Na época do Brasil Colônia, os negros que se enfeitavam com brincos de ouro – mesmo os alforriados – eram malvistos pelos brancos). O jesuíta italiano Giovanni António Andreoni escreveu, em 1711, uma carta, indignado com a quantidade de joias que algumas ex-escravizadas usavam. “Muito mais (joias) que as senhoras”, fez questão de ressaltar, chamando de senhoras as mulheres brancas, de alta classe.
Esses adornos, portanto, se tornaram símbolo de valentia e resistência para os negros da colônia. E, hoje, passados mais de 300 anos, serviram de inspiração para o grupo Favelinha Dance, do projeto Lá da Favelinha, conceber o espetáculo “Brinco de ouro”, que fará apresentação única nesta terça (31/10), no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes.
Com direção de Léo Garcia, o espetáculo de dança traça um paralelo entre a história de exploração dos negros brasileiros e questões atuais enfrentadas pelas comunidades periféricas.
A performance, contudo, não faz isso de forma linear. Partindo da cultura funk, são os passinhos – já tradicionais do grupo – que conduzem e amarram a coreografia, fazendo referências ao passado.
“É um espetáculo que parte da favela de hoje, mas que também contempla o que já passou, o que veio antes. Fala de ancestralidade”, resume a bailarina Negona Dance. Junto dela, apresentam-se Dj Fidelis, Dudu Sorriso, Mrs. Jhones, Sammy Oliveira, Tiphany Gomes, Vitinho do Passinho e Teffy Angel.
Fruto de colaboração coletiva entre os bailarinos ao longo deste ano, “Brinco de ouro” pretende compartilhar com o público a vivência de quem mora nas favelas, no intuito de ressignificar a ideia equivocada e preconceituosa que ainda há sobre a periferia.
“O espetáculo ressignifica até mesmo o próprio ouro”, destaca Negona Dance. “Esse metal, que era o símbolo de valentia e resistência dos negros na época da escravidão – não só as mulheres usavam ouro, os homens também colocavam ouro nos dentes –, agora deixa de ser o metal em si, passando a ser nossos próprios corpos”, emenda.
Chegar a essa conclusão por meio da dança, no entanto, não foi tarefa fácil. O grupo viveu verdadeiro processo de imersão criativa, com várias oficinas semanais, nos últimos 10 meses, para que conseguissem desenvolver uma coreografia original e que sustentasse um espetáculo de duas horas de duração.
Óculos Juliet e Balaclava
“O Favelinha Dance, até então, não tinha um espetáculo com mais de 10 minutos”, conta a produtora-executiva do projeto, Ester Teixeira. “A gente tem alguns miniespetáculos, minitrabalhos. Mas esse, o ‘Brinco de ouro’, é o primeiro grande espetáculo do grupo.”
Para um grande espetáculo, o grupo se preocupou em apresentar um bom figurino. Assinado por Carla D’lá, Iara Drummond e Camille Reis, os bailarinos do Favelinha Dance se apresentam com looks comuns nas favelas – e que, nos últimos anos, têm se tornado tendência entre quem não mora na periferia.
São peças como bermuda, cropped, óculos juliet, chapéu bucket e cordão no pescoço. Todas claras, em tom pastel. Há até mesmo uma espécie de balaclava rendada, que sugere uma afronta à associação da favela às práticas criminosas.
Outro desafio do grupo foi adaptar a coreografia para o palco italiano.
Defesa do espaço
“Estamos acostumados com os palcos comerciais, esses de festival. Apresentar em um teatro é bem diferente. Tivemos que ter uma virada de chave para podermos adaptar, o que foi bem incômodo no início”, lembra Negona.
No entanto, assim como todos os bailarinos do Favelinha Dance, ela se sente entusiasmada por apresentar “Brinco de ouro” no Palácio das Artes. “Estar ali é grandioso, afinal, os espetáculos que ocupam aquele espaço costumam ser o balé clássico, a dança contemporânea, as grandes óperas e as apresentações de repertório erudito. Ao ocupar esse lugar, só estamos dizendo que o nosso trabalho também é potente. O nosso discurso não é o de temos que brigar para ocupar aquele espaço, e sim de defender que aquele espaço também é nosso”.
BRINCO DE OURO
Espetáculo de dança do Favelinha Dance, do projeto Lá da Favelinha. Apresentação única nesta terça-feira (31/10), às 20h, no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Ingressos à venda por R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), na bilheteria ou pelo site do Eventim. Informações: (31) 3236-7400 ou pelo site fcs.mg.gov.br.