O funeral de Di Cavalcanti, em 27 de outubro de 1976, estava estranhamente vazio. Com o rosto coberto por um véu para esconder o desgaste físico provocado pela cirrose, o corpo, afundado em rosas vermelhas, jazia no saguão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.





A amplitude do local agravou o vácuo causado pela ausência de intelectuais próximos ao pintor, como Vinicius de Moraes e Jorge Amado, que nem as presenças do arquiteto Oscar Niemeyer e da atriz Neila Tavares conseguiram atenuar.

Mas o clima lúgubre foi interrompido pela chegada do cineasta Glauber Rocha que, com uma pequena equipe, encarnou o diretor em um set de filmagens - de onde surgiu seu primeiro trabalho rodado no Brasil desde seu autoexílio, em 1971.

É com esse caso curioso que Marcelo Bortoloti inicia "Di Cavalcanti: Modernista Popular", a mais completa biografia sobre o artista lançada até hoje, que sai pela Companhia das Letras.

O diretor de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" não hesitou em levantar o véu para filmar o rosto cadavérico de Di Cavalcanti, consumido pela doença. Algumas pessoas tentaram intervir na ocasião, sem sucesso. O resultado foi um curta-metragem, que intercalou as cenas fúnebres com a leitura de poemas, notícias de jornal e histórias do pintor - e recebeu o prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Cannes, em 1977.





Glauber, expoente do cinema novo e seu compromisso nacionalista, tinha afinidade com Di. Se o cineasta tentou traduzir o Brasil e seu povo, sem deixar de lado os problemas sociais, Di fez o mesmo por meio da pintura. 

Sua personalidade extrovertida e sociável, que o levou a ser rodeado de gente em vida, às vezes podia irromper em acessos de raiva. "A figura de boêmio, rodeado de amigos e amantes, ajudou a valorizar a obra dele", diz Bortoloti.

Mas numa idade mais avançada, quando sua assinatura já valia muito, Di Cavalcanti foi acusado de não se preocupar mais tanto com o que pintava. "Ele estava precisando de dinheiro, então entregou sua obra ao mercado. As obras não eram feitas com o mesmo esmero, e ele passou a assinar qualquer coisa", afirma Bortoloti.

"As pessoas esperam de um artista uma vida mais dedicada à arte, uma figura sofrida, uma coisa heroica que ele de fato não foi."


Boemia 

 Nascido no Rio de Janeiro, Di se tornou um frequentador assíduo da boemia carioca em sua mocidade, sendo muito influenciado por João do Rio e Lima Barreto. Mas São Paulo crescia abastecida pelo dinheiro do café, e era lá que o pintor queria estar.



Lá, conseguiu trabalho na imprensa como desenhista, e logo foi incluído no ciclo modernista em formação. O jovem se aproximou de Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Oswald e Tarsila, com os quais passou a frequentar salões luxuosos da capital. Apesar da admiração pelos amigos, foi no ciclo modernista que cresceu seu incômodo em relação às diferenças entre classes sociais. 

O inconformismo político o levou a filiação ao Partido Comunista Brasileiro, em 1926, e o artista foi preso duas vezes durante os anos de perseguição aos comunistas no governo de Getúlio Vargas. "Ele produziu uma obra muito engajada, principalmente na imprensa, com desenhos de greves, operários e líderes sindicais."

A trajetória de Di Cavalcanti, explica o escritor, ilustra os movimentos da cultura brasileira no século passado. "A renovação da imprensa, a Semana de 22, a criação do Partido Comunista, os embates entre pintura figurativa e abstrata, a invenção do mercado de arte e a valorização das obras como mercadoria. Ele estava envolvido diretamente em tudo isso." Di morreu em outubro de 1976. 

“DI CAVALCANTI: MODERNISTA POPULAR”
• Marcelo Bortoloti
• Companhia das Letras 
• 536 págs. 
• R$ 134,90 e R$ 44 (ebook)

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