Jornal Estado de Minas

No mês do são-joão, projeto Fartura lança websérie com comidas juninas

Cumpade João, de Campina Grande, prepara a galinha de capoeira, chamada assim por viver totalmente livre, com farofa de bolão (foto: Adriana Benevenuto/Divulgação)

 Pelo segundo ano, o Parque do Povo, em Campina Grande, interior da Paraíba, está vazio. Sem bandeiras coloridas, sem música, sem dança, sem fantasia. Mas a festa junina resiste na casa e no coração dos paraibanos. É o que mostra a Expedição Fartura – Saudades de são-joão, que festeja o evento mais importante da região através da comida. Com sete episódios, a websérie, que entra no ar a partir desta quarta-feira, apresenta personagens emblemáticos e suas receitas.





Esta é a primeira expedição do projeto Fartura desde o início da pandemia. A viagem por Campina Grande e entorno, conhecida pelo maior são-joão do Brasil (são 30 dias seguidos), é um convite para matar a saudade da festa e da sua riqueza gastronômica. “Quando começamos a pensar no tema, lembrei-me de que a festa junina não ia acontecer de novo e ela é muito querida pelos brasileiros. Para os nordestinos, é a festa do ano, a que eles esperam o ano inteiro”, aponta a curadora gastronômica Carolina Daher.

A festa junina é a versão brasileira da festa do milho que, principalmente nas Américas, comemora o período da colheita do ingrediente, essencial na cozinha. “No Nordeste, é a festa da comida, da fartura, é a hora em que eles conseguem dividir o alimento. Por isso, temos uma ligação forte com a comida de são-joão”, pontua Carolina.
 
Na Casa do Doce, em Areia, a macacada é servida como recheio de panqueca (foto: Adriana Benevenuto/Divulgação)
 
Não por acaso, o milho é um dos protagonistas da expedição. O milho se transforma no famoso cuscuz da dona Lia, que idealizou o Memorial do Cuscuz, em Ingá. O milho também é a base do quarenta preparado por Nalva do Nascimento, que vive na comunidade quilombola Caiana dos Crioulos, em Alagoa Grande. “O quarenta é muito parecido com o cuscuz, só que leva mais tempero e, para prepará-lo, jogam a massa na água quente, misturam e fazem tipo uma farofa de cuscuz”, explica a curadora.





Em Campina Grande, a expedição encontra Cumpade João, chef do Restaurante Casa de Cumpade e figura emblemática do são-joão paraibano. Todo junho, ele recebe 1.500 pessoas por dia em sua fazenda para celebrar a festa.

Uma das comidas tradicionais servidas por Cumpade João é a galinha de capoeira, chamada assim por viver totalmente livre (para eles, a caipira é semi-industrial, porque come ração e dorme no poleiro). Em um dos episódios da websérie, o chef ensina a preparar a galinha cozida com farofa de bolão, receita muito parecida com o quarenta, mas feita com farinha de mandioca.
 
Onildo Rocha, representante da nova cozinha paraibana e nordestina, participou da expedição. Chef do Grupo Roccia, do qual faz parte o premiado restaurante Cozinha Roccia, em João Pessoa, que estaria lotado neste mês de são-joão, ele conhece bem os produtos da região. Sua cozinha é toda fundamentada no Movimento Armorial, manifesto do escritor Ariano Suassuna que exalta a cultura local.




 

Queijo de cabra

A expedição passa pela fazenda produtora de queijos de cabra Carnaúba, em Taperoá, que é da família de Suassuna, e, portanto, tem uma relação direta com a cozinha de Onildo. O chef, inclusive, ajuda no desenvolvimento das receitas. “Um dia, acompanhando a produção do queijo mais famoso, provei a massa antes de estar pronta e falei: quero levar assim. Acho o melhor produto deles”, comenta.
 
"Milho é tudo para mim, é a minha vida", diz dona Lia, fundadora do Memorial do Cuscuz (foto: Carolina Daher/Divulgação)
 
Essa pasta fresca de queijo de cabra é usada em várias receitas de Onildo, como o sorvete, a espuma que recheia a mandioca suflê e a massa da torta ensinada em um dos episódios.

Inspirado na torta de queijo basca, de origem espanhola, o chef trocou o queijo manchego (de ovelha) pelo de cabra, que tem percentual de gordura muito próximo do original. “A torta tem um toque salgado, mas tive que fazer uma adaptação para o brasileiro e, principalmente, para o nordestino, que se acostumou com o doce da cana-de-açúcar.” O adocicado fica por conta do caramelo de cumaru.





Nesta visita, Onildo sugeriu a produção de um novo queijo, que está em teste. Se der certo, ele terá uma camada de fungo na casca e o miolo mais mole e cremoso, como o francês camembert.

Seguindo a rota pelo sertão paraibano, Bethoven Picuí, da cidade de Picuí, ensina a fazer carne de sol, uma tradição de família. A avó dele preparava sozinha 1.500 quilos para vender no fim de semana.

Em Areia, a expedição visita um engenho que produz rapadura, uma cachaçaria e a Casa do Doce, onde Esther Vilar produz e vende mais de 80 receitas. Um doce curioso é o macacada, de banana, coco, rapadura e canela. Lá, ele é servido dentro de uma panqueca com mel de rapadura e canela em pó. Já Lúcia e Lucineide, do restaurante Vó Maria, mostram como se faz o bolo de pé de moleque, assado na folha de bananeira, que não leva amendoim. “É um bolo de mandioca com mel de engenho, coco e leite de coco, temperado com bastante cravo e erva-doce. Fica bem denso e escuro”, descreve Carolina.

 

Cuscuz não falta

Famosa pelo cuscuz, Maria Auxiliadora Mendes da Silva tem uma relação de amor com o milho. “Milho é tudo para mim, é a minha vida.” Dona Lia nasceu e cresceu na zona rural de Ingá, onde a família sempre viveu do roçado. Como não tinha pão nem bolacha, a sua avó, uma pequena fazendeira, fazia cuscuz todo dia de manhã. Tradição que atravessa gerações.




 
Picuí, a capital da carne de sol, é representada na websérie por Bethoven Picuí, que ensina receita de família (foto: Carolina Daher/Divulgação)
Foi com o milho que dona Lia conseguiu sobreviver e alimentar os quatro filhos. Aos 19 anos, ela inventou de fugir, querendo se libertar do trabalho pesado, e passou por maus bocados no Recife (PE). “Me lembrei do cuscuz da minha avó e comecei a fazer em casa. Dava para os menores comerem e mandava o mais velho vender na porta das obras”, conta.

Quando voltou para Ingá, com os filhos já crescidos, dona Lia sentiu que precisava dar continuidade à sua história. “A família ia morrendo e eu ia juntando peças antigas sem saber direito para quê.” Até que reuniu em um cômodo, no quintal de casa, objetos que pertenceram aos seus antepassados e criou o Memorial do Cuscuz. O moinho de pedra é usado até hoje para moer o milho. Chaleira, cuscuzeira de barro e peneira também fazem parte da coleção.

Ainda hoje, dona Lia vive do milho, mas não no roçado. Ela recebe grupos (de brasileiros e estrangeiros) para um almoço no Memorial. Cuscuz, galinha de capoeira e angu estão sempre no cardápio. “É tudo muito simples, sou uma pessoa pobre, mas graças a Deus tenho habilidade de receber bem”, diz com a humildade de quem nem gosta de ser chamada de cozinheira. O espaço atualmente está enfeitado com bandeirinhas coloridas. É o jeito de curtir o são-joão na pandemia.




 
Usando o queijo de cabra da Fazenda Carnaúba, em Taperoá, o chef Onildo Rocha faz a torta com caramelo de cumaru e tuile (foto: Carolina Daher/Divulgação )
 
Assim como a avó, dona Lia prepara no fogão a lenha o cuscuz chamado de cabeça amarrada. A massa, já hidratada, vai para um prato e é furada com uma colher. Depois, ela amarra com um pano de prato, vira de cabeça para baixo e encaixa na panela de barro, que está cheia de água, para cozinhar no vapor. “Cuscuz bom chega a ficar tremendo de tão fofinho.” E como chegar nisso? “Com muito amor.”

Na casa de dona Lia, também não pode faltar cuscuz. “Faltou cuscuz na mesa, faltou tudo. Todo dia comemos no café da manhã, almoço, jantar e quando dá fome.” O mais comum no café da manhã é o formiguinha, com radapura. Já no almoço, eles preferem sem recheio, para acompanhar as carnes. Mas dá para acrescentar na massa queijo, carne de sol, frango e o que mais der vontade.
 

Galinha de capoeira com farofa de bolão (Cumpade João)

Ingredientes
1 galinha de capoeira; 2 cebolas grandes cortadas miúdas; 5 dentes de alho amassados; 3 tomates picados em cubinhos; 1 maço de coentro; 1 colher de sopa de vinagre; sal a gosto; 1 colher de chá rasa de pimenta-do-reino; 1 colher de chá rasa de cominho; 2 colheres de sopa de colorau; 1 pitada de açúcar para dourar a carne; 300ml de água; 1 pitada generosa de sal; 1 colher de chá rasa de pimenta-do-reino; 100ml de manteiga de garrafa; 1 cebola roxa cortada miúda; 500g de farinha de mandioca; 1 maço de coentro

Modo de fazer
Higienize a carne da galinha e passe limão. Em uma panela de ferro ou de barro, coloque todos os ingredientes e misture bem. Mexa até refogar e a carne estiver corada. Adicione, pouco a pouco, a água fervente até que a carne esteja completamente cozida. Para saber se já chegou ao ponto, é só fincar um garfo no pé da galinha. Se a carne dilacerar, é sinal de que está pronta. Para a farofa de bolão (também conhecida como farofa matuta e farofa d’água), coloque 300ml de água para ferver. Adicione o sal, a pimenta, a manteiga de garrafa, a cebola e depois entre com a farinha de mandioca. Com uma colher, mexa a massa, que vai ficar “embolada”. Coloque o coentro e retire do fogo. Assim que a massa chegar a uma temperatura suportável à mão, esfarele os grumos até formar uma farofa grossa. Sirva a seguir.
 

Serviço

Expedição Fartura – Saudades de são-joão
De 23 a 29 de junho, um episódio por dia, sempre às 20h
Acesse pelo canal youtube.com/FarturaBrasil




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