“Empoderamento está na moda, mas não tem essa palavra nos dicionários. Empoderar é tomar o poder com o uso de força”. Crítico à moda do politicamente correto, o escritor, cartunista e chargista Ziraldo começa a entrevista questionando a palavra que virou mantra entre as feministas. Na semana passada, ele veio a BH lançar Meninas, da Editora Melhoramentos, na Livraria Leitura do BH Shopping, e participou de sessões de autográfos no Colégio Santo Antônio. Num restaurante na Savassi, antes de almoçar, crianças faziam fila para selfies com o ídolo, de 84 anos. Se elas mal controlavam a emoção de estar ao lado do criador do Menino Maluquinho, as mães menos ainda ao se atrapalharem na hora do clique com o celular.
Ziraldo pede uma cerveja, olha o cardápio e se encuca com o prato carré de cordeiro com risoto parmegiano trufado. “Me conta o que é a trufa?”, brinca com o garçom, que responde com desenvoltura. Depois de boas risadas com o moço, o cliente revela: gosta mesmo é de arroz, feijão e farofa. Como não tem nada disso no menu, pede fettuccine com payard. Chega outra fã. Do alto de seus 6 anos, desculpa-se pela interrupção e já abre os livros Meninas e O Menino Maluquinho, à espera daquela assinatura que é a marca registrada do autor. “Olha a mãe”, brinca ele, elogiando a beleza da moça. Conta detestar “essa coisa de beijo no coração”, e emenda: “Tem coisa mais brega?”.
Ziraldo desejava criar uma personagem feminina para contrapor ao Menino Maluquinho. “Dei uma relida em Alice (No país das maravilhas), o original do Lewis Carroll. Alice é a descrição da condição feminina. Os poetas de mau gosto chamariam de eterno feminino”, diz. É fascinado pela maneira como o autor britânico, que era matemático, desconstrói a teoria de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. “São dois corpos no corpo da menina. É a menina, é a mulher. Os dois seres juntos na alma”, observa. Nos diversos países em que já esteve, ele comprou cerca de 200 edições do clássico para presentear a neta.
Os sentimentos da mulher e da menina estão imbricados, comenta ele. “As duas sentem igual, mas o corpo mudou, está cheio de vontade, volumes e desejos fluidos que o outro corpo não tinha. A alma é a mesma. Com todas as novidades que o tempo projeta em série no corpo feminino, ela continua a ser dominada na condição que adquiriu quando foi menina”, analisa.
A ideia do livro o persegue desde quando foi indagado por uma garotinha sobre o motivo de suas obras tratarem apenas de garotos. “Menino eu entendo pra burro, não preciso fazer pesquisa. Sei como menino sente as coisas. Menina, sei lá... Tenho de fazer pesquisa para saber qual é o sentimento delas”, tenta responder Ziraldo. Aquela pequena fã não se deu por satisfeita. “Você fez isso porque os seus meninos são dos planetas, mas as meninas são das estrelas”, argumentou ela.
A provocação levou o autor da série Os meninos dos planetas a escrever Menina das estrelas. “De madrugada, quando acordava, em vez de pensar no Júpiter pensava nesse livro”, conta ele. Ao revisitar Carroll, fez como Alice ao se jogar atrás do coelho branco. Resumindo: Ziraldo se lançou no universo das meninas. “Ele é feito das fantasias do sonho. É preciso olhar para o olhar da menina, que está sempre voltado para inimagináveis rumos”, escreve no livro.
Meninas é parceria de Ziraldo com o chargista e ilustrador Renato Aroeira. “Ficou bonito assim, porque foi colorido pelo Aroeira, meu irmãozinho mineiro e um gênio das cores”, explica. Nas palavras de Ziraldo, trata-se de um ensaio sobre a condição feminina destinado à garotada. De maneira filosófica, ele se coloca na “altura” das crianças, ao se dirigir a elas para falar daquele momento na vida das mulheres, que dura tão pouco, mas é para sempre.
PALAVRAS Como em seus livros – com escrita sofisticada, mas nada rebuscada –, a conversa com Ziraldo passeia por sua obra, mas vai dos clássicos às anedotas populares. “Você conhece a história da freira que pediu perdão a Deus? Estava a freira enclausurada sentada num jardim bordando e os passarinhos cantando. Ai, merda! Machuquei minha mão. Meu Deus do céu, falei merda, pqp! Ah, f***-se, também não queria ser freira”, diverte-se ele.
O criador do Pasquim e das revistas Bundas e Palavra sabe que as palavras são fugidias quando se tenta aprisioná-las. “Na minha época, combatíamos o politicamente correto, que começou nos Estados Unidos, pois era uma forma de engessar a língua. O modo de falar e o gosto pelas palavras nascem com o grupo. Quantas palavras, depois incorporadas (aos dicionários), nasceram no chulo?”
“O que as mulheres chamam de empoderamento é inexorável”, rende-se, ao lembrar Angela Merkel (chanceler alemã), Hillary Clinton, como a única forma de salvar a América de Donald Trump, e Dilma Rousseff. “Qualquer inimigo da Dilma sabe que ela é corajosa e honesta. Ela é incompetente, mas isso é outra coisa. O fato de Dilma ter fracassado não significa que você não pode entregar o destino às mulheres”, afirma.
INTERNET Machismo é problema endêmico no país, avalia o humorista. “Quando as trovas faziam sucesso no Brasil, uma delas dizia: ‘Vi minha mãe rezando aos pés da virgem Maria. Era uma santa escutando o que a outra santa dizia’. Outra santa como? Sua mãe não trepa? Sua mãe não tem tesão? Não ama? Santa é a pqp!”. Outro tema de seu interesse é a internet, que, para ele, virou “parede de banheiro”: as pessoas publicam o que querem e as informações não têm qualidade.
Mesmo diante do momento difícil pelo qual os brasileiros estão passando, esse mineiro otimista acredita que o mundo evolui. “Transformar o Brasil em país de leitores é uma maneira de combater essas coisas. Livro abre a cabeça da criança. É a palavra gravada que fica”, afirma.
Para ele, a essência da humanidade já estava nos clássicos gregos, foi catalogada por Shakespeare e Sigmund Freud. “Todos os sentimentos humanos estão na Odisseia e na Ilíada. O pessoal já estava discutindo a falibilidade do ser humano como pessoa. Os deuses também eram safados, traidores. Uma loucura. Já se compreendia a superioridade da maldade humana. Você chega no Shakespeare, e ele aprofunda tanto, tanto.”
Ziraldo tem ideias para mais 30 livros. Mas, com a escrita de Meninas, pensa que não tem muito mais a fazer. Ainda assim, lembra-se de que precisa concluir a coleção Os meninos dos planetas. Ainda faltam Júpiter, Netuno e Plutão. “Disse que faria uma coleção de 10 anos para garantir mais 10 anos de vida. Agora, só faltam três. Tenho que arranjar uma outra série famosa: títulos dos Estados Unidos nas Olimpíadas, por exemplo. Vou comentar cada uma das conquistas”, brinca.
MENINAS
De Ziraldo
Cores: Aroeira
Melhoramentos
48 páginas
R$ 49