Jornal Estado de Minas

Fundado em 1774, Santuário do Caraça serve receitas históricas

'O que vem de sabor é da nossa horta', diz a chef Grazielle Dutra (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

A espera pelo lobo-guará, o passeio por cachoeiras, a visita a uma igreja neogótica do século 19. O Santuário do Caraça, localizado entre os municípios de Catas Altas e Santa Bárbara, guarda outro atrativo que não perde em nada para a natureza ou a religiosidade: a gastronomia. Administrado por padres da Província Brasileira da Congregação da Missão, o complexo turístico preserva muito da história da cultura alimentar de Minas Gerais. Assim como nos tempos antigos, a cozinha produz praticamente tudo o que oferece aos hóspedes, entre frutas, verduras, queijo, biscoitos, bolos e doces.


 
Fundado em 1774, o Caraça funcionou como hospedaria para romeiros, seminário e colégio interno antes de se tornar pousada. Isolados no alto da serra, os padres garantiam a subsistência dos internos produzindo todo tipo de alimentos, como frutas, verduras, legumes, carnes, farinhas e queijos. Hoje, podemos dizer que eles ajudaram a formatar a cozinha mineira. “O Caraça guarda a memória da nossa gastronomia, pois lá estão preservados hábitos e técnicas alimentares típicos de Minas”, destaca a pesquisadora gastronômica do Senac Vani Pedrosa.
 
Goiabada, figo em calda, bananada e doce de leite (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Há dois anos como chef do Caraça, Grazielle Dutra não se preocupa com sofisticação. Para ela, mais importante é servir uma comida mineira de verdade. “Tirei extrato de tomate, molho shoyu e tempero pronto. O que vem de sabor é da nossa horta.” Nada complicado para quem tem tão perto da cozinha uma horta e um pomar com tanta diversidade. Em 1816, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire já havia registrado, com surpresa, o potencial agrícola do santuário, que tem pera, jabuticaba, língua-de-vaca e couve cultivados lado a lado.
 
Servidos no refeitório original do santuário, com fogão a lenha e mesas coletivas, os pratos do almoço e do jantar são planejados de acordo com o que tem no quintal. “Quando é assim o alimento fica mais gostoso, pois está no ponto certo. Não forçamos o amadurecimento”, comenta a chef.



Lá não se compra nenhuma folha. Azedinha dá o ano inteiro e pode ser servida sozinha como salada, assim como a vinagreira, que é a folha do hibisco, de um roxo intenso e sabor ácido. A horta também tem em abundância o peixinho-da-horta, folha aveludada normalmente servida frita (daí o nome, porque fica parecendo peixe empanado). Outra sugestão é fazer um involtini de azedinha (no lugar da abobrinha) com recheio de pasta de ricota, queijo, cenoura, passas, castanha e alho-poró.
 
Ocupada por barris de madeira, a adega produz vinho e fermentados (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
De olho no pomar e na horta, a chef cria receitas seguindo o conceito do campo à mesa, como a salada de maria-gondó com repolho, abacaxi e maçã, com todos os ingredientes frescos. O tomate-de-árvore é usado para preparar um suco rosado, com sabor que oscila entre doce e amargo. Ainda tem o pão de ora-pro-nóbis, que exibe as folhas verdes rasgadas no meio da massa. A flor laranja de capuchinha está sempre presente para enfeitar a comida. De noite, a equipe serve chás (de cidreira ou camomila da horta, por exemplo) com pipoca durante a espera pelo lobo-guará.
 
A cozinha recebe diariamente leite e queijos da Fazenda do Engenho, que faz parte do complexo do Caraça. Há seis anos, Vani resgatou o método antigo da região de fazer o queijo com leite cru, o mesmo do queijo minas artesanal, com uso de pingo e cura na tábua de madeira. “A manteiga do Caraça foi comparada por alunos com a dos Alpes suíços. Engraçado como a história dá pistas, encontramos no queijo do Caraça a bactéria propiônica, que tem também nos queijos suíços.” Com sabor mais adocicado, o queijo do santuário tem massa amarelada e furos, não tão grandes como os suíços.


A partir dessa iniciativa, o santuário ajudou a consolidar a região produtora de queijos Entre Serras (Piedade e Caraça), que abrange Santa Bárbara, Barão de Cocais, Caeté e Catas Altas. Na queijaria do Caraça, são produzidas mais de 100 peças por mês, entre meia-cura e curado, que abastecem a cozinha da pousada. Vende-se apenas o excedente.

Algumas das espécies encontradas na horta são peixinho-da-horta, azedinha e vinagreira (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

QUITANDAS No salão do café da manhã, que não é o mesmo do almoço e do jantar, mais um fogão a lenha. Em cima dele, uma chapa onde o hóspede pode fritar ovo, derreter queijo ou esquentar o pão. Segundo Augusto Lobato, do setor comercial, pelo menos 90% dos produtos são artesanais. “Nos tempos do seminário, estamos falando de 100 anos atrás, não havia facilidade de comprar os produtos, então produzia-se tudo aqui.” Na lista, estão incluídos pão de queijo (com queijo do Caraça), bolos, quitandas (como os biscoitos de maracujá, café, polvilho e a rosquinha de nata) e pães (como o de cacau com ganache de chocolate, castanha e nozes).
 
A adega é outro canto histórico do Caraça. Ocupada por barris de madeira, ela fica no primeiro andar, de frente para um belo jardim no estilo francês. Lá são produzidos os fermentados, como antigamente, usando os ingredientes disponíveis, entre eles jabuticaba e laranja. Morango é uma invenção mais recente. O mais famoso é o fermentado de mel extraído na área do santuário. Ao contrário do que muitos imaginam, o hidromel é uma bebida seca, e não doce, lembrando mais vinho que licor. Os vinhos continuam a ser produzidos (com a diferença de que as uvas cabernet sauvignon são trazidas do Sul do Brasil), só a cerveja que não. A receita foi cedida a uma cervejaria de Catas Altas.


As bebidas também são aproveitadas na cozinha. Grazielle escolhe o hidromel para marinar carne de porco ou para substituir o vinho branco no preparo de risotos. Já o fermentado de jabuticaba pode ser usado para temperar uma carne de panela. Se for reduzido em fogo baixo, com mel ou rapadura, transforma-se em um saboroso molho adocicado para servir com costelinha de porco.
 
Pão brocojó
Feito de pau a pique, o moinho é a construção mais antiga do Caraça. Os padres usavam todo tipo de legumes da horta para produzir diferentes farinhas que pudessem substituir a de trigo, tão rara. Batata-doce, inhame, mandioca e milho são alguns dos exemplos. “Como lá a circulação de pessoas era muito grande, o milho tomou uma proporção maior, porque era de rápido cultivo”, observa a pesquisadora gastronômica do Senac Vani Pedrosa. O moinho está em ruínas, mas existe o plano de reativá-lo.

Meia-cura ou curado, o queijo do Caraça abastece diariamente a cozinha da pousada (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Hoje não falta farinha de trigo para preparar o famoso pão brocojó, que antigamente era servido apenas em dias de festa. O nome seria uma brincadeira dos alunos com a palavra brioche, que era falada com sotaque francês pelos padres. “O último irmão padeiro de lá, que morreu há dois anos, deixou registrado que o brioche tinha um creme amarelado por cima, com açúcar, gema de ovo e farinha, que formava uma farofinha igual à que tem na cuca”, descreve Vani.


 
Conta-se que, no dia da festa, a massa era assada com uma fava de feijão dentro. O brocojó, então, era usado para fazer um sorteio entre os oito alunos que dividiam cada “quadrado”da mesa coletiva. “Cortavam as fatias e quem saía com a fava de feijão se tornava o rei do quadrado, ou seja, podia servir primeiro a refeição. Era uma forma de fazer rodízio na mesa”, informa a pesquisadora.
Atualmente, a chef do Caraça, Grazielle Dutra, serve aos hóspedes uma versão diferente do brocojó. A massa de brioche tem recheio de ricota com canela e açúcar e frutas cristalizadas.
 
Tomate-de-árvore se transforma em um suco rosado com sabor que oscila entre doce e amargo (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Os doces seguiam a mesma lógica das farinhas, eram feitos com o que se encontrava no quintal. Frutas e legumes da época, como ameixa, mamão, abóbora, batata-doce, cenoura, tomate, tudo virava doce. Vani cita também o doce de leite “talhado”, que é um clássico de lá. “Usam vinagre para coagular a lactose do leite. Parece ambrosia, mas não é, só tem leite mesmo”, explica.
 
Descendente do bolo de reis, o pudim de gabinete até hoje é servido apenas em ocasiões especiais. Gabinete era o armário onde se guardavam os doces nos tempos em que não existia geladeira.


Seguindo a receita original, Grazielle usa biscoito champanhe feito no santuário para forrar a fôrma. Depois acrescenta camadas de doces de fruta, como de figo, goiaba e mamão, que podem variar de acordo com a estação. “Como não tinha leite condensado, faziam um creme com gema de ovo, açúcar, leite, baunilha e raspas de limão para jogar por cima”, detalha. Outra receita típica do santuário é o arroz trelelê, inventado para fazer render a carne, com pedaços de leitoa, taioba e o que mais tivesse na cozinha. 
 
Pudim de gabinete
Ingredientes
10 biscoitos champanhe; 100g de doce de cidra; 100g de doce de banana; 100g de mamão em calda; 100g de laranja-da-terra em calda; 100g de passas pretas; 100g de passas brancas; 1 maçã fatiada; 500ml de leite; 9 gemas; 100g de açúcar; raspas de meio limão.

Modo de fazer
Para fazer o creme, misture o leite, as gemas, o açúcar e as raspas de limão. Quebre os biscoitos champanhe e coloque-os no fundo da vasilha. Adicione as passas pretas e o doce de cidra. Cubra com o creme. Coloque passas brancas por cima. Escorra a calda dos doces de mamão e laranja-da-terra. Adicione uma camada das frutas sem calda, deixando bem firme. Termine com a camada de creme. Cubra com papel-alumínio e leve ao forno a 180 graus, no banho-maria, por uma hora. Retire o papel-alumínio e deixe mais 30 minutos no forno.