A cineasta franco-colombiana Paula Gaitán se inspirou na expedição Langsdorff para construir o enredo do longa “Luz nos trópicos”. Na incursão científica realizada no século 19, europeus vasculharam o território brasileiro em busca de amostras da fauna e da flora, também com o objetivo de conhecer os costumes dos povos indígenas.
Entre 1825 e 1829, a expedição percorreu cerca de 17 mil quilômetros – rota parcialmente retomada pela equipe de Gaitán. Os diários do barão Georg Heinrich von Langsdorff, líder da empreitada, só foram publicados em 1998. Revelam olhar generalizante sobre os indígenas e as riquezas naturais do país.
Manuscritos como o do barão exportaram para o mundo uma ideia de América que desconsidera a visão dos povos originários, além de imagens estigmatizantes sobre o continente. A iconografia construída pelo colonizador distorceu e até mesmo apagou a cultura indígena das representações do chamado Novo Mundo.
Fio condutor
Em “Luz nos trópicos”, a cineasta Paula Gaitán inverte radicalmente esse olhar: a visão dos povos originários é o fio condutor da narrativa. O protagonista Igor (Begê Muniz) busca reencontrar suas raízes, atravessando o continente para voltar à aldeia da nação kuikuro, no Alto Xingu.
Filmado nos Estados Unidos e no Brasil, o longa-metragem navega pelos rios do Pantanal e da Amazônia, exibe a rica vegetação e as tradições populares da América.
Paula Gaitán descreve o processo de filmagem como “complexo”. Rodado de forma itinerante, toda a equipe e os atores foram juntos a todas as locações. Participando ou não das gravações, estavam todos lá, incluindo a diretora. Com 68 anos, ela percorreu montanhas, rios e cavernas.
“O filme exigiu muito do nosso corpo e da nossa energia. Eu era uma das mais velhas da equipe e, mesmo assim, não podia me entregar ao cansaço. Se não conseguisse subir a montanha, não teria cena ali. Estávamos todos mergulhados no processo”, explica a cineasta.
Visualmente ambicioso, o filme contou com orçamento reduzido. Uma das soluções foi abrir mão de equipamentos de iluminação, utilizando apenas a luz natural.
“Criamos situações possíveis para planos muito complexos, usando a natureza como filtro. O filme tem imagens ousadas, mas elas foram feitas com extrema simplicidade”, explica Paula.
O projeto, que teve início em 2003, demorou cerca de 15 anos para se viabilizar. O roteiro foi modificado várias vezes. Segundo Paula Gaitán, ele buscou acompanhar as mudanças ocorridas no mundo.
“O filme não ficou estático, congelado no tempo. Ele foi se aperfeiçoando e metamorfoseando de acordo com as pessoas e lugares que foram me atravessando”, diz a diretora.
O longa dialoga com outras produções da cineasta, como “Uaka”, lançado em 1988, documentário que aborda a vida e as tradições do povo kamaiurá. De certa forma, “Luz nos trópicos” é fruto da experiência de Paula Gaitán em seus 40 anos de carreira. Ela é viúva de Glauber Rocha (1939-1981), mãe de Ava e Eryk Rocha, também cineastas.
“O contato com os povos do Alto Xingu não foi experiência isolada na minha vida. Realizei o meu primeiro longa-metragem naquela região. Por isso decidi voltar lá”, explica Paula.
“Essas relações se tecem muito lentamente. Não é apenas um filme, também é um encontro. É um espaço que vai se criando lentamente, para se ter acesso a ele de maneira orgânica e sensível. É algo muito mais profundo”.
Com mais de quatro horas, “Luz nos trópicos” não tem narrativa linear, apresenta cenas em diferentes ambientes, espaços e séculos. O longa estreou no Festival de Berlim, em 2020, e percorreu vários eventos no exterior.
Encontros com o público
Desde o mês passado, Paula Gaitán participa de eventos especiais no Brasil, encontrando-se com o público. Neste sábado (19/8), a cineasta chega a Belo Horizonte para participar, às 16h, de sessão no Centro Cultural Unimed-BH Minas. Os ingressos são gratuitos e a exibição faz parte da programação da Virada Cultural.Na capital da Alemanha, as cinco sessões ficaram lotadas, conta a diretora. “Era muito interessante ver quem conseguia chegar até o final, mas sempre tínhamos debates muito intensos”, afirma Paula.
“Adoro dividir minhas ideias e sentir que minha presença pode amplificar a experiência do filme. Fazer deste filme um evento é mais interessante do que apenas deixá-lo numa sala de cinema”, conclui.
“LUZ NOS TRÓPICOS”
Filme dirigido por Paula Gaitán. Com Begê Muniz, Carloto Cotta e Clara Choveaux. Exibição gratuita neste sábado (19/8), às 16h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes). Sessão com a presença da diretora.
* Estagiária sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria