Foi reinaugurado recentemente, na Praça Duque de Caxias, Santa Tereza, o Le Banquet da Loucura, da chef Mariangela Gusmão. A casa abriu em dezembro de 2019, mas teve que fechar as portas em março por causa da pandemia. A proposta inicial era ter apenas uma grande mesa comunitária, onde Mariangela serviria um banquete todas as noites. Poderia ser para um único grupo de amigos ou para pessoas desconhecidas que interagiriam umas com as outras, na mesa, que tem, por tradição, ser o melhor lugar para convivência e conversas agradáveis.
Depois de todo esse tempo atendendo em períodos esporádicos, de acordo com a permissão das autoridades municipais, a chef decidiu mudar um pouco a proposta. A grande mesa continua, porém em outra sala foram colocadas mesas menores e um outro ambiente abriga um bar que passou a ser comandado pela bartender Julia Cendon. O nome inicial era apenas Le Banquet, mas ganhou um “sobrenome” da Loucura, que segundo a chef é uma referência ao que a pandemia causou em todo mundo. Agora a casa comporta até 28 pessoas.
O ambiente é pra lá de especial. O grande casarão antigo recebeu projeto de Will Lobato e retrata muito da personalidade e da vida de Mariângela. Em cada canto que você olha, descobre uma coisa interessante. O ambiente ficou um kitch chic. Parede forrada de papelão com aquarelas. Iluminação suave, o antigo ferro de passar se torna peso de porta. Mas tudo isso é detalhe perto do mais importante, a gastronomia. Cada dia será um cardápio diferente, com apenas duas opções de pratos.
A especialidade será comida baiana, belga e mineira. Mas a chef não consegue ficar dentro de nenhuma caixinha e garante que alguns dias visitará outros países: “Vou trazer o mundo que eu vivi aqui para dentro. Sempre terei sugestões e pratos fixos. Aos domingos, servirei feijoada musical a partir das 12h. Se alguém quiser fazer almoço durante a semana ou no sábado, sob encomenda, a partir de 10 pessoas, abriremos. Aqui, com encomenda, tudo é possível. E uma vez por mês serviremos brunch aos sábados”, arremata.
Sedução pelo proibido Mariângela Gusmão é canhota e por isso era proibida por sua avó Luzia de entrar na cozinha, que ficava trancada a chave. Tudo isso porque a neta tinha a “mão do diabo”, se entrasse na cozinha toda a comida desandava. Na hora das refeições, a mãe de Mariângela amarrava sua mão esquerda na cadeira para obrigá-la a comer com a direita. Chegou a ser internada em um colégio de freiras para exorcizar o demônio que tinha na mão esquerda. A menina não ligava; se era para não ser nada, tudo bem, ia ser dondoca. Mas do lado de fora da cozinha ela ouvia os sons dos refogados e sentia o cheiro dos temperos. E tinha uma coisa: dom.
Aos 19 anos, saiu de casa e foi parar em São Paulo. Conseguiu um lugar em pensão e um trabalho no banco. A dona da pensão tinha filhos e disse que se ela cozinhasse para os filhos, não precisaria pagar pelo quarto. Correu em uma banca de revistas, comprou a revista Bom Apetite para aprender a fazer ovo. Seu primeiro prato foi maionese com batata, ovos e uma lata de seleta de legumes da Cica. “Tinha fotografado na cabeça o que vivi. Quando peguei as panelas e comecei a cozinhar foi mágico, instintivo. Eu me lembrava dos barulhos e dos cheiros e do resultado na mesa. As mesas da minha casa eram lindas, verdadeiros banquetes”, relembra. Nasceu assim uma cozinheira de mão cheia.
Trabalhava no banco e um cliente milionário se apaixonou por ela. Casaram-se, tiveram dois filhos. Depois de 10 anos, se separou e saiu de casa com a roupa do corpo. Foi para Ribeirão Preto, onde trabalhou em um restaurante, como ajudante de cozinha. De lá, foi para São Paulo, e foi trabalhando em um restaurante que conheceu a pessoa que mudaria seu futuro: a dona de uma agência de viagem, muito rica, que precisava de uma secretária particular, e contratou Mariângela.
“Ela sempre falava comigo que seu eu fosse para Nova York ou para a Europa com a minha comida, eu ficaria rica. Fui para o Rio de Janeiro, de lá para Búzios, levada por uma amiga, onde abrimos uma pousada, a Hospedaria Sete Mares, e ali abri o Restaurante CB&A (Comida Brasileira e Afrodisíaca). Eram os anos 1980, e não tinha comida brasileira por lá. Não durou muito; a Índia, minha sócia, era muito louca”, relembra Mariângela.
Em Búzios, conheceu e ficou amiga de uma americana que a convidou para ir para Nova York. A baiana destemida não pestanejou, arrumou as malas e foi. Na Big Apple, trabalhou no Nefertiti Café. “Aprendi muito lá, foi uma escola gastronômica, convivi com gente do mundo todo. Foi lá que conheci meu segundo marido, um belga, e fui com ele para a Bélgica.”
Trabalhou no Chez Henry, um tradicional restaurante, onde ela aprendeu a fazer “batatas fritas divinas, salmão marinado, caçarolas de mariscos, lagostas e muita coisa mais”, conta. “O restaurante existe até hoje, tem mais de 90 anos. A melhor caçarola da Bélgica é de lá. O dono de lá era do babado, Eduardo Parizzi, um italiano bon vivant. Fiquei lá aprendendo por quase dois anos, nadei de braçada, e fazia comida brasileira para o pessoal do serviço, Cozinhava comida brasileira para o pessoal de trabalho.”
Depois, o proprietário do Java Bar abriu uma cantina na cave do bar para ela cozinhar. Chamava La Cantina do Bar Java. Para contratá-la, fez um teste, ela tinha que fazer um chilly com carne. “Eu não sabia, comprei um livro mexicano e aprendi. Na Bélgica, eles gostam muito desse prato e de espaguete à bolonhesa porque não tem lá. Fiz os dois e ele amou. Fui contratada. A cada semana, fazia um tipo de comida diferente, porque só tinha uma mesa, e para entrar tinha que ter a chave e ele só distribuiu sete chaves, para clientes especiais. Cozinhava no fogão a lenha, porque servia para esquentar o local, e a cozinha era aberta. O sucesso foi tão grande que depois ele fez um restaurante maior no andar acima do bar, e um lounge. Fiquei lá até o ano 2000.”
Mas a brasileira queria ser vista e mudou o restaurante para a Rua Jardim das Oliveiras, 13. Quando Bruxelas foi eleita capital cultural da Europa, Mariangela foi convidada pelo diretor do museu, Alexandre Vantergald, que já era seu cliente desde 1996, para fazer cinco banquetes para a abertura oficial do Museu de Erasmos de Roterdã. Seriam cinco noites de banquete, em uma mesa de 60 lugares, à luz de 300 velas. Por causa do sucesso desses banquetes ele escreveu o livro de receitas “Le banquet de la folie”, que demorou cinco anos para ficar pronto, e já está na 3ª edição. Em 2008, abriu outra casa, no alto da cidade, com galeria de arte, e deu o nome de L’Outra Cantina, onde ficou até 2015. Nesse ano, decidiu parar, vendeu tudo, passou um tempo viajando pela Europa, vendo o que queria fazer, e em 2018 o amigo Ronaldo Fraga ligou e a chamou para vir a Belo Horizonte fazer um jantar para ele. Ela veio, e decidiu ficar.