Foi com certa incredulidade que os cinéfilos no último Festival de Cannes, em maio, notaram que "Assassinos da Lua das Flores", novo filme de Martin Scorsese, havia ficado de fora da mostra competitiva do mais importante evento do tipo no mundo, de onde ele saiu com a Palma de Ouro em 1976, por "Taxi Driver".
Falamos, afinal, do que é provavelmente o mais importante nome do cinema americano ainda em atividade, responsável por clássicos modernos como "Touro Indomável", "Os Bons Companheiros" e "Os Infiltrados", pelo qual ganhou seu único Oscar.
Aguardadíssimo, o novo longa foi exibido em caráter especial, mas nem por isso deixou de ser um dos mais disputados e bem avaliados de todo o evento, onde muitos julgaram que "Assassinos" tinha cacife para sair premiado com alguma coisa.
Mas, aos 80 anos, Scorsese não vê seu ofício apenas como o de um artesão, de alguém que cria, produz e lança filmes. Sua presença em Cannes se justificava, também, pelo fato de o cineasta ter ocupado, nos últimos anos, o lugar de um dos principais pensadores do cinema, defendendo a ida às salas e condenando a dominação do circuito pelos super-heróis.
"Não relegue os filmes à tela de casa", Scorsese deixou claro em entrevista a meia dúzia de jornalistas de diferentes países, da qual este jornal participou, num quarto de hotel em Cannes. O encontro aconteceu após exibir "Assassinos da Lua das Flores", que chega aos cinemas nesta quinta-feira (19/10 como a mais luxuosa investida do Apple Original Films, braço cinematográfico do gigante de tecnologia Apple, até aqui.
"Nós devemos questionar o que fazer para provocar o público e dizer a ele que venha e veja algo no cinema. Idealmente, haverá uma boa sala, assentos confortáveis, uma grande tela e a experiência comunitária", diz ainda, justificando que só aceitou fazer o filme e, antes dele, "O Irlandês", em parceria com plataformas de streaming porque um determinado tempo de exibição nas salas foi garantido pelas empresas.
A estreia de agora acontece em meio às aventuras do cineasta pelas redes sociais. Nesta semana, um TikTok em que ele comenta a recepção morna de "O Rei da Comédia" à época do lançamento viralizou, a exemplo do que tem acontecido com vários videozinhos que ele grava com a filha de 23 anos, Francesca. Neles, ela o desafia a decifrar termos de sua geração, para o delírio da cinefilia.
"Assassinos da Lua das Flores" narra um capítulo sangrento e real da nação indígena osage, que entre os anos 1910 e 1930 viu vários de seus membros, abastados após a descoberta de petróleo em suas terras, serem mortos em condições misteriosas e não devidamente investigadas. Leonardo DiCaprio e Robert De Niro retomam a parceria com Scorsese, se juntando à novata e elogiada Lily Gladstone.
Em "Assassinos" o senhor reuniu duas de suas musas, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. Fazer o filme foi mais especial por causa disso?
O senhor é forte defensor da experiência de ir ao cinema. O que o senhor acha dos críticos que, em Cannes, disseram que "Assassinos da Lua das Flores" deveria ser uma minissérie, em vez de um filme de três horas e meia?
Não é uma minissérie, é um filme. A questão é que com a dominação dos blockbusters nas salas de cinema e no cronograma dos estúdios, por mais bem-feitos que eles sejam, o público que deseja uma experiência mais madura tende a ver minisséries e séries, que é onde esse tipo de história [mais adulta] está hoje.
E muitos assistem a vários episódios em sequência.
Sim, eles estão fazendo maratonas, de qualquer forma. Então 'Assassinos da Lua das Flores' foi uma tentativa deliberada, de certa forma, de romper esse ciclo. Se o público pode ficar em casa assistindo à mesma coisa por cinco horas seguidas e? eu faço isso, não sempre, mas faço?, então eu acho que eles devem conseguir ver um filme por três horas e 26 minutos no cinema e compartilhar essa experiência.
Então a forma certa de assistir a um filme é no cinema, não em casa?
Não relegue os filmes à tela de casa. Esses críticos que você citou estão analisando o cinema ou o nosso mundo moderno? Nós devemos questionar o que fazer para provocar o público e dizer a ele que venha e veja algo no cinema. Idealmente, haverá uma boa sala, assentos confortáveis, uma grande tela e a experiência comunitária.
Eu venho de uma época em que os filmes às vezes passavam das quatro horas de duração. Claro que havia obras como 'A Volta ao Mundo em 80 Dias' [de 1956], que era um diário de viagem enorme e eu não acho que seja um bom filme, ou 'Ben-Hur' [de 1959]. Há títulos melhores que esses, mas vê-los naquela tela? Dito isso, há maneiras genuínas de tentar trazer o público de volta aos cinemas para assistir a filmes com mais de duas horas de duração.
Eu venho de uma época em que os filmes às vezes passavam das quatro horas de duração. Claro que havia obras como 'A Volta ao Mundo em 80 Dias' [de 1956], que era um diário de viagem enorme e eu não acho que seja um bom filme, ou 'Ben-Hur' [de 1959]. Há títulos melhores que esses, mas vê-los naquela tela? Dito isso, há maneiras genuínas de tentar trazer o público de volta aos cinemas para assistir a filmes com mais de duas horas de duração.
Não é uma contradição defender a experiência de ir ao cinema depois de fazer "O Irlandês" para a Netflix e "Assassinos da Lua das Flores" para o Apple TV+?
Eu acredito que essas plataformas podem apresentar um caminho para o futuro do cinema. E a Apple me garantiu uma certa quantidade de semanas nas salas de cinema, por isso os escolhemos para produzir o filme.
Falando em futuro do cinema, o senhor costuma publicar vídeos de TikTok com a sua filha, e a plataforma virou um lugar para novos talentos do audiovisual.
Apesar de eu estar aqui falando de um filme de três horas e meia e de o James Cameron dizer que não quer ninguém reclamando da duração de um filme, o cinema de cem anos atrás, de certa forma, foi embora. Então, com o TikTok ou isso e aquilo, coisas nas quais eu nem sei mexer direito, há uma nova linguagem. E o futuro está lá, porque o futuro é dos jovens. O que eles têm a dizer é a chave. Mas eu pergunto: haverá espaço para que os jovens se expressem por mais de uma, duas horas?
Além da longa duração, outra marca importante do seu cinema são os personagens com trauma e culpa. "Assassinos da Lua das Flores", porém, fala mais sobre a ausência de culpa, não acha?
Sim, é o que eu acho. Mas o Ernest [personagem de Leonardo DiCaprio] se sente culpado, de certa forma. Ele diz que não, ele tenta fingir que aquilo não está acontecendo, é verdade. Mas o filme questiona o quão cúmplices podemos ser diante dos erros dos outros. E isto é o que somos como seres humanos.
Falando em trauma e culpa, quais foram os cuidados tomados ao filmar essa história, já que fala sobre o passado violento da nação indígena osage?
Olhei para esse projeto e pensei que ele deveria ser executado com o máximo de respeito, o máximo de compreensão de quem eles são nao? apenas agora, mas também antes, quando o filme se passa, e antes disso. É muito difícil, mas o ponto-chave é respeitar as culturas e povos diferentes dos nossos. O acordo que fizemos foi de sermos o mais honestos possível, sem sermos condescendentes.
O senhor, aos 80 anos, um homem americano branco, consegue pensar com esse cuidado em mente. O que diria para outros como o senhor que estão por aí fazendo cinema e não veem as coisas dessa forma?
Não há desculpa, realmente não. Temos que ir até o fim, melhorarmos como pudermos, mesmo que estejamos fazendo entretenimento. O que é meio ruim de dizer, porque entretenimento também pode ser arte as? vezes boa, às vezes nem tanto. Os ingleses e os franceses nos ensinaram isso com a sua crítica nos anos 1960, quando falavam do quão maravilhosa era a arte que estava saindo de Hollywood na época. Enquanto isso, nós, americanos, víamos aquilo como mero entretenimento.
O que aprendeu ao narrar a história da nação osage?
Eu estava muito nervoso por ter essa experiência com os nativos americanos, porque havia muitas coisas sobre eles que eu não sabia. E eu não estava preparado para o que descobri. É um filme que fizemos com muita humanidade. Deve haver um reconhecimento [do massacre dessas populações].
Costumamos fazer silêncio, e as escolas alimentam um sistema de emasculação, no sentido de destruir quem esses povos são, que foi implementado lá atrás. Muitas vezes, isso acontecia ao cortar o cabelo dos indígenas, numa espécie de mutilação da alma algo? que eu faço em 'O Lobo de Wall Street' [quando uma funcionária do protagonista Jordan Belfort raspa a cabeça em troca de dinheiro]. O que aconteceu foi que, de alguma forma, boas intenções e o evangelho se misturaram a instituições opressoras e à americanização.
Costumamos fazer silêncio, e as escolas alimentam um sistema de emasculação, no sentido de destruir quem esses povos são, que foi implementado lá atrás. Muitas vezes, isso acontecia ao cortar o cabelo dos indígenas, numa espécie de mutilação da alma algo? que eu faço em 'O Lobo de Wall Street' [quando uma funcionária do protagonista Jordan Belfort raspa a cabeça em troca de dinheiro]. O que aconteceu foi que, de alguma forma, boas intenções e o evangelho se misturaram a instituições opressoras e à americanização.
Falando em evangelho, Jesse Plemons, que está em "Assassinos", disse que o senhor falava muito em religião no set de filmagem.
É, eu acho que sim. Eu acho que realmente faço isso, desculpe. Eu tenho 80 anos, tento não pensar muito nisso [no divino], mas se você é abençoado o suficiente para criar arte, então é natural que você a use para tentar chegar ao que há de mais simples na vida, ao que ela significa.
Em "Assassinos" o senhor reuniu duas de suas musas, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. Fazer o filme foi mais especial por causa disso?
Eu sempre converso com o Bob [De Niro] para saber no que ele está trabalhando, e ele faz o mesmo comigo. Em determinado momento, queríamos voltar a fazer algo juntos, e eu estava trabalhando no roteiro de 'Assassinos'. Mas decidimos fazer 'O Irlandês' antes, porque ele ia ter que ser rejuvenescido para algumas cenas e disse: 'Se esperarmos mais dois anos, talvez eu não consiga mais levantar da cadeira como um jovem faria'.
Trabalhar juntos é ótimo, e eu acredito que foi ele quem encontrou o Leo [DiCaprio]. Eles estavam fazendo o 'Despertar de um Homem'[de 1993], quando ele me ligou e disse: 'Estou fazendo um filme com esse garoto e ele é muito bom, você deveria trabalhar com ele qualquer dia'. Veja só.
Trabalhar juntos é ótimo, e eu acredito que foi ele quem encontrou o Leo [DiCaprio]. Eles estavam fazendo o 'Despertar de um Homem'[de 1993], quando ele me ligou e disse: 'Estou fazendo um filme com esse garoto e ele é muito bom, você deveria trabalhar com ele qualquer dia'. Veja só.
“ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES”
(EUA, 2023, 206 min.) Direção: Martin Scorsese. Com Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Robert De Niro. Classificação: 14 anos. Estreia nesta quinta (19/10) em salas dos complexos Cineart, Cinemark, Cinépolis, no Centro Cultural Unimed-BH Minas e no UNA Cine Belas Artes.
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