Portador de coreoatetose, deficiência física rara decorrente de lesão cerebral, o dançarino Marcos Abranches é uma das atrações do Festival Acessa BH, projeto multicultural com foco em acessibilidade que começa nesta quinta-feira (14/9), na capital mineira. O artista paulistano vai apresentar o solo “Canto dos malditos”.
“Desde a gravidez da minha mãe, eu já era artista, mas só descobri esse meu lado com 17 anos, na plateia. Assistia a muitos espetáculos de dança com um grande amigo, que trabalhava em um balé”, relembra o Marcos, de 46 anos.
Coreoatetose não é doença. Trata-se do estado patológico que não afeta a inteligência do indivíduo, manifestando-se a partir de movimentos involuntários, intermitentes e irregulares da face e dos membros. Essa condição não impediu Abranches de se expressar por meio de seu corpo.
Pela terceira vez, Belo Horizonte recebe o festival, cuja programação vai até 30 de setembro, reunindo 30 artistas de várias partes do país. Peças, espetáculos de dança, contação de histórias, filmes, lançamentos de livros, rodas de conversa e oficinas fazem parte da programação, com entrada franca.
As apresentações contarão com legendas, intérpretes de libras, audiodescrição e acessibilidade física.
Nos palcos de Seul
Marcos Abranches vai abrir o festival hoje à noite, no Galpão 1 da Funarte. “Canto dos malditos” é inédito em BH. Há duas semanas, ele levou estse trabalho a Seul, capital da Coreia do Sul.
A produção da Abranches e Companhia tem roteiro baseado no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno (1957-2008), no qual narra sua trajetória sofrida por hospícios de Curitiba e do Rio de Janeiro.
“Meu trabalho é inspirado na obra escrita por um grande amigo pessoal, o Carrano. Quando jovem, a família o encontrou fumando maconha e decidiu colocá-lo no manicômio. Naquela época, as condições eram muito severas, havia até mesmo eletrochoque. Ele ficou lá por seis anos”, conta Marcos.
A história de Carrano deu origem ao premiado filme “Bicho de sete cabeças”, dirigido por Laís Bodanzky e protagonizado por Rodrigo Santoro. “Foi sucesso no Brasil e no mundo. Decidi fazer esse trabalho em homenagem ao meu amigo”, afirma o bailarino.
O solo de Marcos emocionou Carrano, que chegou a acompanhar o processo de criação da versão coreográfica de “Canto dos malditos”. “Ele chorava incansavelmente”, afirma Elder Fraga, sócio de Marcos.
O bailarino usa a própria deficiência como estudo para construir sua linguagem artística corporal. Abranches é o único coreógrafo brasileiro com paralisia cerebral a propor um estudo sobre dança contemporânea.
“Acho que transmito a evolução no sentido de falar sobre acessibilidade e diferença. É mudança de pensamento, um novo olhar. No Brasil, 20% de nossa população têm algum tipo de diferença. Então eu, como artista, procuro transmitir essa evolução”, afirma Marcos.
Ele iniciou sua carreira trabalhando com Sandro Borelli, coreógrafo e professor da Companhia Carne Agonizante. “Meu primeiro espetáculo, ‘Senhor dos anjos’, baseava-se na obra do poeta Augusto dos Anjos”, relembra.
'Acho que transmito a evolução no sentido de falar sobre acessibilidade e diferença. É mudança de pensamento, um novo olhar'
Marcos Abranches, bailarino
Abranches apresentou também “Jardim de Tântalo” e “Metamorfose”, baseado no clássico de Franz Kafka, dirigidos e coreografados por Sandro Borelli e Sônia Soares. Foi premiado no Brasil e no exterior.
Além de se apresentar, o bailarino e coreógrafo vai ministrar a oficina “Dança para todos os corpos”, nesta sexta-feira (15/9), das 14h às 17h. Ele também protagoniza o filme “O artista e a força do pensamento”, de Elder Fraga, que será exibido na quinta-feira (28/9).
Entre os mineiros que participam do Acessa BH está o grupo belo-horizontino Kinesis. Nesta sexta-feira (15/9), às 20h, ele apresenta o espetáculo “Tecituras em dança”, no Teatro João Ceschiatti do Palácio das Artes.
A companhia foi criada a partir do encontro das artistas Fernanda Maciel, Grazielle Mendes e Hortência Maia com a diretora Renatha Maia.
“Decidimos fazer um espetáculo, conversamos e as bailarinas disseram que queriam trabalhar com algo que dialogasse com questões do feminino. Assim, chegamos à pergunta: ‘o que nos falta?’. Cada uma criou o texto com suas particularidades”, conta Renatha.
Dores particulares se tornaram coletivas em “Tecituras em dança”, cujos movimentos denunciam pressões sociais ligadas à infertilidade, ao capacitismo e à falta de tempo, entre outras pressões enfrentadas pela mulher.
As coreografias expressam vivências de pessoas com deficiência na sociedade capacitista, que não as enxergam além das muletas – utilizadas pela dançarina Fernanda Maciel tanto no palco quanto na vida.
“Fernanda, nossa bailarina com deficiência, chegou à escola em 2019. Logo abordou a questão do capacitismo e da acessibilidade. Por meio dela, conheci o Acessa BH”, conta a coreógrafa.
“O festival provoca a sociedade a repensar o local de invisibilidade em que ela coloca pessoas com deficiência e, principalmente, artistas. Onde estão esses artistas? Eles existem? Por que a gente não os conhece?”, questiona Renatha.
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A ideia do Acessa BH surgiu em 2016, mas se concretizou em 2020. A produtora cultural Laís Vitral, criadora e curadora do projeto, fez uma viagem que lhe despertou a atenção para o fato de BH carecer de projetos artísticos com acessibilidade.
“A primeira vez em que assisti a um espetáculo com libras e audiodescrição, em 2016, em Pernambuco, falei: ‘Uai, gente, não temos isso em BH’. Depois descobri que parte significativa da nossa população é composta por pessoas com deficiência. Decidi, então, criar um evento que viabilizasse as artes dessas pessoas e trouxesse acessibilidade ao público”, conta Laís.
Em 2022, o IBGE registrou 18,6 milhões de pessoas com deficiência no país. Durante a pandemia, o festival promoveu edições nos formatos on-line e híbrido. Este ano, o eventol será totalmente presencial.
Pela primeira vez, haverá programação audiovisual. Serão exibidos quatro curtas e um longa – “O que pode um corpo?” e “Possa poder”, de Victor di Marco e Márcio Picoli; “Partindo do princípio que a Terra é plana, sou toda curva e desvio”, de Jéssica Teixeira; e “Big Bang”, de Carlos Segundo.
A agenda traz espetáculos inéditos a Belo Horizonte “O Subnormal – uma história de baixa visão”, criado por Cleber Tolini; “Corpo celeste”, assinado por Giovanni Venturini; “Adaptat”, idealizado por Lívea Castro e Nó Movimento em Rede; “Terra raiz”, de Sara Marchezini e Renata Mara; “O menino do olho que vê”, de Dudu Melo; “A óperária”, dos mineiros Brisa Marques e Samuel Samways; “Migrantes de si”, de Renata Mara e Samuel Samways; e “Lunáticas”, do grupo Sapos e Afogados.
ESPETÁCULOS
Hoje (14/9)
• 19h: Abertura oficial e apresentação de “Canto dos malditos”, de Marcos Abranches (SP). Galpão 1 da Funarte
Sexta (15/9)
• 20h: “Tecituras em dança”, da Cia. Kinesis de Dança (MG). Teatro João Ceschiatti
Sábado (16/9)
• 14h: Leitura do livro “DoroTEA, a peixinha autista” e roda de conversa sobre autismo e inclusão, de Bruno Grossi e Daniele Muffato (MG). Memorial Minas Gerais Vale
• 20h: “O subnormal – uma história de baixa visão”, de Cleber Tolini (SP). Teatro João Ceschiatti
Domingo (17/9)
• 19h: “Terra raiz”, de Renata Mara e Sara Marchezini (MG). Teatro João Ceschiatti
Terça (19/9)
• 20h: “E.L.A”, de Jéssica Teixeira (CE). Centro Cultural Unimed-BH Minas
Dia 21/9
• 20h: “Corpo celeste”, de Giovanni Venturini (SP). Galpão 3 da Funarte
Dia 22/9
• 16h: “Adaptat”, de Lívea Castro e Nó Movimento em Rede (PR). Jardins do Palácio da Liberdade
• 20h: “O jogo”, de Guilherme Théo e Oscar Capucho (MG). Teatro João Ceschiatti
Dia 23/9
• 17h15: “A operária”, de Brisa Marques, Samuel Samways, Carô Rennó, Jefferson Assis e Rafael Pimenta (MG). Cine Humberto Mauro
» 20h: “O menino do olho que vê”, de Pigmentar Companhia (MG). Teatro João Ceschiatti
Dia 24/9
• 19h: “Migrantes de si”, de Renata Mara e Samuel Samways (MG). Galpões 2 e 3 da Funarte MG
Dia 28/9
• 20h: “Lunáticas”, de Sapos e Afogados (MG). Galpão 1 da Funarte
Dia 30/9
• 11h e 16h: “Andanças urbanas”, da Cia Ananda (MG). Jardins do Palácio da Liberdade
Endereços
Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Funcionários). Cine Humberto Mauro e Teatro João Ceschiatti (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Funarte MG (Rua Januária, 68, Centro). Memorial Minas Gerais Vale e Palácio da Liberdade (Praça da Liberdade, Funcionários). Entrada franca. Programação completa: www.acessabh.com.br
* Estagiária sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria
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