Um lugar de convivência, aprendizado e experiências transformadoras. Até novembro do ano que vem, será inaugurado o restaurante Liberdade, que vai funcionar dentro da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) em São João del-Rei, no Campo das Vertentes.
Inédito no Brasil, o espaço, projetado pelo arquiteto Gustavo Penna, deve entrar no circuito turístico da região. Não vão faltar motivos para se sentar em uma das mesas, entre eles saborear pratos da gastronomia local, apoiar o projeto de reintegração de presos à sociedade e viver uma experiência curiosa.
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Ovo é a estrela de cardápio de rede carioca que começa expansão por BHNos 20 anos do D'Artagnan, relembramos histórias e clássicos do cardápioGustavo Penna encara o projeto mais complexo da sua carreira em BrumadinhoTragaluz, em Tiradentes, quer ser o melhor restaurante do interior do paísTudo pelo conforto: brasileiros se aproximam de pratos típicos na pandemiaChefs ensinam os filhos a se relacionar com os alimentos e a cozinhaA inspiração para o projeto vem da Itália. Há um ano, a psicóloga Cristina Nascimento, uma das idealizadoras do Fórum do Amanhã, que promove encontros uma vez por ano em Tiradentes para discutir soluções inovadoras para o Brasil, soube de um restaurante dentro de uma prisão em Milão. De nome In Galera (do italiano, Na cadeia), ele é totalmente administrado pelos presos.
“Quando soube desta iniciativa, pensei que poderia dar certo na Apac de São João del-Rei. Eles estão ao lado de Tiradentes, que é um grande polo turístico e de gastronomia.”
O Fórum do Amanhã se propõe também a dar visibilidade a iniciativas inovadoras, e a Apac é uma delas. Todo ano, os organizadores levam convidados para conhecer a instituição e comer o que os recuperandos cozinham. As pessoas, em geral, ficam emocionadas e interessadas em ajudar o projeto.
“A Apac é um exemplo de como o Brasil poderia ser diferente, aponta para o futuro que queremos criar. Imagina o que significa ter uma prisão em que os próprios presos têm a chave, estudam, trabalham e são tratados com humanidade. Isso vai na contramão de tudo o que vemos nas prisões tradicionais.”
Rafael Pires, do restaurante Mia, em Tiradentes, é o chef-executivo do projeto. Ele vai montar e treinar a equipe, além de elaborar os cardápios. A cozinha do Liberdade também terá três chefs consultores, que vão dar aulas, ajudar na criação de receitas e promover jantares coletivos. São eles: Flávio Trombino (Xapuri), Caetano Sobrinho (Caê) e Fred Trindade.
Por um Brasil melhor
“É emocionante participar de um projeto deste tamanho, que há poucos meses era só uma conversa e agora já está pronto e vemos pessoas interessadas em ajudar. Ser cozinheiro é muito bom, mas todo mundo precisa fazer um pouco a mais para tornar o Brasil melhor”, comenta o chef, convencido de que a iniciativa vai virar modelo para o país inteiro.
O restaurante vai seguir o lema do Slow Food, que, em resumo, se volta para o alimento bom, limpo e justo para todos. Carlo Petrini, o italiano que fundou o movimento, foi consultado e apoia a iniciativa. Segundo o chef do Liberdade, o plano é usar o máximo de produtos cultivados na Apac para criar uma cozinha sazonal. “Queremos elevar ainda mais o nível da cozinha mineira, que já é muito bem falada no Brasil. Diria que é a nova cozinha mineira”, adianta Rafael.
Para abastecer o restaurante, a horta será ampliada e os recuperandos passarão a trabalhar com animais de corte, inicialmente menores, como galinha, pato, cordeiro e porco.
O chef enxerga que a missão do Liberdade vai de uma ponta a outra: incentiva a produção de alimentos, ensina recuperandos a trabalhar em uma cozinha profissional e ajuda a reinseri-los no mercado de trabalho e também na sociedade. “O nosso objetivo é dar treinamento para eles saírem com uma profissão, de cozinheiro a garçom. Temos dificuldade de conseguir funcionários e lá está cheio de bons profissionais, que acabam não tendo chance.”
Os testes na cozinha já começaram. No Dia das Mães, Rafael preparou com a equipe responsável pela comida (cinco da cozinha e três da padaria) um almoço especial para as mães dos recuperandos em regime fechado. Por causa da pandemia, eles ficaram mais de um ano sem receber visitas.
O cardápio, criado pelos quatro chefs envolvidos com o projeto, tinha como prato principal frango a passarinho com farofa de feijão-andu, arroz caldoso com verduras e legumes da Apac e conserva de repolho roxo. No dia, eles conseguiram colher ora-pro-nóbis, couve e cenoura. De sobremesa, o bolo mané pelado, com mandioca da horta, coco e queijo. O Projeto Fartura ajudou doando ingredientes.
Cozinha entusiasmada
O serviço na cozinha começou às 7h e as marmitas saíram para entrega a partir das 11h30. No total, a equipe preparou 220 refeições para mães que moram em São João del Rei e recuperandos. “Todos que trabalham na cozinha ficaram entusiasmados, querendo conversar e aprender. Levei vários temperos, como páprica defumada e pimenta-do-reino, e eles ficaram curiosos para conhecer. Acharam supersimples o processo de conserva do repolho e gostaram do sabor”, conta.
A experiência de cozinhar com os recuperandos, segundo Rafael, é única. Ver a felicidade deles de ter uma segunda chance e o interesse em seguir uma profissão. “Mudando a vida de um, estamos mudando a vida de várias pessoas. Isso vira uma reação em cadeia.” Dois já contaram para o chef que têm vontade de estudar gastronomia para, no dia em que sair da Apac, poder trabalhar em restaurante.
Para o presidente da Apac de São João del-Rei, Antônio Fazatto, o Liberdade reforça a missão da instituição de qualificar os recuperandos para que saiam de lá com uma profissão e nunca mais se envolvam em crimes. “A nossa oficina de gastronomia é a nossa própria cozinha. Com o projeto, eles vão aprender a fazer uma comida sofisticada e se tornar grandes chefs. Aqui na nossa região tem muito restaurante e poucos profissionais qualificados”, aponta.
Dos 400 recuperandos, 80 fazem cursos superiores e um entrou para um mestrado a distância na Universidade de São Paulo (Usp).
Hoje na cozinha e na padaria trabalham, em média, 17 recuperandos, em dois turnos. A cada três dias de trabalho, subtrai-se um dia da pena. O plano é que o restaurante tenha uma equipe de 40 a 50 pessoas, divididos entre horta, açougue, cozinha, salão, administração e limpeza. “No início, vou estar mais presente e quero ir todo dia um pouco. Mas o meu objetivo é treinar um subchef para que o restaurante seja totalmente independente”, pontua Rafael.
O lucro com a operação do restaurante será revertido para a própria Apac e os recuperandos decidirão juntos a destinação do dinheiro.
Uma grande varanda
O arquiteto Gustavo Penna mergulhou de cabeça no projeto ao receber o convite. “Este é o tipo de trabalho em que acredito para assuntos que são desprezados, colocados na sala lateral das nossas preocupação. A maioria das pessoas quer esquecer que existem presos, mas temos que tomar como fundamental dar ao recuperando a possibilidade de pagar suas dívidas com a sociedade, reconstruir a sua vida e não ser um lixo social.”
O trabalho começou pela escolha do nome Liberdade. “Como gosto de palavras, se o nome não me inspira, não consigo pensar, é como se estivesse claudicando.” Gustavo desenhou a logotipo com a letra L invertida e uma asa em cima e o designer Gustavo Greco criou a identidade visual.
O restaurante vai ficar entre as alas feminina e masculina da Apac, onde tem bastante verde e uma capela ao lado. Será totalmente aberto, como uma grande varanda. “Varanda é o espaço mais democrático que existe na nossa arquitetura autóctone, onde escravo se encontrava com senhor, um espaço de transição entre interior e exterior”, aponta.
Segundo o arquiteto, a construção será simples e sem muitos elementos. Piso de pedra, paredes brancas e teto de esteira, com fendas que simbolizam novas perspectivas para a liberdade. Painéis de esteira de bambu vão ajudar a controlar o sol e o vento. “O restaurante não tem nenhum elemento sofisticado, não tem glamour, mas tem uma chaminé que liberta as pessoas, é por onde sai a esperança.”
Cozinha e salão serão integrados. No fundo, um grande balcão que emoldura o fogão. “O fogão será altar, rei, onde se celebram todos os sabores, cheiros, o fazer coletivo, o compartilhar, onde se faz a retomada de valores e de contato com mundo.” As pessoas vão poder se sentar no balcão e acompanhar de perto o trabalho dos recuperandos na cozinha.
Resposta positiva
A fase agora é de levantar os custos do projeto e buscar parceiros e investidores para iniciar a obra. “Ainda não temos números, mas já sabemos, de antemão, que o custo vai ser bem menor que o de uma construção convencional. Vamos usar o tijolo ecológico que a Apac faz, receber doações e os próprios recuperandos vão trabalhar na obra”, explica Cristina Nascimento, do Fórum do Amanhã.
A psicóloga acrescenta que a resposta ao projeto tem sido muito positiva e entusiasmada. Os recuperandos se sentem motivados, várias empresas querem ajudar e o público está curioso com a experiência. “Não há quem não se emocione e se motive. Fizemos, inclusive, uma pesquisa informal em Tiradentes e as pessoas dizem que iriam, sim, a um restaurante dentro da prisão.”
Até o restaurante ser inaugurado, a ideia é fazer outras ações de delivery para ajustar, aos poucos, o funcionamento da cozinha. O Fartura já planeja levar para dentro da Apac, na próxima edição do festival de gastronomia, o seu projeto social Fartura de amor, que produz e distribui marmitas.
O chef Rafael Pires também pensa em criar produtos congelados, como palitinho de mandioca com queijo minas artesanal, para vender em bares, restaurantes e casas de eventos. Este seria o primeiro passo para, futuramente, a Apac abrir o seu próprio bufê.
Mané pelado (Rafael Pires)
Ingredientes
xícaras de mandioca ralada; 2 xícaras de parmesão ralado; 3 xícaras de leite; 1 xícara de açúcar; 5 ovos; 2 colheres de sopa de manteiga; 1 xícara de coco ralado; 1 colher de sopa de fermento
Modo de fazer
Bata os ovos. Despeje os ovos batidos em uma vasilha e adicione os demais ingredientes, exceto o fermento, que deve ser colocado por último. Mexa para misturar bem. Despeje a massa em uma forma untada com manteiga e leve ao forno médio por 50 minutos ou até que doure.