Como começa a história culinária de uma cidade? Com a tradição, e isso leva tempo. Brasília tem 61 anos de vida e por isso não podemos dizer que lá tem uma culinária típica como em outras cidades centenárias ou até mesmo quatrocentonas de nosso país. Mas sua história gastronômica começou antes mesmo de ela ser inaugurada, e, agora, está oficialmente registrada no livro “História dos sabores que vivi”, de Liana Sabo, organizado por Rosualdo Rodrigues, que inaugura o selo Boníssimo! Edições.
A obra é uma coletânea de matérias gastronômicas escritas por Liana e publicadas ao longo de três décadas no jornal Correio Braziliense. “Podemos dizer que eu inventei o jornalismo gastronômico em Brasília, ou melhor, em Goiás. Antes de eu começar a escrever sobre gastronomia, a culinária na imprensa se restringia em publicar receitas de pratos para o Dia das Mães, Natal e réveillon”, diz Liana. “Mostrei que comida é notícia. Para isso, a primeira coisa que o profissional precisa é saber comer, conhecer os ingredientes, saber de onde vêm, suas composições, com o que combinam.”
A história gastronômica de Brasília começa antes mesmo de ela ser inaugurada, quando os primeiros restaurantes se estabeleceram na Cidade Livre (hoje, Núcleo Bandeirante). Mas foi só na década de 1990 que ela começou a ser contada de forma mais sistemática, quando, em 1993, a jornalista Liana Sabo escreveu os primeiros textos sobre o assunto, tornando-se pioneira no jornalismo gastronômico não só de Brasília, mas do Centro-Oeste.
Primeiro lançamento do selo Boníssimo! Edições, “Histórias dos sabores que vivi” é uma coletânea de matérias e notas escritas por Liana ao longo de três décadas e publicadas nas páginas do Correio Braziliense, jornal onde mantém desde 1998 a coluna Favas contadas. Nos escritos de Liana, estão registros de restaurantes, chefs, proprietários e outros personagens que até hoje estão em evidência ou que vieram, contribuíram de alguma forma para a história da gastronomia na capital, e se foram.
“O nome da minha coluna eu ‘roubei’ de uma publicação espanhola, ‘Favas contadas’, uma expressão muito usada por lá. Brasília tem uma comida local muito semelhante às comidas mineira e goiana.
Afinal, são vizinhas, feitas de ingredientes que crescem no local, frutos do cerrado. Temos e devemos usar ingredientes do nosso terroir. É como os árabes e os judeus, que apesar de serem ‘inimigos’ têm os mesmos pratos, com nomes diferentes, porque são feitos com ingredientes do terroir deles, que é o mesmo”, explica.
Os artigos foram selecionados e organizados pelo também jornalista Rosualdo Rodrigues, idealizador do livro. Os textos estão divididos em sete capítulos: Histórias de pioneiros, A cozinha e o poder, Brasília à mesa, O sabor do mundo, O mundo dos vinhos, Ingredientes e preparos, e Ao sabor das horas vagas – este último, sobre a incursão de personalidades de outras áreas no mundo da cozinha.
Mesmo quando os textos são factuais, referem-se a acontecimentos pontuais – a inauguração ou o fechamento de um restaurante, um evento, uma nova tendência, a vinda de um chef celebridade etc. A habilidade de repórter de Liana Sabo acaba por enriquecê-los com histórias ou informações curiosas, fazendo com que não percam o interesse e transformando-os em registros preciosos.
“Histórias dos sabores que vivi” foi produzido com apoio do Correio Braziliense e conta com textos de apresentação do chef Francisco Ansilier, de 82 anos, proprietário dos restaurantes Dom Francisco, e que até hoje trabalha diariamente. Só fez uma pequena pausa durante o lockdown imposto pela pandemia. A outra apresentação é da jorna- lista Conceição Freitas, e as fotografias são de Zuleika de Souza, projeto gráfico de Chica Magalhães e preparação de originais de Teresa Mello.
O livro pode ser adquirido na loja on-line do Boníssimo! e em formato digital na plataforma Amazon.com.
Começo com requinte
O primeiro estabelecimento comercial de alimentação aberto antes mesmo da inauguração de Brasília foi uma padaria de um italiano. Mas, segundo Liana, a aglomeração de pessoas, depois que terminava o dia de obras, era na Cidade Livre, onde as pessoas que davam duro o dia inteiro iam comer bem à noite. Peões, engenheiros e autoridades marcavam ponto por lá e por isso era cheio de restaurantes, desde os mais simples e populares até os mais sofisticados, de propriedade de europeus, com direito a mâitres e serviço de alto requinte. “Por isso, desde o início, a gastronomia de Brasília sempre foi cosmopolita”, define Sabo.
Foi graças ao valor que a gastronomia local adquiriu com a visibilidade e destaque dados pela coluna da jornalista Liana Sabo que a culinária local cresceu. Como resultado do seu trabalho e da força do Correio Braziliense, os produtos do cerrado passaram a ser destaque na composição dos pratos e disso nasceu o Festival Gastronômico de Pirinópolis.
“Não podemos comparar São Paulo com Brasília, gastronomicamente falando. A capital paulista tem 467 anos; Brasília completará, em abril, 62 anos. Ainda temos um longo caminho pela frente, mas o que o brasiliense mais adora é carne, e por isso tem muita parrilha por aqui”, conta a jornalista.
Rosualdo foi editor de Liana no Correio Braziliense. Ela lembra que quando ele revisava seus artigos via seus ombros chacoalhando, numa real alusão de que estava rindo. E depois dizia a ela que o texto era um deleite. E a jornalista acredita que esse foi um dos fatores que o levaram a querer editar o livro, que já teve três lançamentos: um no Correio Brazilense, outro no Café Gentil, e o terceiro na Banca da Conceição. E não para por aí: em 22 de dezembro terá um quarto lançamento, desta vez na loja de vinhos Garrafeira.
Liana é jornalista de reconhecimento internacional. Por causa de seu trabalho, foi convidada há 10 anos para compor o júri que escolhe os 50 melhores restaurantes do mundo. Iniciativa da revista inglesa “Gastronomy”, segundo maior ranking mundial de classificação (o primeiro é o “Michelin”). O convite partiu do representante no Brasil, o primeiro mais importante crítico gastronômico nacional, Josimar Melo. “Nos últimos 5 anos, o ranking deu filhote, e agora escolhemos também os 50 melhores restaurantes da Ásia e os 50 melhores da América Latina. Temos que visitar os restaurantes. Já fui a Bancoc três vezes, à Escadinávia, etc. Invisto na minha carreira”, diz.
Mineiros em Brasília
Duas culturas muito fortes são presença maciça na capital do país: mineiros e nordestinos, e por isso mesmo suas culinárias exercem forte influência na cidade. Não são poucos os chefs mineiros citados no livro. Entre eles o casal Carlos Augusto Cardos e Meire Gontijo, do D’Lurdes e do Meire Gontijo Cozinha Mineira. E também Marco Aurélio Costa, que abriu com Kakay o Piantella, que foi point político e palco de grandes decisões por duas décadas.
Outro mineiro é o chef Gil Guimarães, nascido em Belo Horizonte, mas que se mudou para Brasília com a família com 12 anos. Apaixonado por vinho, aos 27 foi para Paris para estudar enologia e acabou se apaixonando por pães e massas. “Fui trabalhar em uma padaria e essa experiência virou uma chave dentro de mim. Posso dizer que foi o vinho que me levou para a gastronomia”, conta.
Hoje, ele é dono de três casas – Baco Pizzaria, Parrilha Burguer e Casa Baco, que é a junção da pizzaria com comida brasileira com influência italiana. “Minha comida mistura a gastronomia de Goiás com o Norte de Minas e uma pegada italiana. A Casa Baco vem com pegada forte. A proposta é fazer uma comida que eu gosto. Abri a casa e em 10 dias tive que fechar porque veio a pandemia. Fechei mesmo, não mantive nem delivery. Aproveitei esse tempo para cozinhar, e cozinhei muito. Criei muita coisa, fiz muitas misturas. Vi que a comida italiana tem tudo a ver com a gente. Comida de família, comida de raiz. E comecei a criar pratos misturando com ingredientes do cerrado, do nosso terroir.
Morei também em Bocaiuva. Se tenho que fazer comida, ela tem que ser autêntica, tem que ter minhas origens e então eu inverti a jogada. Tem que ser a comida da nossa história, da nossa terra, com a influência que tivemos da Itália. E desde que reabrimos a proposta é essa. Faço muito prato com canjiquinha, que considero nossa polenta. É um prato tão gostoso e tão esquecido fora de Minas. Tento criar receitas com as coisas em que acredito.”
Lombo de sol com canjiquinha e cajuzinho- do-cerrado
(Rende 4 porções)
Ingredientes: Lombo de sol: 1kg de copa lombo de porco, 110g de sal marinho
Modo de fazer: Limpe o excesso de gordura da copa lombo, passe o sal na carne, coloque na geladeira em vasilha fechada por 8 horas. Lave a carne com a sua própria água. Coloque a carne já salgada e lavada por mais 16 horas pendurada na sombra. Retire o excesso de sal. Corte a carne em cubos de 80g e grelhe em frigideira de ferro com manteiga de garrafa.
Ingredientes: Canjiquinha de milho com cajuzinho-do-cerrado: 400g de canjiquinha hidratada no caldo de costelinha de porco, 500ml de caldo de costelinha de porco, 50g de cebola brunoise, 1 dente de alho amassado, 50g de passata de tomares, 40ml de demi-glace de pé porco, 40g de compota de cajuzinho-do-cerrado, folhas de ora-pro-nóbis, sal a gosto
Modo de fazer: Refogue no azeite a cebola e o alho, adicione a passata de tomates, acrescente a canjiquinha já hidratada. Cozinhe por 30 minutos. No final, regue com demi-glace de pé porco. Finalize com quatro cajuzinhos-do-cerrado em compota por porção e folhas de ora-pro-nóbis crocante (fritas em azeite).