A palavra feminicídio foi utilizada pela primeira vez pela socióloga sul-africana Diana Russell em 1976, no Tribunal Internacional sobre Crimes contra as Mulheres, organizado por ela em Bruxelas, Bélgica. Com o neologismo, a ativista, escritora e professora queria nominar assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero – ou seja, por serem mulheres.
No final daquele mesmo ano, a socialite mineira Ângela Diniz foi morta com quatro tiros (três deles no rosto) pelo namorado, o paulista Doca Street, em Búzios. É um dos feminicídios mais célebres do país. No Brasil, a Lei do Feminicídio entrou em vigor em 2015, e o colocou na lista de crimes hediondos.
Réu confesso, Street passou por dois julgamentos. No primeiro deles, em 1979, saiu livre do tribunal – a tese de seu advogado, o criminalista Evandro Lins e Silva, foi legítima defesa da honra. Somente no mês passado, 47 anos desde o assassinato de Ângela e 44 do supracitado julgamento,
o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a tese da legítima defesa da honra não pode ser usada para absolver acusados de feminicídio em julgamentos em tribunais de júri.
Crime gerou série, programa e podcast
Sistematicamente, o assassinato de Ângela Diniz, a chamada “Pantera de Minas”, volta à tona. Inspirou minissérie ficcional da Globo (“Quem ama não mata”, de 1982), foi tema de programa (“Linha direta – Justiça”, de 2003, também da emissora carioca, que enfrentou problemas judiciais para ir ao ar, a pedido do próprio Street), ganhou relato do próprio autor do crime (o livro “Mea culpa”, de 2006), virou podcast (“Praia dos Ossos”, de 2020, marco em podcasts narrativos no país).
“Ângela”, filme de Hugo Prata que chega hoje aos cinemas, traz muito pouco do que as histórias citadas apresentam. Nesta ficcionalização, o longa recupera os últimos meses de vida de Ângela Diniz, justamente o período em que ela conhece Street. A narrativa mostra como o idílio amoroso culmina no crime – os desdobramentos do assassinato são apenas citados no encerramento do filme.
A mineira Isis Valverde, de 36 anos (quatro a mais do que Ângela quando morreu), interpreta a “Pantera” com carisma e graça. Gabriel Braga Nunes, de 51 anos (nove a mais do que Street quando cometeu o crime), vive o namorado. No filme, o apelido não é citado, ele é sempre Raul, nome de batismo de Doca.
“Nos chamou a atenção que o advogado de defesa do assassino, para justificar o cliente dele, desqualificou a vida pregressa (de Ângela). Para nós, não importa o que ela fez com a vida, tinha o direito de ser quem quisesse. O julgamento foi um grande massacre, criou-se uma narrativa cheia de coisas plantadas. O filme veio para contrapor isso”, afirma Prata.
Rapidamente, o relacionamento começa, com ambos ainda comprometidos. Seguem-se sequências em festas e boates, com Ângela sempre muito sedutora e independente; Raul já demonstrando ciúmes.
A paixão os faz abandonar os respectivos pares e partir para a casa em Búzios, onde o crime ocorrerá na virada de 1976 para 1977. “Tentamos colocar no filme as angústias (da personagem), pois pouca gente deu voz a elas”, acrescenta o diretor.Vítima sem voz
O roteiro é de Duda de Almeida, mais conhecida pela série “Sintonia”, da Netflix. “O desafio foi entrar na perspectiva da Ângela, reconstruir as palavras e os sentimentos daquela mulher. Por mais que se fale da história, e o caso é muito documentado, não existe um programa filmado com entrevistas dela. Não se vê a Ângela elaborar e articular palavras. Então, as cenas com ela exigiam uma ficcionalização para que conseguíssemos dar voz à personagem.”
O filme mostra, passa a passo, como a paixão irrefreada deu espaço ao cotidiano de abusos verbais e físicos. Personagens ficcionais ajudam a construir a narrativa, como Tóia (Bianca Bin) e Moreau (Emílio Orciollo Netto), casal que acompanha Ângela e Raul até a casa em Búzios. Há a empregada da casa, Lili (Alice Carvalho), baseada em diferentes funcionárias próximas do casal na época do crime.
Hugo Prata chegou ao projeto de “Ângela” depois de lançar a cinebiografia “Elis” (2016). “Tive vontade de fazer mais uma biografia de uma mulher brasileira que merecesse ter a história contada, já que havia uma lacuna sobre o que aconteceu.”
Ângela Diniz teve três filhos com o marido, Milton Villas Boas, engenheiro de Belo Horizonte, de quem se desquitou no início da década de 1970.
Prata conseguiu contato com Cristiana Villas Boas, a filha do meio (única mulher) do casal. “Demorei a encontrá-la, é uma pessoa muito reservada. Me apresentei, e o primeiro encontro (em Belo Horizonte) foi muito emocionado. Ela me autorizou a contar a história, mas não acompanhou o processo (do filme). Conversamos poucas vezes”, conta o cineasta.
O crime ocorreu na Praia dos Ossos, na casa que lá permanece. Como é uma das praias mais habitadas de Búzios atualmente, não havia como filmar ali. O longa foi rodado em novembro de 2022 na Praia do Espelho, no Sul da Bahia. Foram três semanas nesta locação e o restante em São Paulo.
Novo olhar
Para diretor e roteirista, mesmo que o filme não explore o desenrolar do crime, pode trazer uma nova reflexão para o público. “Tem aquela frase do Carlos Drummond: 'Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras' (publicada pelo poeta e cronista na época do primeiro julgamento de Street), que perdura até hoje. Espero que o filme traga um olhar mais humano para ela”, diz Prata.
Duda de Almeida completa: “Comecei a escrever o filme com 32 anos, a idade que a Ângela tinha ao ser assassinada. Ela vivia em uma sociedade muito específica de uma época. Espero que as mulheres da minha geração não olhem para o filme (apenas) como a história da Ângela Diniz. Pois não importa se você sabe quem foi ela ou não, todo mundo já passou por uma Ângela na vida.”
“ÂNGELA”
• (Brasil, 2023, 104min., de Hugo Prata, com Ísis Valverde e Gabriel Braga Nunes)
• Estreia na sala 1 do Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 18h20 e 20h30, e na sala 1 no UNA Cine Belas Artes, às 16h e 20h.
• Estreia na sala 1 do Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 18h20 e 20h30, e na sala 1 no UNA Cine Belas Artes, às 16h e 20h.