Não se trata de uma declaração de guerra contra os homens. Para Mariana Gontijo, transformar um de seus restaurantes em palco para o protagonismo feminino é uma forma de reconhecer o trabalho de mulheres na gastronomia. “A nossa ideia não é criar uma trincheira. Pelo contrário, queremos aproximar o mercado do universo feminino”, pontua a chef de O Tacho e Roça Grande, que lança neste mês da mulher o projeto “O Tacho é delas”, com jantares semestrais só com mulheres, entre fornecedoras, chefs, cozinheiras e atendentes. Os homens, é claro, estão convidados para saborear a comida.
Antes de entrar para a cozinha, Mariana trabalhava como advogada e, em nove anos de carreira jurídica se deparou com constantes dificuldades das mulheres no mercado de trabalho. Na gastronomia, ela viu que não era diferente. “Falam da diferença de tratamento, da dificuldade de alcançar cargos de liderança, principalmente de chef, de ter o trabalho diminuído, e isso me incomoda profundamente. Defendo a igualdade no sentido mais amplo da palavra, de ter as mesmas oportunidades”, diz.
O nome “O Tacho é delas” se refere tanto ao espaço do restaurante, no Bairro Carlos Prates, quanto ao utensílio em si, que, na opinião de Mariana representa as mãos femininas na cozinha. “É uma forma de colocar no mapa da gastronomia mulheres que não vestem dólmã, mas são responsáveis pela criação da identidade da cozinha mineira”, comenta. A chef fala das mulheres que transmitem, através da oralidade, técnicas de cozinha, as melhores formas de trabalhar ingredientes nativos e desenvolveram pela necessidade as receitas dos pratos mineiros mais icônicos.
No primeiro jantar, marcado para quarta-feira, Mariana se juntará a outras duas chefs. Todas tiveram que cozinhar com pelo menos um ingrediente do cerrado. Carol Fadel, do Santafé, vai preparar as duas entradas, que serão harmonizadas com espumante rosé. Como trabalha com cozinha inclusiva, pensando em quem tem restrição alimentar, ela desenvolveu receitas veganas, sem glúten e lactose.
O jantar de seis tempos começará pela sopa de banana verde. “Me inspirei em uma sopa muito comum na Serra do Cipó, que é servida até na merenda escolar. A banana verde tem muito a ver com a minha cozinha funcional, ela é a base para fazer biomassa.” Servida quente, a sopa é finalizada com um ingrediente novo para a chef, o azeite extravirgem de coco babaçu. A segunda entrada lembra a infância de Carol na casa da avó, onde comia muito arroz com pequi. É um bolinho de galo caipira, arroz, pequi e fubá torrado servido com molho suave de pimenta-malagueta.
Para dar sequência ao jantar, a chef de O Tacho escolheu dois pratos do menu do restaurante, que faz uma homenagem ao cerrado. “São pratos que contam muito sobre a nossa cultura alimentar, que é a minha essência na cozinha”, explica. Um deles é o Trem bão é tutu com leitão, que combina pernil de porco assado no forno a lenha e pururcado, tutu “tonto” (preparado com cachaça), farofa da casa à base de farinha de mandioca, conserva da cagaita e couve mineira crua, cortada fininha, com limão.
LEGUMES Os convidados vão conhecer também o Milho e legumes, prato sem carne que faz sucesso em O Tacho. Em destaque, legumes refogados e assados (normalmente, inhame, abóbora e aborinha), peixinho-da-horta empanado em massa de biscoito mentira, farofa de canjiquinha com alho-poró e ora-pro-nóbis. Para acompanhar, uma sequência de molhos com itens do cerrado. Os pratos de Mariana serão servidos com vinho tinto do cerrado.
As duas sobremesas, inéditas, são assinadas por Mariana Correa, da La Parisserie. Para a chef, o jantar é uma oportunidade de questionar a forma como as mulheres e a própria confeitaria são tratadas pelo mercado. “Falar de valorização da confeitaria no Brasil é falar de valorização da mulher na gastronomia. Aqui não temos o mesmo nível de reconhecimento que na Europa. Então, fazer um jantar a seis mãos que tem uma chef confeiteira cuidando do fim do menu já é um diferencial”, aponta.
Uma das receitas resgata uma memória afetiva de Mariana, por isso tem como referência uma combinação mineira bem tradicional: abóbora e coco. No mesmo prato, ela apresenta três texturas de abóbora (cremosa com coco, glaceada com cachaça e em pétalas), acompanhadas de sorbet de coco com cachaça. A chef ainda encarou o desafio de fazer o outro doce com farinha de jatobá, o seu ingrediente do cerrado. A receita é mantida em segredo. “É um ingrediente que não conhecia, provei agora pela primeira vez, mas o resultado ficou impressionante.” As sobremesas serão harmonizadas com espumante brut.
Toda a cadeia produtiva
Não são apenas as chefs que formam o time feminino na primeira edição do jantar do projeto “O Tacho é delas”. A produção e o fornecimento dos principais ingredientes, o apoio na cozinha, o atendimento no salão, todo o serviço envolve mulheres. “Queremos mostrar a alma feminina em toda a cadeia produtiva da gastronomia”, informa a anfitriã, Mariana Gontijo.
O azeite extravirgem de coco babaçu, ingrediente da sopa de banana verde, é comprado de um grupo feminino do Norte do país. Essas mulheres formam a Cooperativa Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu, que abrange Maranhão, Piauí, Pará e Tocantins. Já a farinha de mandioca usada no prato Trem bão é tutu com leitão vem da comunidade quilombola Kalunga, situada na Chapada dos Veadeiros, Goiás. Ela é produzida por dona Fiota.
Mariana Correa criou a sobremesa mais surpreendente com a farinha de jatobá fornecida por Tina, que vive em Januária, no Norte de Minas. Segundo a anfitriã, essa mulher é muito representativa por ser uma ativista do cerrado e da agroecologia.
Os vinhos do cerrado escolhidos para acompanhar os pratos principais são produzidos pela vinícola Bambini, de Cruzeiro da Fortaleza, no Alto Paranaíba, comandada por Ana Paula Bambini. O jantar será finalizado com o Café Abraço, que será representado pela idealizadora da marca, Débora Rabelo, e Paula, uma das produtoras parceiras, de Poço Fundo, no Sul de Minas. “O Café Abraço foi o primeiro produto que tive no armazém do Roça Grande e a Débora é uma mulher que tem uma história de luta, transição de carreira, valorização do feminino e do comércio justo”, aponta Mariana Gontijo.
Apoiadora de movimentos femininos na cozinha, Carol Fadel lembra que a base da nossa gastronomia é matriarcal, considerando que a alimentação historicamente foi assumida pelas mulheres da família. Mas isso se perdeu em ambientes profissionais. “Por que não temos esta representatividade quando se fala em gastronomia de destaque?”questiona. “Grandes chefs, inclusive, sempre contam que começaram a gostar de cozinha no fogão da avó, tia ou mãe.”
Bolinho de galo caipira, arroz e pequi
(Carol Fadel)
Ingredientes
1 dente de alho picadinho; 1/2 cebola picadinha; 1 tomate sem semente picado; 100g de galo cozido e desfiado; 100g de arroz cozido; 100g de polpa de pequi; 50g de queijo da canastra ralado; azeite; cebolinha e salsinha picadas a gosto; sal e pimenta a gosto; 1 xícara de fubá de moinho d'água torrado
Modo de fazer
Numa panela, coloque um fio de azeite e frite o alho e a cebola. Acrescente o tomate e o galo. Adicione em seguida o arroz, o pequi, o queijo e o cheiro-verde. Acerte o sal e a pimenta. Vá adicionando o fubá aos poucos até formar uma massa que solte do fundo da panela. Use a quantidade suficiente para dar ponto à massa. Faça bolinhas, passe-as no fubá torrado e frite em óleo quente.