Jornal Estado de Minas

Nelsa Trombino: história da fundadora do Xapuri é contada em filme

Para a fundadora do Xapuri, a cozinha mineira é a melhor do Brasil (foto: Xapuri/Divulgação)

Dizem que ela é mais mineira que muito mineiro. Nelsa Trombino nasceu no interior de São Paulo, mas sempre carregou Minas Gerais no coração. Mais que isso, lutou pela gastronomia mineira, que considera a melhor do Brasil, à frente de um restaurante que leva os sabores do nosso estado para todo o mundo. A história da cozinheira e doceira, fundadora do Xapuri, já com 34 anos de estrada, voltou a ganhar destaque através do filme “A dona do tacho”, lançado neste fim de semana.




 
Quem dirige o curta-metragem é o produtor cultural Marcelo Wanderley, que sempre teve vontade de fazer um documentário sobre dona Nelsa. “Fiquei muito amigo do Flávio (o filho mais novo) nestes nove anos trabalhando com gastronomia e vivia na casa deles. Ficava muito impressionado com o que ouvia. Tinha muita verdade no que dona Nelsa falava sobre a gastronomia mineira e comecei a identificar que o Xapuri era o centro da comida mineira no Brasil.”
 
Dona Nelsa, hoje com 82 anos, se emociona ao ver sua história contada no cinema. “Fico muito feliz e agradecida. É tão emocionante que não sei nem o que falar. Às vezes, custo para conseguir acreditar nas coisas que acontecem de bom para mim. Fico me perguntando: será que mereço isso tudo?”, comenta a cozinheira, em entrevista exclusiva ao Degusta.
 
Qualquer mineiro diria: sim, ela merece todas as homenagens. Dona Nelsa merece ser lembrada porque preserva as tradições da cozinha mineira. O nome do filme, inclusive, se refere a um episódio emblemático. “Por imposição sanitária, tivemos que abrir mão de muita coisa, fomos obrigados a transferir a produção de animais a parceiros, por exemplo. Até que a minha mãe falou: podem tirar tudo de mim, mas o tacho de cobre e a colher de pau ficam”, explica Flávio Trombino, o atual chef do Xapuri.




 
Frango preguento do Bento (foto: Francisco Dumont/Divulgação)
 
Nascida em Cubatão, filha de italianos que vieram para o Brasil fugidos da guerra, Nelsa se amineirou por amor (anos depois, receberia o título de cidadã honorária de Minas Gerais). Escolheu viver nas bandas de cá depois de conhecer o ex-marido e pais dos três filhos, que trabalhou na construção da primeira refinaria da cidade. Já casada, foi morar na fazenda dos sogros, em Lagoa da Prata, onde conheceu a fundo a gastronomia e a doçaria mineiras.
 
A jovem trabalhava duro na cozinha da fazenda. As mãos chegavam a sangrar de tanto fazer doce de figo, mas ela não se queixa. Só tem a agradecer à sogra por tudo o que aprendeu. A partir daí, se apaixonou definitivamente pelas receitas de Minas. “Não quero menosprezar ninguém, mas, para falar a verdade, acho a comida mineira a melhor do Brasil”, admite a paulista.
 

Mineiridade no coração

 
Para acompanhar o marido, que trabalhava instalando alojamentos de grandes construções, dona Nelsa morou em várias cidades, mas nunca deixou de amar a terra com “céu maravilhoso”. “Andei por muito lugares deste Brasil, sempre falando da comida mineira e sempre levando um tacho para fazer doce. A mineiridade já vinha dentro do meu coração há muitos e muitos anos.”




 
Foi ela quem, depois de mais uma mudança da família, decidiu fincar de vez o pé em Belo Horizonte. Nelsa também escolheu morar na Pampulha para ficar mais perto da escola de equitação do filho, que pegava três ônibus para ir às aulas. Assim nasceu o Xapuri. “O meu pai tinha que construir a casa o mais rápido possível para sair da despesa do aluguel e entrou em acordo com os operários: ia fazer uma cozinha de quintal nos fins de semana para não precisar parar a obra”, conta Flávio.
 
Mãe e filho: ela passou o bastão para ele, mas continua a acompanhar tudo o que acontece na cozinha (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
 
A obra acabou, mas a cozinha de quintal, não. Nelsa chegava a receber dezenas de amigos interessados em comer sua comida, que já tinha fama de ser muito boa. Foi, então, que o marido resolveu montar um restaurante que só funcionaria nos fins de semana. Xapuri era o nome da fazenda de um tio-avô de Flávio, que estudou plantas medicinais na cidade de Xapuri, no Acre. A palavra, de origem indígena, significa “lugar tranquilo”.
 
Durante a entrevista, a cozinheira se lembra de algo que ouviu logo que abriu o restaurante. “Um senhor chegou perto de mim e falou: ‘A senhora não vai aguentar isso aí nem três meses’. E eu aguentei mais de 30 anos.” Fácil não foi. Ela era a primeira a chegar e a última a sair. Tinha dia em que precisava tomar remédio de tanta dor no corpo, mas nunca pensou em desistir. “O Xapuri é a minha paixão. Era como se tratasse de um filho”, compara.




 
Este senhor provavelmente não sabia que Nelsa, a filha mais nova, assumiu a cozinha de casa cedo para alimentar o pai e os sete irmãos, que trabalhavam no bananal. “A minha avó colocava um banquinho para ela ajudar com as panelas. Ela tem lembrança de ajudar a mexer a polenta com uns 8 anos. Era uma tarefa árdua, quase uma cozinha de hotel. Só a família já era um batalhão”, observa Flávio.
 

Simples, mas bem-feito

 
Dona Nelsa fala que o Xapuri é um lugar iluminado, e tem razão. O primeiro cliente surgiu por acaso. “Meus pais estavam acabando de plantar o jardim na porta para inaugurar e um homem parou para perguntar onde era uma rua. Meu pai deu a informação e disse: ‘Estamos abrindo um boteco, você não quer conhecer?’”, descreve Flávio.
 
Os doces mineiros são uma das grandes paixões de dona Nelsa (foto: Xapuri/Divulgação)
 
O homem era o jornalista Marco Octávio Camargo Teodoro, conhecido como Marão, que no dia seguinte publicou uma matéria. Descreveu a experiência, mas avisou que não daria o endereço. Assim como ele, os leitores teriam que desbravar os rincões da Pampulha. A curiosidade levou muita gente a rodar a região em busca do tão falado restaurante, que logo ganhou o mundo. Todo domingo tinha fila de espera. “Com certeza, o que fez a comida da minha mãe ficar conhecida foi a simplicidade e o fato de ser feita com amor. Ela fala: não adianta fazer muita coisa, tem que fazer arroz com feijão bem-feito.”




 
Um dos pratos mais queridos do Xapuri é o costelinha de sinhá. Nelsa criou essa receita para representar o seu amor por Minas. Reúne ingredientes básicos, mas todos frescos e muito bem selecionados. A carne é servida com arroz, tropeiro (com a linguiça da casa), mandioca frita e couve.
 
Já o famoso frango preguento do Bento é uma homenagem ao tio do pai de Flávio, que era o cozinheiro da pescaria em família. “O frango passava horas no fogo, secava e ele jogava água, e nisso ia soltando colágeno. Quando dava fome, já estava tarde, esse frango já tinha passado pelo processo de pinga e frita várias vezes, e o pessoal dizia que estava preguento. Colágeno é como cola.” Nelsa reproduziu a sensação do seu jeito. Cozinha o frango caipira com banha de porco e o caldo do próprio frango, preparado um dia antes. Serve com arroz, feijão, quiabo, angu, chuchu e couve.
 
O restaurante é o grande orgulho de dona Nelsa. “Não quero que o Xapuri acabe”, fala, com firmeza. “O que mais quero para o Xapuri é o meu filho à frente dele, sendo um grande chef, humilde como ele é, fazendo muita coisa boa, sendo conhecido e amado por muita gente.” Há oito anos, quando a saúde pediu, ela passou o comando das panelas para Flávio, que trocou a paixão por cavalos pela paixão pela cozinha. A mãe é sua maior referência.




 
Frango jeca (foto: Francisco Dumont/Divulgação)
 
Nelsa quase não vai mais ao restaurante, mas participa de tudo. Seu quarto fica bem próximo da cozinha e de lá dá para ouvir o barulho das panelas. “Busquei estar sempre muito perto dela para colher este elixir da sabedoria o máximo possível. Até hoje ela é a primeira a experimentar os meus pratos e sempre me dá a palavra final”, avisa o chef, que encarou o desafio de imprimir sua identidade no cardápio, sem perder de vista a essência da sua mãe.
 
Mesmo de longe, a fundadora fica atenta a tudo o que acontece na cozinha do restaurante. Todos os dias, manda recado para o filho. Pergunta se ele está cuidando dos clientes, indo às mesas, se está de olho no feijão com arroz para não ficar com gosto de alho cru. “Eu não me esqueço de nada. Estou sempre ativa, observando o que se passa com a comida mineira, sempre querendo inventar. Isso ainda posso fazer.” Nelsa não esconde: quer ser lembrada pelo seu trabalho. 
 

Frango preguento do Bento

Ingredientes
1 frango caipira inteiro; 1 litro de banha de porco; 3 cebolas brancas grandes fatiadas em rodelas; tempero caseiro (sal, cebola e alho); cheiro- verde a gosto

Modo de fazer
Corte o frango inteiro no rumo das articulações. Tempere a carne a gosto. Reserve os miúdos. Em uma panela, adicione a banha de porco para fritar em imersão. Espere a banha derreter e coloque os pedaços do frango com cuidado (peito, sobrecoxa, asa, pescoço). Deixe a carne dourar. Assim que estiver bem dourada, escorra a gordura. Adicione os miúdos (fígado, coração, moela, pé) e as cebolas fatiadas. Deixe fritar até criar uma crosta no fundo da panela. Inicie o pinga e frita, ou seja, regue a carne com pequena quantidade de água quando o fundo da panela estiver secando. Repita isso por diversas vezes, até que a cebola e o caldo estejam dourados. Insira água fervente até cobrir todo o frango. Deixe reduzir o líquido pela metade e inclua uma colher de banha de porco. O colágeno que sai das articulações deixa o caldo com um aspecto viscoso, levemente pegajoso, daí o nome preguento. Todo o processo leva em torno de 40 minutos. Acrescente cheiro-verde 
picadinho e sirva na própria panela.