academia, a instituição esteja se abrindo para uma questão de justiça histórica. Para o Ailton, ter assento na ABL não é uma ambição pessoal. Mas para a pessoa que se constitui no sujeito coletivo, esse gesto é para abrir a porta dessas instituições, assim como as cotas abriram as vagas nas universidades e hoje temos mais de 60 mil indígenas ali fazendo a sua formação em ensino superior. Alguém tem de começar isso”.


Sobre o historiador mineiro José Murilo de Carvalho, titular da cadeira de número 5, que morreu no último domingo (13/8), Ailton Krenak assinala: “Sei da importância da obra monumental do José Murilo, grande mineiro, e sempre admirei sua incrível capacidade de interpretar o Brasil, o que, como sabemos, não é nada fácil. Uma grande perda para a historiografia brasileira.”


Pensador, ambientalista, filósofo, poeta e escritor, o mineiro Ailton Krenak, integrante da Academia Mineira de Letras, é uma das vozes mais influentes na crítica à ação predatória de grupos seletos que se intitulam “a humanidade” sobre a Terra.


Em “Ideias para adiar o fim do mundo”, uma de suas obras de maior sucesso, traduzida em 19 idiomas, Krenak denuncia a armadilha do antropoceno: “As pegadas dos humanos, independentemente de qual tribo você seja, são tão pesadas que estamos prestes a receber o aviso de despejo. Gaia, o organismo vivo da Terra, já não consegue mais atender a toda nossa fúria por petróleo, minérios, madeira e terra”, diz ele, que recorre a Carlos Drummond de Andrade, a quem chama de seu “escudo invisível” para enfrentar as situações difíceis.

 

'A literatura indígena pode ser pensada como pretexto para o Ailton se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Mas não é a literatura. É a história de exclusão dos povos originários que me faz aceitar essa condição de candidato'

Ailton Krenak, escritor

 

 

O que representa a sua candidatura à Academia Brasileira de Letras (ABL) para os povos originários?
Se formos contextualizar essa experiência no século 21, podemos entender como um gesto de reparação histórica, que diz menos sobre o autor aqui, e mais sobre a Academia. As instituições ocidentais estão sendo constrangidas a rever algumas injustiças que foram perpetuadas, que se alongaram por dois, três, quatro séculos de exclusão e de invisibilização de grandes contingentes de povos e culturas. Não só no Brasil. A ABL está se atualizando em relação à agenda global. Nenhuma instituição, mesmo no Ocidente, está fora de uma exigência de correção ética, histórica. A circunstância de ter uma das pessoas dos povos indígenas na ABL conjuga questões de ordem política, moral e de ordem cultural. De ordem política, porque aquela casa criada por Machado de Assis não podia continuar ignorando que vivemos num país miscigenado, de índios, negros e brancos, e esse lema, inclusive, sustentou a narrativa oficial para configurar o Estado brasileiro, o mito da origem. Só que a maior parte das instituições insiste em deixar fora disso os negros e os indígenas. Olha o Senado, olha o STF, olha as instituições de privilégio. E isso ocorre de forma totalmente alienada, como se não estivéssemos vivendo uma constante deflagração das demandas de comunidades quilombolas, indígenas, pobres, deserdadas de tudo. A literatura indígena pode ser pensada como pretexto para o Ailton se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Mas não é a literatura. É a história de exclusão dos povos originários que me faz aceitar essa condição de candidato. Estou fazendo isso para que nenhuma pessoa indígena se sinta impedida de sonhar e de querer estar nesses lugares de privilégio que foram exclusivos a um tipo de brasileiro.

A Academia Brasileira de Letras tem perfil tradicional. Admitiu a primeira mulher, Rachel de Queiroz, 80 anos depois de sua fundação, em 1897. O senhor acredita que haverá sensibilidade dos acadêmicos para avaliar a candidatura do primeiro escritor indígena a disputar essa vaga?
Aceitar a minha candidatura significa ampla mobilização dos potenciais instalados na ABL para essa conexão ampla, admitindo múltiplos universos, pluriversos, onde a literatura não é uma só, a língua não é uma só, e onde as pessoas não refletem somente um desejo, mas que pensam mundos plurais. O gesto de me aceitar lá é um sinal para essa diversidade toda, étnica, de gênero, cultural. Acredito que a ABL tem a oportunidade de acenar agora para um amplo espectro desses que chamamos os brasileiros, admitindo uma pessoa com esse perfil lá dentro. Retardando isso, vai continuar carregando o prejuízo histórico de não conseguir transpor a fronteira cultural instituída pelo colonialismo. Somos um povo colonizado. Isso não é ofensa, é só constatação. O movimento que a Europa fez de buscar novos recursos no mundo a colocou aqui. E ela trouxe todos os aparatos, inclusive as instituições e academias. Então, temos de descolonizar essas estruturas se quisermos continuar a conviver com elas. Em outras regiões do mundo, essa possível confluência, para usar um termo de meu amigo Nego Bispo, não existe mais, pois a ruptura foi tão grave que não existe mais a possibilidade de trânsito entre as culturas nativas, originárias, e o estado de governança. Como na África do Sul, por exemplo, em que o apartheid criou feridas tão profundas que não dá para imaginar uma academia, seja qual for, admitir lá a presença do povo originário sem uma grande disputa. Aqui no Brasil, ainda temos uma grande disputa em relação a esses lugares de privilégio. E só são chamados de lugar de privilégio porque ainda estão com o olhar no passado.

 

'A ABL está fazendo um movimento para se abrir ao mundo, depois de ficar encerrada num projeto de consolidação da língua portuguesa e de se integrar a essa comunidade lusófona, que é a guia mestra da ABL'

Ailton Krenak, escritor

 

 

Que ações a ABL tem realizado para projetar poéticas não brancas e não tradicionais presentes em nossa sociedade?
A trajetória da ABL, desde sua fundação, se guiou por uma espécie de manifesto de origem, aquele que Machado de Assis imprimiu. Ela não se abriu para nada. Admitiu a primeira mulher, como se fosse uma excepcionalidade, apenas em 1977. A ABL está fazendo um movimento para se abrir ao mundo, depois de ficar encerrada num projeto de consolidação da língua portuguesa e de se integrar a essa comunidade lusófona, que é a guia mestra da ABL. São os países de língua portuguesa do mundo. Mas até aqui refratária para outras cosmologias e há um sentido determinante nisso. Somos um país colonizado, e quando temos um espaço de referência, ele geralmente é inaugurado pelas elites, seja na política, seja na cultura, que demoram a se abrir a outras participações. Temos instituições que, como diz a Lilia Schawarcz, o século 19 invadiu o século 20, e este invadiu o século 21. Talvez estejamos vivendo os últimos resquícios de uma ideia de instituições que têm de se manter fora da sociedade, para uma experiência em que as instituições se tornam implicadas com as comunidades em que elas nasceram e se desenvolveram.

O senhor já recebeu dois títulos de professor honoris causa, um pela Universidade de Brasília (UnB) e outro pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Como esses títulos repercutiram nas comunidades indígenas?

A primeira vez que me deram um doutor honoris causa, essa onda percorreu as aldeias do país inteiro. Diziam: “Um de nós pode ser doutor”. E agora temos cada vez mais jovens indígenas acreditando que podem ser doutores. Se o meu esforço agora, compartilhado com colegas e amigos do campo da literatura, e de certa maneira respaldado nesse sucesso editorial dos meus livros recentes, me levar à ABL, significa que todos os escritores indígenas estão habilitados àquela academia. Essa é a razão que me mobiliza.

 

'Drummond é o meu escudo invisível. Quando estou diante de uma situação totalmente indecifrável, convoco a poética dele para imaginar uma saída. E pensando no Drummond, e nessa situação da Academia Brasileira de Letras, acho que podemos dedicar este momento a São Drummond'

Ailton Krenak, escritor

 

 

Do conjunto de sua obra publicada e traduzida em 19 línguas, qual livro tem maior repercussão e qual é a mensagem dele?
Ironicamente, é o livro que saiu em 2019, inicialmente em português, e disparou em traduções no mundo inteiro, agora está sendo traduzido na Coreia do Sul. Já foi no Japão, na Turquia, na Eslováquia. A mensagem central de “Ideias para adiar o fim do mundo” é denunciar o antropoceno. É dizer que nós, globalmente, a humanidade caiu na armadilha do antropoceno. As pegadas dos humanos, independentemente de qual tribo você seja, são tão pesadas que estamos prestes a receber o aviso de despejo. Gaia, o organismo vivo da Terra, já não consegue mais atender a toda nossa fúria por petróleo, minérios, madeira e terra. Chegamos a alcançar um modo de vida tão inviável que no fim do mês de julho, entrando em agosto, o consumo de energia no planeta já correspondia a uma Terra e meia. O jeito de viver está tão determinado que as pessoas não conseguem pensar outro mundo. Enquanto que a mensagem de “Ideias para adiar o fim do mundo” é uma ideia de gente que suspende o céu, que canta, dança, celebra a vida de maneira tão radical, que pode se desfazer de todas as desgraças presentes no mundo e experimentar um instante de celebração da vida. A ideia dos paraquedas coloridos, alguém me perguntou numa palestra onde poderia adquiri-los. Respondi: “Olha, é uma disposição pessoal de imaginar mundos, é uma subjetividade. E quanto mais tiver capacidade de subjetivar e de imaginar mundos, mais se torna resiliente, começa a integrar com outros organismos o sentido de regenerar o organismo de Gaia, da Terra”. Deixa de ser um corpo estranho ao organismo da Terra e passa a cooperar com esse regenerante Gaia, para que a vida dos humanos também seja possível. Pois a vida dos humanos está ficando inviável. Se não mudarmos nosso modo de estar no mundo, em breve iremos derreter como lesmas numa calçada. Disse isso em Buenos Aires, foi grande a repercussão em torno da mensagem do livro.

Como se conectam as obras “Ideias para adiar o fim do mundo”, “A vida não é útil” e “Futuro ancestral”?

Os livros são um tríptico, uma conversa continuada, sem interrupção, em que estou fazendo uma crítica do sistema econômico global, uma crítica política aguda ao modo de administrar a vida no planeta, que é o modo econômico. O homo economicus está em vias de extinção. Eu já decretei que o homo sapiens já deu. Ele não consegue mais produzir uma poética da existência em que cabe todo mundo. A única narrativa que esse sapiens sabe reproduzir é de colonizar outros mundos – por exemplo, ir para Marte. Carlos Drummond de Andrade é um poeta muito querido, que fala da mesma região em que nasci, o Vale do Rio Doce, a sua Itabira, a minha Itabira, as nossas Itabiras, predadas, devoradas, moídas, comidas por aquilo que ele chama de máquina do mundo. Ele diz: “A treva mais estrita já pousara/ sobre a estrada de Minas, pedregosa,/ e a máquina do mundo, repelida,/ se foi miudamente recompondo,/ enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas”. Drummond é o meu escudo invisível. Quando estou diante de uma situação totalmente indecifrável, convoco a poética dele para imaginar uma saída. E pensando no Drummond, e nessa situação da Academia Brasileira de Letras, acho que podemos dedicar este momento a São Drummond.

 

• Leia a saudação de Maria Esther Maciel a Ailton Krenak durante a posse do autor indígena na Academia Mineira de Letras

 

 

Neste segundo semestre, o Senado Federal vai se deter sobre um projeto de lei que trata do marco temporal, que restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988. Como avalia essa iniciativa?
Os sem terra estão passando por uma CPI para explicar por que os sem terra são sem terra. Vivemos num país que não teve coragem de demarcar as terras indígenas e de fazer reforma agrária, mas que está muito disposto a fazer acusações a abrir investigações sobre quem sempre viveu excluído de qualquer privilégio. Uma criminalização da existência, como se estivéssemos barrando isso. Aquele discurso espontâneo que fiz na Assembleia Constituinte me volta agora. Um povo que vive em casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não ameaça ninguém. Esta frase que me vem, carregada de sentido e de afeto, era o último recurso que tinha para dizer àquele Congresso que precisava ter vergonha. É uma argumentação de alguém que quer viver em paz, mas que não foge à luta, e por isso consegue, em alguns momentos, dar relevância para coisas que parecem que não têm importância alguma.

LIVROS DE AILTON KRENAK

• “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 2020)
• “A vida não é útil” (Companhia das Letras, 2020)
• “Futuro ancestral” (Companhia das Letras, 2022)
• “O amanhã não está à venda” (Companhia das Letras, 2020)
• “Lugares de origem”, Ailton Krenak e Yussef Campos (Jandaíra, 2021)
• “O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos, no mesmo mundo”, de Ailton Krenak, Boaventura de Sousa Santos e Helena Silvestre (Autêntica, 2021)
• “Encontros”. Organização de Sergio Cohn (Azougue, 2015)
• “Tolerância intolerante De mal a pior”, de Ailton Krenak e Lilia Schwarcz (Editora da Universidade Federal da Bahia, 2020)
• “No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia”, de Ailton Krenak e outros. Organização: Luisa Duarte e Victor Gorgulho (Cobogó, 2020)