Belo Horizonte não tem o título de cidade criativa da gastronomia por acaso. Cada vez mais, encontramos restaurantes que apostam em ideias inovadoras e chefs que fazem comida de altíssima qualidade. Por que os pães não podem acompanhar esse movimento? “Quero que a panificação tenha tanto valor quanto a alta gastronomia”, destaca a padeira Renata Rocha, da Albertina Pães Especiais, que há um mês abriu as portas para receber o público.
Renata está cansada de ouvir o belo-horizontino falar que precisa viajar para comer um bom pão. Ela fez curso profissionalizante na escola San Francisco Baking Institute, nos Estados Unidos, referência de formação na área, e deixou de ser padeira em casa para mostrar que há pão de excelência na cidade. “Isso pode existir em BH, e não só em São Paulo, França ou Estados Unidos.”
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Lá não tem expositores enormes, nem mesa para tomar café. Renata optou por reservar a maior parte do espaço para a produção. Montou, inclusive, a tão desejada cozinha de folheados (laboratório para fazer o croissant mais maravilhoso que puder). No dia a dia, ela se divide entre a produção e o atendimento. Recebe os clientes, embala os pães, dá dicas de receitas e sugere harmonizações.
Renata é uma das vozes que defendem o resgate do pão como alimento básico (como era no início da civilização). Isso significa desmistificar a ideia de que todo pão faz mal. O que faz mal não é o glúten, explica a padeira, mas a forma como se prepara a massa. “Pão de fermentação natural tem qualidade diferente, faz bem para a saúde e você pode comer todos os dias.”
A qualidade é reflexo da combinação de insumos e técnicas. Até mesmo o sourdough (“massa azeda”), que leva basicamente farinha, fermento natural, água e sal, tem muita complexidade. “Tudo depende da característica da farinha e da sutileza de saber conduzir a fermentação.”
Para fazer o sourdough, Renata não usa uma única farinha, mistura quatro tipos pensando no que quer de sabor, casca e miolo. “Não é só replicar uma receita, o tempo todo estamos criando. As farinhas são as minhas bases de cozinha”, compara. As brancas são italianas e as integrais, que precisam estar frescas, chegam de Goiás.
Tempo de fermentação
Trabalhar com levain envolve respeito ao tempo de fermentação. A padeira gosta de estender ao máximo essa etapa; espera pelo menos um dia para levar as massas ao forno. Por isso, a loja não abre todos os dias e a produção é limitada. “Estou mais interessada em criar um ponto de produtos muito especiais do que ter escala e virar uma padaria comum”, pondera.
O trabalho com fermento natural também ensina que as fornadas não são iguais. Até hoje Renata se surpreende quando abre o forno. Para ela, o processo é mágico. Tem dia em que o pão fica como imaginou, em outros nem tanto, mas a graça está em sempre tentar chegar ao melhor. E nunca se contentar com o resultado.
Lá você não vai encontrar pão “branquinho”. Todos saem do forno com casca caramelizada. Não é queimada, Renata logo avisa. Essa tonalidade tem a ver com a caramelização do açúcar residual da massa gerado durante o processo de fermentação. Na cozinha se conhece como reação de Maillard. Tirar o pão do forno antes do tempo seria como servir uma carne grelhada pálida, o que não é nada apetitoso. “A casca tem várias camadas de sabor.”
Alguns pães são fixos no cardápio, como sourdough, baguete ao levain e brioche. Croissant e pain au chocolat também são presença garantida. Outro que, apesar de ser novidade, não pode mais faltar, é o bolo de cacau finalizado com cobertura rígida de chocolate, caramelo de pistache e lavanda.
O cookie, que tem fãs espalhados pela cidade, virou um clássico. “Tem gente que vem aqui só por causa dele.” Talvez seja para sentir o sabor de caramelo, que vem da manteiga noisette, combinado com gotas de chocolate e amêndoas. Não tem farinha. No caso do cookie, o levain entra para intensificar os sabores e aumentar seu tempo de duração.
Toda semana a padaria tem surpresas. Pode ser a focaccia de uva e erva-doce ou o pão de jalapeño e queijo canastra. A massa de brioche ganha pedaços de pistache ou se transforma em rolinhos de canela. Às vezes, aparece a ciabatta de nozes, que, por dentro, tem uma coloração naturalmente roxa. Agora que tem a cozinha de folheados, com a mesma massa, dá para fazer várias receitas, como o dinamarquês danish e o norte-americano cruffin (mistura de croissant e muffin).
É como criar pratos
A padeira ama adicionar sabores aos pães. Trabalha como se fosse uma chef criando pratos, sempre respeitando as proporções. Afinal, pão também é matemática.
Tudo pode inspirar uma receita. Por exemplo, a ideia do pão com queijo canastra, missô e gergelim, com claro tempero oriental, vem de um hábito antigo. “Gosto de fazer queijo quente com missô e gergelim.” Só de ir para a frigideira esse pão vira uma tostada.
Em outro momento, Renata fez o experimento de usar chá preto (no lugar da água) para hidratar a farinha, e deu certo. O pão de chá preto com erva-doce e passas é um sucesso. “São alquimias que eu adoro, mas gosto de trabalhar dentro das sutilezas, nada que roube a cena, porque quero extrair os sabores do trigo.” No fim, ela quer que continue sendo pão para comer com manteiga.
Obsessiva por aprimorar técnicas, Renata realizou o sonho de se formar na escola San Francisco Baking Institute, nos Estados Unidos, seu primeiro curso profissionalizante. O dono da escola, Michel Suas, foi muito importante para o resgate da panificação artesanal no mundo (ele escreveu um livro que virou a bíblia de quem trabalha nessa área).
Em São Francisco, ela solidificou sua base de conhecimento, entendeu a fundo os processos, mas, por incrível que pareça, diz que só aprendeu a fazer pão fazendo todos os dias, como rotina. “O nosso corpo tem que aprender o movimento, que é de repetição, sentir a massa, se está no ponto certo de fermentação, senão não tem excelência.”
Trabalhar na cozinha é mais um sonho realizado. “Já estive em trabalhos glamorosos na arquitetura e nunca me senti tão honrada quanto agora, quando me chamam de chef da minha cozinha. Respeito muito esse trabalho e me sinto privilegiada de ter tido essa chance.” Renata sabe que a carreira de chef boulanger exige muito estudo e dedicação, e está disposta a encarar isso. Amar demais o que faz, como é o caso dela, já faz muita diferença.
Planos acelerados
Há sete anos, Renata decidiu fazer pães em casa. A arquiteta sempre gostou de cozinhar, mas, até assistir a um documentário, nunca soube que isso era possível. “Sempre gostei de coisas difíceis na cozinha, então fui fisgada por todo esse universo e comecei a investigar. Não sosseguei até conseguir fazer um pão decente e nunca mais parei”, relembra.
A pandemia acelerou planos que pareciam distantes. Primeiramente, ela teve mais tempo para se dedicar aos pães. “Fiquei em casa, os projetos de arquitetura tinham diminuído, e eu sedenta para usar o conhecimento que tinha adquirido em São Francisco”, conta. Com isso, decidiu fazer as fornadas em casa e vender pela internet.
Depois, o isolamento a levou a trocar definitivamente de carreira. Em três meses, a produção disparou e os pães passaram a ser a sua principal renda. “Encontrei um negócio muito interessante de delivery de pães especiais. Era um carinho que todo mundo queria receber.” No início de 2021, Renata deixou seu escritório de arquitetura e se assumiu padeira.
O próximo passo foi abrir a loja. “Não tive escolha: era isso ou continuar fazendo pão na área de serviço de casa.” Renata diz que estava ficando tolhida de criatividade, porque não tinha espaço para explorar outras possibilidades, testar modelagens diferentes. Com um desejo empreendedor latente, somado ao conhecimento de arquitetura, reformou o imóvel e construiu uma cozinha industrial.
A padaria abre de quarta a sábado e, todos os dias, os pães se esgotam rapidamente. Acabou, só no dia seguinte, por causa do tempo de fermentação. Renata está se estruturando para aumentar a produção e conseguir atender à demanda, sem perder a qualidade e a identidade. “Sinto que, a cada pão que sai daqui, estou indo junto, e não quero mudar isso”, pontua.
Pão de alho com sourdough clássico
Ingredientes
1 pão sourdough clássico; alho, manteiga, azeite, ervas e queijo parmesão ralado a gosto
Modo de fazer
Essa é uma receita clássica que foi belamente revisitada por Liz Pruitt no livro “Tartine all day” e virou um hit nas mesas dos apreciadores de pães de fermentação natural. Em posse de um bom filão de sourdough clássico (melhor ainda se for um pão dormido), prepare uma pasta de alho, manteiga, azeite e ervas. Corte o pão em losangos sem chegar até a base. Preencha as camadas internas com bastante manteiga de alho e complete com queijo parmesão ralado. Leve o pão inteiro ao forno a 200 graus por 10 minutos, ou até gratinar o queijo. Se a manteiga de alho estiver na medida certa, o miolo não vai ressecar. Sirva o pão inteiro em uma tábua de madeira e vá tirando nacos untuosos de pão e queijo.
Serviço
Rua Rio de Janeiro, 2.629 – Loja 102, Lourdes
(31) 99793-8990