Pare para sentir. Coloque um pedaço na boca e observe as reações do seu corpo. Como a sua língua interage com a textura? Quais conexões o seu cérebro faz? Para onde os sabores te levam? As experiências com os chocolates da Kalapa, marca bean to bar (do grão à barra) de Belo Horizonte, transcendem o habitual. “Quero fazer chocolates que mexam com as pessoas, que elas sintam que tem algo a mais”, explica a bióloga Luiza Santiago.
Luiza chama seu produto de chocolate sensorial. O que ela quer dizer com isso? É um chocolate que provoca sensações nunca antes acessadas. “Estamos presos a hábitos alimentares, temos nossas preferências e, no geral, não nos arriscamos. Uso o chocolate, que é um alimento do cotidiano, para trazer doses de novidade ao cérebro.”
O chocolate, então, se torna uma ferramenta para estimular os nossos sentidos e nos levar a experimentar novas sensações. A marca nem escreve na embalagem as notas sensoriais, porque não quer direcionar a experiência, nos deixa livre para sentir.
E, nesse exercício, a expectativa é expandir a nossa percepção, não só sobre o que comemos, mas do mundo. “Se uso mais os sentidos com o chocolate, estou ampliando a forma como exploro e interajo com o mundo.”
O foco é trabalhar menos açúcar e mais cacau. Luiza defende que ele deve ser o protagonista das receitas para que a experiência seja realmente transformadora.
A marca provoca o paladar com um chocolate 100% cacau, ao mesmo tempo em que entrega conforto com um chocolate branco 36% cacau bem cremoso. No meio do caminho, está o 70% cacau, que ficou em segundo lugar nas duas únicas premiações nacionais do segmento bean to bar.
A escolha dos ingredientes também direciona a experiência. A marca só utiliza matéria-prima nacional e, de preferência, nativa. A começar pelo cacau, que vem da Bahia. “Parece uma limitação, mas isso me abre um rol muito grande de possiblidades, instiga a criatividade.” Em vez de avelã, pistache, amêndoa, damasco e cranberry, você vai encontrar cumaru, buriti, cambuci, cupuaçu e baru.
Muitos chocolates nascem na busca por ingredientes. Luiza tem prazer de garimpar preciosidades locais. Quando descobriu a produção de doce de acerola em Bonfim, não pensou duas vezes: usou no lugar da goiabada (que não dava certo em nenhuma receita).
“Você sente o azedinho da acerola, mas é muito parecido com a goiabada. É o gosto do açúcar no tacho.” Por isso, o chocolate com a “goiabada” de acerola, castanha de caju e gergelim, lançado em edição limitada, ganhou o nome de Memórias de tacho.
Características singulares
O ingrediente pode até ser comum, mas a forma como é processado e combinado resulta em chocolates com características muito singulares. O leite de coco (um dos substitutos do leite de vaca) ganha sabor de tostado. Já o fubá, tão presente no nosso dia a dia, se transforma em um biscoito crocante e aparece ao lado do alecrim envolvido por chocolate.
Luiza mostra talento para combinar sabores e texturas. Busca sempre os contrastes, de crocância e cremosidade, doce e salgado, para que, numa só mordida, possamos acessar diferentes sensações.
Veja o Travessia múltipla, que, com cinco ingredientes, aponta vários caminhos para os nossos sentidos. Por cima do disco de chocolate branco de mandioca e coco queimado, tem cumaru, castanha de baru, nibs de cupuaçu, semente de abóbora e flor de sal.
O resultado, surpreendentemente, é harmônico e alegra o paladar. Assim como o Moldura híbrida, que é uma tela de chocolate 70% cacau com cupuaçu, laranja, coco em lascas, castanha-do-pará e semente de abóbora.
Em alguns casos, os nomes, sempre criativos, surgem antes da receita. “Como trabalho com sensações, penso para onde quero levar as pessoas e dali o chocolate vai nascendo.”
Inspirada em um sabonete, que propõe um banho de mar, Luiza criou um chocolate que provoca essa mesma sensação. O Beira mar é uma barra azul (tingida com a flor clitoria) em formato de onda com o salgado da flor de sal, o frescor do limão e o sabor praiano do coco. Para completar, areia de coco queimado.
Como se vê, Luiza gosta de brincar com os formatos e as cores. Esculpe o chocolate em forma de diamante e recheia com creme de cacau e tahine (pasta de gergelim). Faz pequenos triângulos de chocolate com um grão de café especial no meio. O lançamento desta semana, batizado de Fofoca na areia, são quadradinhos de chocolate de mate e limão, que fica esverdeado, com biscoito de polvilho. É para lembrar o verão do Rio de Janeiro.
Mais que sobremesa
Além de mostrar que o chocolate não precisa ser doce, a marca assume a missão de tirá-lo do lugar da sobremesa. “Esse é o limite que nós colocamos para um alimento que tem um potencial enorme. O chocolate nasceu sem açúcar, foi na Europa que tiveram a ideia de adoçá-lo”, pontua. Por que não servir chocolate como entrada ou no prato principal? Basta se abrir para o novo.
"Se uso mais os sentidos com o chocolate, estou ampliando a forma como exploro e interajo com o mundo"
Luiza Santiago, bióloga
O creme de cacau e tahine, chamado de Cremístiko, transita bem entre vários momentos. Pode ser consumido em colheradas ou fazer parte de receitas. Luiza ensina (veja o quadro) a fazer um molho que combina com vegetais e carnes. “O creme é fonte de cremosidade e um excelente criador de contrastes. Por ser menos doce e mais encorpado, fica fácil de usá-lo na hora de cozinhar”, descreve.
Luiza ainda quer desenvolver chocolates salgados. Ela deu o primeiro passo com o chocolate de milho crioulo vermelho, parceria com o Projeto Crioulo, que resgata e valoriza a cultura do milho. Em formato de cacau, tem bastante sal e pouco açúcar.
Outro plano é se aproximar da gastronomia, mostrando que o chocolate é um ingrediente versátil e pode ter o sabor desejado. “As pessoas nem imaginam que é possível personalizar o chocolate como quiser.”
Chocolate de origem
Luiza sempre consumiu muito chocolate, mas todos eram importados, porque ela gostava dos mais intensos. Antes mesmo de pensar em produzir, começou a observar o movimento do chocolate de origem (nas embalagens, lia Madagascar, Vietnã e nunca Brasil). “Sabia, por ser bióloga, que o cacau é da Amazônia e cultivado no Brasil. Por que, então, ninguém estava fazendo chocolate com os grãos daqui?”
Até que a bióloga de Nanuque conheceu um chocolate produzido na Bahia com cacau baiano e se encantou pelo sabor (mais ainda pela possibilidade de existir um produto nacional).
Fez cursos e trouxe dos Estados Unidos o equipamento básico para fazer chocolate, mas ainda não pensava em mudar de profissão. “Quando fiz o primeiro chocolate, fiquei muito maravilhada e me apaixonei pelo cacau. Descobri um outro jeito de fazer chocolate.”
A Kalapa nasceu no fim de 2018 e Luiza sempre direcionou seus estudos para a química do chocolate e seus aspectos sensoriais. Desde o início, ela segue a lógica do bean to bar, termo em inglês que se refere ao processo de produção de chocolate, normalmente artesanal, que começa no campo e vai até a prateleira. Significa transformar o cacau in natura em chocolate pronto para o consumo.
Relação próxima
Segundo Luiza, o conceito também envolve uma filosofia. “Não é só uma nova forma de fazer chocolate, é de comprar cacau. Vamos ao campo no mínimo uma safra por ano e estabelecemos uma relação com os produtores rurais. Não negociamos com atravessadores”, explica.
Dessa forma, a bióloga tem a possibilidade de trabalhar com o cacau fino. São grãos selecionados de produtores que buscam excelência em todo o processo, desde o plantio até a colheita, que considera o ponto ideal de maturação dos frutos, passando pela importante etapa da fermentação, com foco em desenvolver sabores para o chocolate.
Os seus fornecedores estão concentrados no assentamento Dois Riachões, que fica em uma área de mata atlântica no município de Ibirapitanga.
Quando os grãos chegam, Luiza parte para a torra. Tudo é pensado já mirando o produto final, quais características do cacau serão evidenciadas no chocolate. Trabalho que envolve ciência, mas também feeling. “O precursor do sabor do chocolate se dá na fermentação, ainda no campo, depois vem a torra, que é a etapa que mais gosto.” Ela aprende estudando sobre a torra de cafés.
Depois separa-se o nibs (parte que efetivamente vira chocolate) da casca (uasada para fazer o chá de cacau Chácolate). Por fim, vem a etapa do refino. “A máquina, que é um moinho de pedra, refina o nibs, ou seja, reduz o tamanho das partículas. O pó vai sendo refinado até chegar ao ponto que a nossa língua não consegue perceber.”
Nessa mesma máquina, são adicionados os sabores e outros ingredientes.
Serviço
Kalapa(31) 97103-4585
www.kalapachocolate.com.br
Molho versátil com creme de cacau e tahine
Ingredientes
3 colheres de sopa de creme de cacau e tahine; 1 e 1/2 colher de sopa de sumo de limão; 1 colher de sopa de água filtrada (ou até obter a textura desejada); 1 pitada de sal
Modo de fazer
Em uma tigela, misture o creme de cacau e tahine e o limão. Com uma espátula, amasse bem, até passar por uma aparência de “talhado” e adquirir textura homogênea. Adicione a água aos poucos, uniformizando bem, até obter a viscosidade desejada. Adicione o sal e vá provando. Se necessário, acerte o limão. Para uma textura mais lisa, bata no mixer. O molho combina com saladas, carnes e vários preparos vegetais. A sugestão é servi-lo com um assado de abóbora, milho em espiga e brócolis.