Um bolo de nozes sem glúten mudou a vida de Carla Maia. Mãe de uma menina com alergias alimentares múltiplas, a então servidora pública ficou incorformada ao comer aquela massa. Mais parecia areia saborizada. “Só pensava: não é possível que vou ter que comer isso para o resto da vida.” Ela, então, decidiu ir para a cozinha. Pesquisou, testou e descobriu um mundo de possibilidades. Hoje é uma das representantes da confeitaria inclusiva, que desenvolve receitas sem leite, ovo, glúten e soja.
Mila, a filha de Carla, nasceu há seis anos com alergia a leite, trigo, soja e ovo. Desde então, a família teve que se submeter a uma dieta extremamente restritiva. “Não sabia cozinhar absolutamente nada que desse certo, então foi muito difícil. No início, ia tudo para o lixo”, conta.
Carla quebrou muito a cabeça. Cozinhava na base do erro e do acerto. Depois de incansáveis testes, passou a ter bons resultados e começou a compartilhar suas receitas na internet. Logo foi convidada para ensinar em oficinas para mães de alérgicos e enxergou uma nova profissão.
Para a confeitaria ser inclusiva, é preciso excluir um ou mais elementos. Mas Carla diz que nada é impossível, dá para adaptar qualquer receita usando ingredientes alternativos. “Bebi da cozinha vegana para atender os alérgicos, mas também achei importante ter a base da confeitaria tradicional para adaptar de forma mais fácil e natural.” Tanto que os seus doces se aproximam ao máximo dos tradicionais. A preocupação é manter textura e principalmente sabor parecidos, o que considera inegociável.
Dá para fazer bolo decorado? No seu novo curso on-line sobre confeitaria inclusiva, lançado em março, Carla prova que sim. As massas, inclusive, podem ser macias e saborosas. “Temos muitas opções de farinha sem glúten, só que não há uma única que substitua integralmente a de trigo. Precisamos trabalhar com um mix de farinhas com características diferentes, que se complementam”, pontua.
Antigamente, era comum usar farinha de arroz, mas o bolo ficava duro e seco. Tinha que esquentar para conseguir comer. O inconformismo da chef a fez chegar a 11 combinações de farinhas, que são apresentadas no curso, mas ela avisa que as possibilidades são infinitas. “Receita é detalhe. O aluno precisa entender o método para ter autonomia para criar as suas misturas.”
Segundo Carla, o mais importante é entender a função de cada farinha na receita. Basicamente, farinha de arroz ajuda na estrutura, fécula de batata aumenta a leveza e fécula de mandioca dá liga. Mas também podem entrar aveia, castanha-de-caju e amêndoas, que agregam sabor e nutrientes. Em todos os casos, a chef, com experiência em panificação, trabalha com fermentação natural, por ser mais saudável.
Mais de 30 receitas
Sobre os recheios, os alunos aprendem no curso mais de 30 receitas, incluindo compotas, geleias, brigadeiros e ganaches. Frutas e chocolate são os mais usados. Já na parte de cobertura e decoração, Carla destaca o buttercream feito com manteiga vegetal, que consegue ser tão eficiente quanto o tradicional. Fica macio como creme, endurece quando resfriado e suporta 12 horas sem derreter.
A festa pode ter brigadeiro? A chef mostra como é fácil fazer o docinho sem leite, que ainda tem característica de puxa. Uma das opções é produzir uma versão do leite condensado usando extratos vegetais, como de castanha-de-caju, amêndoas e coco. O modo de preparo é muito semelhante e a textura fica bem parecida. Ou, então, recorra a inhame, que não tem sabor marcante. Inhame e castanha-de-caju (além do açúcar) também podem ser usados para fazer um pudim com calda.
Outra receita surpreendente é a mousse de chocolate. No lugar da clara de ovo, entra a aquafaba, água do cozimento de leguminosas (a mais comum é o grão-de-bico). A descoberta do tenor francês Joël Roessel revolucionou a cozinha vegana. Carla se lembra de que, quando entrou para este universo, até encontrava receitas sem glúten e sem leite, mas sem ovo eram raríssimas opções.
O mousse tem apenas aquafaba e chocolate sem leite derretido. “Você cozinha o grão-de-bico, retira a água, refrigera, coloca na batedeira e monta como clara de ovo”, descreve. Essa mesma técnica é usada para fazer pão de ló e outras receitas que originalmente levam ovo.
Como mãe de alérgica, Carla vê com satisfação o desenvolvimento da confeitaria inclusiva. “No início, foi muito sofrido, me sentia extremamente sozinha, por isso queria apresentar opções gostosas e semelhantes para a família comer comigo. Inclusão alimentar não é atender só aquela pessoa, mas todo mundo se interessar e compartilhar da mesma comida para a pessoa se sentir incluída”, diz a chef, que sempre enxergou o alimento como ferramenta de inclusão, afeto e partilha.
Foco nos veganos
Vegetariana e interessada em alimentação saudável, Débora Vieira, logo que trocou o teatro pela confeitaria, em 2015, arriscou criar uma linha de doces sem ingredientes de origem animal. “Aproveitei a minha bagagem de comida vegetariana, de usar sementes e frutas, e comecei a fazer muitos testes em casa, porque não existiam muitos cursos”, conta a fundadora da Chocolate Lab.
O cardápio vegano era bem enxuto, mas deu certo. “Numa cidade que não tinha opção, o pouco é muito”, comenta. Um dos doces que mais fizeram sucesso na época, e até hoje está entre os mais vendidos, é o bombom de paçoca com crocante de arroz integral e chocolate belga.
Um ano depois, Débora abandonou os doces tradicionais e passou a atender apenas veganos, em uma cozinha totalmente descontaminada. “Fiquei com medo de perder clientela, mas não perdi, porque fazia doces veganos que atendessem todos. Tanto que em torno de 30% dos meus clientes não têm nenhum tipo de restrição. Buscam algo mais saudável.”
Débora foi uma das primeiras confeiteiras do Brasil a conseguir fazer macaron. Aprendeu em 2017 em um curso na França de confeitaria vegana e sem glúten. Troca-se a clara de ovo pela aquafaba. “O que eu fizer vendo. Recebo mensagem o ano inteiro querendo que mande para outros lugares do país.” Os sabores são pistache, brigadeiro, avelã com chocolate, frutas vermelhas e cappuccino.
Em todas as receitas, ela busca aproximar sabores e texturas da confeitaria tradicional. Com “leite condensado” de castanha-de-caju e açúcar faz brigadeiro, beijinho, cajuzinho e outros doces de festa. “O público entende que o doce vai ser diferente, mas querem sabores muito próximos do original.”
Na hora de fazer bolos, o leite é substituído por água ou leite vegetal e, mudando as proporções dos ingredientes, o ovo nem faz falta. A confeteira gosta muito de usar chocolate e chantili vegano na decoração. Atualmente, o bolo mais pedido é o Sensação, com massa de chocolate e recheio de brigadeiro, mousse de frutas vermelhas e geleia de morango.
Com seis anos de experiência, Débora já consegue adaptar boa parte das receitas da confeitaria tradicional, mas muitas ainda são desafiadoras. Por exemplo, brigadeiro branco, doce que os clientes sempre pedem. A textura fica boa, mas o sabor de castanha sobressai demais. Cheesecake e quindim, que dependem muito de um ingrediente de origem animal, ela prefere nem tentar.
No ano passado, com o ateliê parado por causa da pandemia, Débora lançou dois cursos on-line, um de bolos veganos confeitados e outro de chocolataria vegana. Novas vagas serão abertas em julho.
Brigadeiro de inhame (Carla Maia)
Ingredientes
200g de inhame cozido; 100g de leite vegetal ou água filtrada em temperatura ambiente; 100g de chocolate em barra 54% cacau; 80g de açúcar mascavo (que podem ser substituídos por 80g de çúcar de coco, 80g de açúcar demerara ou 55g de xilitol ou eritritol); 10g de cacau em pó; 10g de óleo de coco
Modo de fazer
Leve ao liquidificador o inhame cozido, o leite vegetal ou a água filtrada, o açúcar mascavo, o cacau em pó e o óleo de coco. Bata por 3 minutos em velocidade máxima ou até obter uma mistura lisa e homogênea. Transfira a mistura para uma panela e leve ao fogo baixo. Adicione o chocolate em barra 54% cacau picado e mexa por 15 minutos, controlando a temperatura, que não deve ser acima dos 70OC, para que o chocolate não queime. Transfira o brigadeiro para um recipiente e cubra com plástico-filme, de modo que encoste na superfície para não formar película. Leve à geladeira por 8 horas. Enrole os brigadeiros fazendo movimentos circulares, passe no granulado, coloque em forminhas e sirva.
Serviço
Carla Maia
(31) 98298-3998
Chocolate Lab
(31) 98794-6283