'Não sou uma pessoa triste, mas uma pessoa contida. Tenho que aprender a rir, tenho que aprender a dançar. Então, esse tipo de coisa eu faço por meio da palavra'
Mia Couto, escritor
"Três metros, fique a três metros!" O senhor idoso que nunca vê ninguém se surpreendeu quando um homem mascarado bateu-lhe à porta. Nos poucos minutos que estiveram juntos, ele acabou se afeiçoando pelo suposto ladrão. Achou-o um pouco mentiroso, afinal, com aquela estranha pistola branca e o plástico cobrindo os sapatos, ele estava pronto para roubar e não deixar rastro algum. O senhor resolveu então que, na semana seguinte, quando o jovem e desajeitado ladrão voltasse, como havia lhe dito, ele deixaria que levasse sua velha TV.
"Um gentil ladrão", conto que abre "As pequenas doenças da eternidade" (Companhia das Letras), obra de Mia Couto recém-chegada às livrarias, fala não da pandemia, mas da solidão que acometeu milhões de pessoas no período inicial da crise sanitária mundial. Os textos curtos, compilados especialmente para a edição brasileira, tratam dos grandes males que afetam o mundo - seja o de ontem, seja o de hoje.
"Vocês, de Minas, falam dos causos. Quando é que um caso se transforma num causo? Quando nós somos capazes de ter um encontro com qualquer coisa do real que faz com que ele se converta em uma história. Essa produção é uma maneira de diminuir o peso da realidade que nos amarra", afirma o escritor moçambicano, que chega a Minas Gerais nesta semana.
Ao lado da belo-horizontina Conceição Evaristo, Mia Couto será homenageado na primeira edição da FliParacatu, que começa nesta quarta (23/8), na cidade do Noroeste do Estado. Ele terá três participações no evento, que vai até domingo (27/8), em debates com Itamar Vieira Jr., a já citada Conceição Evaristo e Sérgio Abranches.
Na entrevista a seguir, Mia Couto fala da produção literária, de Minas, do Brasil, de Moçambique e do mundo. "As ameaças que pesam sobre nós como um coletivo, como uma democracia, como um Estado de Direito são tão fortes que nos obrigam a não estar entretido sempre com pequenos problemas, como linguagem e palavras que nos dividem. Agora, é preciso encontrar um caminho juntos, mesmo errando, porque tanto no Brasil como no mundo estamos um pouco perdidos."
'Aquilo que é poético tem que ser poético mesmo, mas não estou à procura do bonito. O bonito não se procura. Ele próprio revela-se'
Mia Couto, escritor
"As pequenas doenças da eternidade" traz contos belíssimos, mas também tristíssimos. É difícil ser alegre diante de um mundo triste?
Lembro logo da canção do Gonzaguinha, que diz 'viver e não ter vergonha de ser feliz'. Acho que é uma vergonha, sim, porque há uma espécie de quadro religioso que condena, quase como se fosse um pecado, a alegria demasiada. A alegria tem que ser contida. O riso, a gargalhada, têm que ser moderados, como se a alegria total, a felicidade, fossem uma coisa mais ou menos diabólica. Portanto, já existe uma espécie de pressuposto que manda que a alegria seja bem administrada. Não sou uma pessoa triste, mas uma pessoa contida. Tenho que aprender a rir, tenho que aprender a dançar. Então, esse tipo de coisa eu faço por meio da palavra. Quero que a palavra ria, quero que a minha história provoque essa emoção nas pessoas, quero dançar através da palavra.
Seu primeiro encontro na FliParacatu será com Itamar Vieira Jr., no debate "Palavras para desentortar arados". Você acompanhou o debate criado entre ele e José Eduardo Agualusa sobre o racismo na crítica literária? Acredita que este tema possa estar presente no debate que farão em Minas?
O assunto do que o Itamar diz e aquilo que disseram sobre ele eu quero tratar com o próprio Itamar. Somos amigos, somos colegas de profissão, então há coisas que eu falarei com ele. Sobre o racismo na literatura, é evidente que a literatura não está fora do mundo. Ela é objeto do preconceito racial que recai sobre a própria escrita, sobre os escritores. Agora, o espaço literário - e tenho a certeza de que partilho dele com todos os escritores e evidentemente com o próprio Itamar - é um espaço que serve para fazer a negação disso, dessa categorização de quem escreve, de quem lê, por raça.
Você leva em consideração as críticas que fazem sobre seus livros?
Infelizmente, a crítica literária foi se tornando cada vez mais escassa. Ela foi substituída por uma coisa que é uma avaliação sumária das redes sociais. Agora, quando é a crítica, eu quero ler, sobretudo quando ela é negativa, quando sugere que eu deva ter uma atenção na minha escrita. Houve casos em que a crítica foi dura, e eu a assumi, quando não foi uma coisa de um ataque pessoal, mas quando foi sobre o meu texto. Muitas vezes ela me ajudou.
Poderia dar um exemplo?
A criação de neologismos, por exemplo. Algumas críticas chamaram a atenção que o empenho que eu tinha nisso poderia tirar o leitor daquilo que é essencial, que é a própria história. Eu queria tanto enfeitar a criatura, que seria a palavra, queria vesti-la de tal maneira que eu não percebia que a verdadeira beleza nasce de outra maneira, que aquilo poderia ser um artifício contra mim. Essa crítica me pareceu muito importante e eu não só a aceitei como, de algum tempo para cá, estou fazendo uma espécie de vigilância. Aquilo que é poético tem que ser poético mesmo, mas não estou à procura do bonito. O bonito não se procura. Ele próprio revela-se.
'Tenho a grande felicidade de viver em um universo muito metafórico, com culturas e visões de mundo muito diferentes'
Mia Couto, escritor
A quantidade de eventos literários de que você participa é enorme. Hoje, com as redes sociais, a presença de qualquer criador se torna mais pública, mesmo que ele não seja especialmente ativo (nas redes), como é o seu caso. Sente algum medo, ou cuidado, já que atualmente tudo se torna público demais?
Confesso que agora me contenho, me vigio, tenho algum medo. Fui convidado a um programa de grande audiência aqui no Brasil na televisão e não aceitei esse convite. Acho que realmente há um universo que nos distrai daquilo que é importante. Mas não sou contra a rede social. Houve uma conversa minha pública, mas por via do Zoom, em que a pessoa que estava conduzindo ficou me corrigindo. Falava de textos meus, como um texto meu, 'A gorda indiana'. Sugeriu que eu teria que repensar esses textos. A linguagem tem que ser questionada, ela não é inocente. Estou disponível para, em conjunto com outros, discutirmos isto. Mas não acho que alguém possa atribuir assim um estatuto de uma superioridade qualquer moral. Seja uma pessoa sozinha ou algum grupo de gente na sua bolha (não pode) impor que os outros sigam coisas que ela determina que seja correto, se tornar vigilante da linguagem dos outros.
Dos autores africanos, acredito que você seja um dos mais presentes no Brasil. Há algo que ainda não entendeu sobre o país?
São muitas vidas para entender uma nação, ou sequer uma pessoa. Acho que não me entendo, e estou sempre comigo. Acho que o Brasil tem dimensões múltiplas, uma profunda originalidade, que acho que deve salvaguardar. Eu continuo em um estado de paixão mesmo sabendo agora ver um Brasil mais verdadeiro. Eu mistificava muito, romantizava muito, nos primeiros encontros estava apaixonado. Então eu não via o Brasil, mas o Brasil que estava em mim. Acho que o Brasil é um bom exemplo daquilo que o mundo inteiro tem que enfrentar. As ameaças que pesam sobre nós como um coletivo, como uma democracia, como um Estado de Direito são tão fortes que nos obrigam a não estar entretidos sempre com pequenos problemas, como linguagem e palavras que nos dividem. Agora, é preciso encontrar (um caminho) juntos, mesmo errando, porque tanto no Brasil como no mundo estamos um pouco perdidos.
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Você já falou mais de uma vez que a poesia é a sua casa. Mas você faz poesia em prosa, como mostram os contos do novo livro. Como se dá a sua escrita? É um escritor ou reescritor?
Tenho a grande felicidade de viver em um universo muito metafórico, com culturas e visões de mundo muito diferentes. Todos os dias sou confrontado com esse universo "mágico". Lá (em Moçambique), todos são indígenas e vivem do meu lado, são meus vizinhos. Essa sabedoria, esse outro modo de pensar são muito vivos, estão muito presentes, não são uma coisa da ancestralidade (como no Brasil). É muito difícil não ser poeta nesse universo. Sobre o trabalho, estou sempre escrevendo, tenho um bloco de notas (que ele mostra para a repórter). Sou, de fato, muito um reescritor. Como sou comandado pelos próprios personagens, e eles são indomesticáveis, tenho que estar sempre a podar a árvore que plantei.
Você discute ou mostra uma obra quando está no processo da escrita?
Partilho a história que estou criando com os meus colegas de escrita. Faço isto sobretudo com o Agualusa e com gente da família. O simples fato de eu tentar resumir e contar verbalmente a história que está a ser escrita, colocá-la em uma espécie de palco, faz com que eu próprio perceba melhor o que estou a fazer.
Consegue escrever durante as viagens?
Muito. Como fico sem chão, tenho que encontrar uma relação diferente com o mundo. Escrevo muito dentro do avião, mas acho que é por medo. De repente eu tenho que sentir que não estou ali, tenho que criar outra condição, uma realidade em que o mergulho é mais forte do que o fato de estar dentro de um avião.
E o que está escrevendo agora?
Já estou chegando a umas 200 páginas. O meu receio agora é que já sei qual é a história toda, isto nunca aconteceu na minha vida. Sempre fui para um livro em que o que sabia era o princípio. Agora, que sei o que é a história, isto está me obrigando a ter outro método. É um romance que se passa no início da Primeira Guerra Mundial, no Norte de Moçambique. A África foi muito envolvida (no conflito que durou de 1914 a 1918), mas isto é ainda muito escondido. Pouco lembrado dentro da África mesmo. Em Moçambique teriam morrido talvez 150 mil pessoas, e não se fala disto. Mas isto é só um pretexto para falar de outra coisa que me interessa. Não quero fazer mais um romance histórico ou qualquer coisa que tenha de seguir a veracidade dos fatos. Quero falar da relação das pessoas com a escrita, com a pontuação da história.
“AS PEQUENAS DOENÇAS DA ETERNIDADE”
• Mia Couto
• Companhia das Letras (176 págs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book).
FLIPARACATU
O evento vai desta quarta (23/8) a domingo (27/8) em Paracatu. Programação completa em fliparacatu.com.br
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