É natural falar da cozinha do Norte do Brasil como se fosse uma só. No máximo, dar destaque à paraense, apontada como modelo da região. Mas a verdade é que cada estado tem suas especificidades. Interessado pela cozinha brasileira regional, o psicólogo e psicanalista Flávio Ferraz se dedica a uma série de livros com receitas típicas separadas por territórios. “A culinária de Roraima” é o primeiro lançamento.
“A minha tentativa é de contribuir, de forma bem modesta, contra o apagamento das tradições da culinária regional do Brasil. Que sobrevivam e ganhem visibilidade”, aponta o autor, que é mineiro, mora em São Paulo e já escreveu sobre receitas da cidade do Rio de Janeiro e das regiões da Itália.
Apesar de costumes indígenas e ingredientes amazônicos serem pontos em comum, os hábitos alimentares não coincidem em todos os estados do Norte. A ocupação dos territórios e a formação populacional não se deram da mesma maneira, o que faz com que as influências externas, igualmente determinantes para a identidade da cozinha, variem.
Flávio começou por Roraima por ser um estado longínquo e desconhecido aos olhos do Sul e do Sudeste. Ele mesmo nunca pisou lá. Além disso, é onde a tradição indígena se mantém com mais força. Roraima tem o maior percentual de índios entre os habitantes e a maior extensão de terras indígenas demarcadas. A reserva Parque Yanomami é uma das mais conhecidas.
Não por acaso, o prato que mais representa a cozinha roraimense tem raiz indígena. A damorida está para Roraima assim como a moqueca está para a Bahia e o tutu de feijão está para Minas Gerais. “É um caldo quente e bem apimentado, com temperos locais e tucupi preto, onde se mergulha o peixe para terminar o cozimento”, descreve. A receita tem variações com carnes de caça, formiga saúva e lagarta.
A damorida, na tradição indígena, é servida às visitas como forma de acolhida. Fora das aldeias, tornou-se uma receita para ocasiões especiais. “Dizem que, quando eles servem o prato para alguém que não conhecem, ficam esperando a reação da pessoa”, conta. Isso porque o caldo é bastante apimentado.
As pimentas, aliás, estão presentes em praticamente todas as receitas típicas de Roraima. Flávio chegou a ouvir que lá não se come sem pimenta. No livro, ele cita o trabalho do pesquisador Reinaldo Barbosa, que, em “Pimentas de Roraima”, catalogou 163 variedades utilizadas em todo o estado, em geral muito picantes. As mais comuns são malagueta, murupi, olho-de-boi e canaimé.
Comida original
Usando sua experiência como pesquisador, Flávio consultou trabalhos acadêmicos, livros, jornais, sites, conversou com cozinheiros e outros nativos para caracterizar a comida original de Roraima. No total, selecionou 80 receitas típicas do estado, entre doces e salgadas, para compor o livro, evitando pratos que são comuns a todos os estados do Norte. As ilustrações são da artista plástica Alice Tassara.
A cozinha roraimense, no fim das contas, é uma mistura de tradições indígenas e influências de imigrantes que começaram a chegar com a exploração da pecuária. As receitas com carne de sol, que são muitas, se tornaram populares com a presença nordestina. Lá eles fazem desde escondidinho e torta a paçoca com banana e picadinho com abóbora.
Atraídos pelo plantio de arroz, os gaúchos apresentaram ao povo de Roraima a roupa-velha (charque desfiado com farinha de mandioca). Já a vizinha Guiana acrescentou o curry ao tempero da comida. “Hoje em dia, por causa da ocupação venezuelana, o pepito (sanduíche) e a arepa (tortilha de milho) são comidas de rua muito populares em Boa Vista.”
Flávio testou todas as receitas. A mais surpreendente, na opinião dele, é a caldeirada de peixe no tucupi. Entre as sobremesas, chamaram sua atenção o mingau de banana-pacova (parecida com banana-da-terra) e o pé de moleque de carimã. O bolo, feito com massa puba (extraída da mandioca fermentada), é comum no Norte e no Nordeste, mas em Boa Vista a receita pode levar leite de coco e banana.
Depois de “A culinária de Roraima”, Flávio se prepara para lançar livros com receitas dos outros seis estados da região Norte. Os próximos são Acre, Amapá, Rondônia e Tocantins. “Espero que os leitores tenham disposição de se deixar surpreender. A culinária de lá tem uma lógica diferente da nossa, de tradição portuguesa e tropeira, mas há boas surpresas.”