Os ares da primavera chegaram ao Centro de Arte Popular, que abriga a exposição “Bonecas de barro: o viver do Vale”, com 23 peças de artesãs do Vale do Jequitinhonha. A curadora Uiara Azevedo não hesita em destacar o que considera um dos principais traços das esculturas: as flores.
“Parece ingênuo, mas é uma ingenuidade especial, poética, delicada, diz respeito ao lugar da resiliência mesmo. No lugar onde quase não tem água, onde não é possível cultivar aquelas flores, as mulheres as representam nas obras”, destaca Uiara, que divide a curadoria da exposição com Renata Fonseca.
Arrimos de família
As artesãs começaram a produzir as bonecas nos anos 1970, por uma questão de sobrevivência. Era comum maridos saírem de casa em busca de trabalho em outras cidades, cabendo a elas o sustento da família.
“As bonecas têm lugar à parte na produção artística do Jequitinhonha ao mostrar a força daquelas mulheres. Hoje, as peças estão em um valorizado lugar de mercado. Com o tempo, os maridos passaram a produzir cerâmica também, em vez de abandonarem o lar”, diz Uiara.
Há muitos bonequeiros em atividade no Vale, mas o recorte da curadoria mira a produção feminina, que passa de geração para geração. “A exposição reúne obras da filha, da neta e da nora de Dona Isabel, a precursora das bonecas de barro no Jequitinhonha”, destaca Uiara, referindo-se, respectivamente, a Glória Maria Andrade, Andreia Andrade e Mercinda Severa Braga.
Isabel Mendes Cunha (1924-2004) é considerada a bonequeira mais importante de Minas, reverenciada no universo das artes visuais.
Estão expostos trabalhos de Maurina Pereira dos Santos (Teca) e Aneli Brandão, que, assim como a família de Dona Isabel, são do distrito de Ponto dos Volantes, em Santana do Araçuaí. Também há bonecas de Irene Gomes e Maria José Gomes da Silva (Zezinha), ambas de Coqueiro Campo, no município de Minas Novas.
“As bonecas do Vale do Jequitinhonha são mais do que simples objetos artísticos. São testemunhas da resiliência, criatividade e identidade cultural das mulheres que as criam. Elas não apenas representam quem as criou, mas também simbolizam a beleza que pode surgir da conexão profunda entre a arte e a vida, entre o barro e a criatividade e entre as mulheres e sua terra”, diz Uiara Azevedo.
A assinatura de cada artesã está na expressão da boneca – algumas com feição mais masculina, outras de traços delicados e ainda aquelas de olhar profundo, o que, segundo a curadora, é característica marcante do trabalho de Zezinha. “Todas elas começaram a desenvolver rostos com mais personalidade”, explica a curadora.
Muitas esculturas são representações das próprias autoras. “Dona Zezinha, uma das principais artesãs do Vale, se coloca nitidamente, com óculos e rolinho de cabelo, o que tem a ver com autocuidado. Aquelas bonecas 'existem', com batom, vestidos estampados de flores e decotes”, ressalta Uiara Azevedo, que também é gerente de artes visuais da Fundação Clóvis Salgado.
Destaque no mercado de arte
Esta produção do Vale do Jequitinhonha, que faz parte do Patrimônio Cultural do Estado desde 2018, tem o seu espaço no mercado da arte. “Existe o reconhecimento do colecionismo em relação a esse trabalho, que passa a ser mais procurado. Depois que Dona Isabel faleceu, aumentou muito a procura por suas bonecas, o tipo de coisa que faz com que o mercado aqueça. Há galerias totalmente focadas na arte popular, que trabalham com nomes como Zé Bezerra e GTO, muito procurados. Colecionadores e galerias passam a acionar mais o Jequitinhonha”, diz Uiara.
Outra referência do Vale é Maria Lira, cujos trabalhos com pedra, barro e desenhos rupestres vêm ganhando reconhecimento no mercado internacional. Porém, a curadora Uiara Azevedo pondera: “Há um caminho para se construir ainda, embora a arte do Jequitinhonha já tenha conquistado seu lugar.”
“BONECAS DE BARRO: O VIVER DO VALE”
Centro de Arte Popular (Rua Gonçalves Dias, 1.608, Lourdes). Aberto de terça a sexta-feira, das 12h às 18h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 11h às 17h. Até 22 de outubro. Entrada franca.