Tiradentes – A cidade histórica voltou a sentir os aromas, sabores e o calor dos encontros ao redor da mesa durante a 24ª edição do Festival Cultura e Gastronomia. Além dos festins, a Mercearia Fartura, que promove a valorização de pequenos produtores mineiros, ocorreu presencialmente. Já que não podia ter degustação, em razão da pandemia, o público teve a oportunidade de experimentar os produtos em receitas criadas por chefs de seis restaurantes.
Dezoito produtores de várias regiões participaram da Mercearia Fartura, sendo que sete estavam em estandes no Largo das Forras. Destaque para produtos da Serra da Mantiqueira, destino da última expedição do Projeto Fartura. “Queremos levar para o público o que mais empolga na gastronomia, que são os personagens e as histórias por trás dos pratos”, aponta o diretor-geral do festival, Rodrigo Ferraz.
A chef Deborah Blower, do Alma, diz que a conexão entre os produtos e os restaurantes foi uma ótima solução para driblar as restrições da pandemia. Para ela, só de se aproximar de um ingrediente mineiro valeu a experiência. “Aqui usamos muitos produtos importados, às vezes não por opção, mas pela característica do restaurante, que serve pratos portugueses mais clássicos, e acabamos não enaltecendo produtos da região e do país”, comenta.
A missão era usar o azeite Serra que Chora, da Serra da Mantiqueira. Deborah escolheu incluí-lo na receita do bacalhau à Brás, que representa bem a proposta do restaurante, de seguir a tradição portuguesa, e leva bastante azeite (antes, durante e depois). As lascas de bacalhau são envolvidas por alho frito no azeite, cebolas douradas, ervas frescas e bastante azeite. O creme de ovos entra para dar sabor e cremosidade. Para finalizar, batata palha da casa e mais azeite.
Segundo Deborah, o azeite mineiro deu outro sabor ao prato. “O Serra que Chora tem aroma de ervas muito forte, é fresco, leve e delicado, enquanto o português que uso é muito mais forte e mais presente. Não que um seja melhor que o outro, eles são totalmente diferentes.” Muitos clientes quiseram experimentar o azeite sozinho ou com pães e aprovaram. A chef espera continuar com a parceria.
História de 85 anos
Mais antiga produtora de pé de moleque de Piranguinho, a Barraca Vermelha participou pela segunda vez do festival em Tiradentes, mas o intercâmbio com restaurantes é novidade. “É uma honra ter chefs que gostam do nosso produto e criam receita com ele, e isso chama a atenção para a nossa história, que é muito antiga, familiar e artesanal”, destaca a proprietária, Sônia Torino.
A história da Barraca Vermelha começou há 85 anos. Se Piranguinho ficou conhecida como a capital do pé de moleque, é graças à família Torino. Matilde e Alcéa (avó e tia de Sônia) começaram a vender o doce dentro dos trens de passageiro e depois montaram uma barraquinha na beira da estrada, que ficou conhecida como Barraca Vermelha, por causa da sua cor. A fama se espalhou rapidamente. Em uma carta de 1953, Carlos Drummond de Andrade descreveu o doce como uma “uma joia rara”.
A receita é a mesma desde então, leva só rapadura e amendoim. Sônia diz que não tem segredo: o diferencial está em detalhes, como a escolha da matéria-prima. “Até hoje a nossa produção é artesanal. Escolhemos manualmente os amendoins, torramos diariamente e fazemos pé de moleque toda hora. Os clientes chegam e comem quentinho”, completa Sônia, acrescentando na lista o amor pelo que faz.
O pé de moleque de Piranguinho foi parar no café do Museu da Moto. Quando experimentou, a chef e nutricionista Pâmela Sarkis teve a ideia de fazer um bolo. “Estava esperando um pé de moleque duro, mas ele é muito macio, parece uma bala, e, se apertar, esfarela na mão”, descreve. Com base nessas características, ela usou o doce para substituir o açúcar (com a rapadura) e parte da farinha de trigo (esfarelado, vira uma farinha de amendoim).
A massa leva banana e especiarias como noz-moscada e gengibre, e, para finalizar, uma calda de rapadura com cachaça. Batizado de Motorino's Cake (junção da palavra moto com o sobrenome da família que produz o pé de moleque), o bolo vai continuar no cardápio e pode ser tanto uma sobremesa quanto uma opção para acompanhar o café da tarde.
Todos ganham
Apesar de ter uma cozinha internacional, o Ateliê Gastronômico privilegia produtos mineiros. A vantagem para o restaurante, segundo o chef e proprietário, Higor Braga, é trabalhar com ingredientes frescos e de procedência conhecida. Os clientes também ganham com essa escolha. “O público quer viver o que tem em Tiradentes, então, quanto mais produtos locais, melhor. Consigo oferecer qualidade e ainda satisfazê-lo além do restaurante.” A iniciativa acaba sendo um incentivo para os produtores.
Durante o festival, Higor conheceu mais um produto de Minas e teve a oportunidade de servi-lo aos clientes em um prato. O mel Flores de Minas, de Carmo de Minas, foi usado na receita da Costelinha Casa Grande. Entrou na hora de glaçar a costelinha defumada, que é servida com purê de maçã verde e farofa de amendoim com panko.
O chef já decidiu que vai incluir o produto da Serra da Mantiqueira em outras receitas que levam mel, como o risoto de figo com nozes e presunto parma e o drinque Sevilha, com mexerica, gim, tônica, alecrim e canela. “Gostei bastante do mel, ele é menos denso e com sabor mais suave.”
O trabalho de Higor tem muito valor para Edna Ribeiro, da Flores de Minas, que tenta desmistificar o uso do seu produto. “Mel é alimento, e não remédio.” Participar do festival também foi uma oportunidade de educar o consumidor para não ser enganado pelos falsários, que vendem água com açúcar, e de abrir mercado fora do estado.
Edna é da terceira geração de uma família produtora de mel, mas só ela quis transformar a paixão pelas abelhas em negócio. A produção se concentra em matas na Serra da Mantiqueira, a mais de mil metros de altitude, onde ela consegue uma grande variedade de flores para ter mel o ano todo e com sabores diferentes. Entre as espécies, alecrim, aroeira, copaíba e eucalipto.
Resgate da tradição
A Catauá, fazenda que produz queijos, embutidos, molhos e geleias em Coronel Xavier Chaves, participou virtualmente da Mercearia Fartura. O público conheceu a história de João Dutra, que, na década de 1990, resgatou a tradição da família e do Campo das Vertentes, uma das regiões queijeiras mais antigas de Minas. “O queijo é simples, mas traz o sabor da infância das fazendas antigas”, diz a filha dele, Mariana Resende, que se orgulha de ser produtora rural e manter viva a história dos seus antepassados.
A queijaria fica colada no curral para garantir que o leite chegue praticamente na mesma temperatura de quando saiu da vaca. “Se ele esfria, não pode ser esquentado e perde qualidade na massa.” Imediatamente, adiciona-se o pingo (fermento biológico) e o coalho (agente coagulante). A produção, em média, é de 25 peças por dia.
Para ser vendido, o queijo Catauá passa por maturação de 22 dias. Assim, ele é chamado de meia cura e tem casca amarelada e lisa, sabor leve e levemente ácido e olhaduras (os furinhos), características da região. O Alferes é o mesmo queijo, só que leva mais tempo de maturação (já se chegou a um ano e meio). “Ele vai ganhando personalidade e fica com sabor bem mais apurado.”
A charcutaria tem uma história mais recente. Vem do desejo, assim como o queijo, de resgatar técnicas de preparo e conservação dos alimentos que não sejam necessariamente fogo e refrigeração e ampliar a linha de produtos. O chef Emmanuel Mayer é quem desenvolve as receitas dos embutidos, molhos e geleias. “Usamos a defumação para fazer as carnes. Nos potes, os conservantes são naturais (açúcar e vinagre) e o pingo é a base do nosso queijo”, lista.
Mariana fica feliz de ver os restaurantes usando os produtos da região, e ela enxerga que o festival faz muito bem essa conexão. “Quanto mais chefs conhecem, valorizam e apoiam o pequeno produtor local, mais forte fica a gastronomia”, ana- lisa. O Gourmeco serviu em um dos festins tortellini de abóbora com queijo azul e brodo feito com embutidos da Catauá, enquanto o Angatu usou o pastrami para acompanhar o repolho servido com molho roti de legumes e pistache.
A estimativa é de que 20 mil pessoas circularam por Tiradentes durante os nove dias de festival. De acordo com Rodrigo Ferraz, esse número corresponde a 40% do público das outras edições presenciais, mas, considerando o momento de pandemia, é muito satisfatório. “É uma satisfação ver a cidade e os restaurantes movimentados.” Para o ano que vem, quando o evento completará 25 anos, o plano é espalhar a programação por vários pontos da cidade.
Bacalhau à Brás (Alma Restaurante)
Ingredientes
360g de bacalhau (Gadus mohua) previamente dessalgado, cozido e lascado; 1 cebola média cortada em julienne; 2 dentes grandes de alho cortados em lascas; 6 ovos inteiros (de preferência caipira); 6 gemas; 2 batatas asterix médias; 200ml de azeite; salsinha fresca picada a gosto; sal e pimenta a gosto.
Modo de fazer
Passe as batatas no mandolim a 2mm de espessura e corte-as no formato “palha” com a faca. Frite em óleo a 180°C, até que fiquem bem douradas. Reserve. Em uma panela à parte, use 50ml do azeite para fritar as lascas bem finas de alho, até que dourem. Reserve. Em uma panela wok antiaderente, comece refogando a cebola com mais 50ml de azeite, até que fiquem douradas e macias (quando necessário, pingue um pouco de água para ajudar na cocção). Quando atingirem o ponto desejado, despeje o bacalhau em lascas, a salsinha picada e o alho já pronto. Deixe por 2 ou 3 minutos até que os ingredientes se harmonizem. Enquanto isso, bata os ovos inteiros com as gemas. Tire a panela do fogo e deixe esfriar por alguns segundos para que não dê choque térmico nos ovos. Acrescente o creme de ovos batido e volte para o fogo bem baixo. Tempere. Mexa sem parar, com um pão duro, para que os ovos não coagulem em diferentes pontos. Quando começar a criar cremosidade, acrescente 50ml do azeite e metade da batata palha. Continue mexendo até que cozinhe os ovos. O ponto correto é antes de ficar como ovos mexidos (use como referência o ponto do clássico carbonara). Finalize com o restante do azeite e as batatas.