Centro de São Paulo. Prédio da década de 1920 construído para ser a sede da companhia de energia elétrica. Um restaurante de comida brasileira. O chef é paraibano. Instalado há quatro meses no terraço do Edifício Alexandre Mackenzie, com vista para o Theatro Municipal, o Notiê é um lugar que inspira memórias, histórias e conexões pelo Brasil.
A cada temporada, o novo restaurante, que trabalha apenas com menu degustação, vai explorar as riquezas de uma região do país. “A ideia é levar diferentes Brasis para São Paulo, cidade cosmopolita que une a gastronomia do mundo inteiro. Escolhemos o Centro, onde tudo começou, porque isso se conecta com a história dos imigrantes”, aponta o chef e sócio Onildo Rocha, que nasceu em João Pessoa.
Para começar, eles decidiram fazer uma viagem pelo sertão brasileiro. Trata-se de um sertão diferente do que está no nosso imaginário. Nem o chef conhecia. “Escolhemos ir para as margens do Rio São Francisco para sair daquela imagem estereotipada da seca, pobreza, fome. Mostramos um sertão abundante.” Onildo conta que se emocionou quando entrou pela primeira vez nas águas do Velho Chico.
O chef, a sommelière de vinhos, o especialista em cervejas, o mixologista e o barista embarcaram em uma expedição que durou 11 dias. No total, eles percorreram cerca de dois mil quilômetros, desde Minas Gerais até Sergipe, para descobrir novos ingredientes e conhecer a história das pessoas por trás desses ingredientes.
“Uma das coisas mais interessantes do restaurante é a possibilidade de fazer uma pesquisa de campo. Somos um dos poucos que fazemos esse tipo de trabalho no Brasil”, comenta.
A primeira expedição pelo Brasil rendeu um menu inspirado em lugares, pessoas e produtos do sertão e uma websérie com 10 capítulos, disponível no Youtube.
Durante a viagem, Onildo conheceu novos ingredientes e descobriu formas diferentes de usar produtos que já faziam parte da sua cozinha. O chef nunca tinha ouvido falar, por exemplo, da saburica, minicamarão encontrado na comunidade de Alagamar, em Sergipe. “Lá, as mulheres me serviram o que costumam comer. Fizeram um ensopado de saburica com mamão verde.”
A receita foi o ponto de partida para a criação de um dos pratos do Notiê. Onildo explora com maestria a combinação de ingredientes apresentada pelas mulheres sergipanas.
O mamão verde surge em três versões: pasta, picles e fermentado. As três texturas são unidas pelo leite de tigre temperado com bastante coentro e chicória, por isso fica verde. Por cima, saburica crocante em forma de tempurá japonês.
Ainda em Sergipe, o chef conheceu o pólen desidratado. “Você põe na boca e sente um gosto intenso de cana-de-açúcar. É muito interessante”, comenta. Os pequenos grãos levam um sabor adocicado para o snack com queijo de cabra e mel de jataí.
O óleo de babaçu é um dos ingredientes que Onildo já conhecia, mas descobriu que poderia aproveitá-lo de um jeito diferente. Influenciado pelo bacalhau português ao piu piu, ele usa o óleo de babaçu para fazer uma emulsão que finaliza o prato, que tem como estrela o pintado. O peixe vai acompanhado de banana passa, coco verde e ovas de truta.
Do popular ao erudito
A brasilidade do menu do Notiê está fundamentada na cozinha armorial, conceito que o chef abraçou há alguns anos. Vem do movimento armorial, antigo manifesto do escritor paraibano Ariano Suassuna, que eleva o popular ao erudito – no caso de Onildo, os ingredientes.
“Desse conceito não largo, até porque demorei muito para encontrar uma cozinha que me representasse. Não me encaixava quando falavam em nova cozinha nordestina ou cozinha fusion entre França e Nordeste.”
Cabrito e cuscuz, dois produtos típicos do sertão nordestino, se encontram em outro prato. Lá na região, o mais comum é preparar um guisado com a carne. O chef não ignorou a tradição, mas deu o seu toque.
“Separei os ingredientes do guisado, sem perder o sabor característico. Montei o prato com legumes braseados, costela de cabrito caramelizada com rapadura e passata de tomate”, detalha. O cuscuz, feito para compartilhar, vai ao centro da mesa em uma cuscuzeira de barro.
Por muito tempo, Onildo achou que a sua cozinha não caberia em São Paulo. Mas hoje o chef reconhece: ainda bem que mudou de opinião. “Por que não apresentar a minha cultura a outras culturas? “É desafiador estar aqui. São Paulo tem muita diversidade, mas estou muito feliz com o projeto e tem sido gratificante receber todo o reconhecimento”, aponta.
Os brasileiros, em geral, têm alguma relação afetiva com o Nordeste, e isso faz com que a comida do Notiê resgate memórias e leve emoções para a mesa.
“Às vezes, os garçons entram na cozinha com os olhos cheios d’água, comovidos com as histórias que ouvem”, conta o chef, que se mudou para a capital paulista. O Cozinha Roccia, seu restaurante premiado em João Pessoa, agora funciona só por delivery, mas ele não vai se distanciar da Paraíba. O plano para este ano é abrir outra casa em Campina Grande.
Menu inédito
O Notiê explora as riquezas do Brasil em três formatos de menu degustação. Até então, as opções eram de 14 e 10 tempos. A novidade é o de cinco tempos, pensado para facilitar o acesso à experiência. “Sabemos que menu degustação ainda está um pouco longe do brasileiro e queremos que mais pessoas conheçam o país, gastronomicamente falando, pelos nossos olhos”, justifica o chef Onildo Rocha.
Os pratos do novo menu são inéditos, mas, assim como os outros, apresentam uma seleção de ingredientes muito presentes no sertão. Para começar, o couvert com pão de castanha-de-caju, tortilhas de macaxeira (ou mandioca), caponata de maxixe e nata fermentada no lugar da manteiga.
Em seguida, vem a combinação de peixe, coco e chuchu em uma entrada fria. O legume é curado com sal (como se faz com a carne de sol), laminado e enrolado com tartar de peixe e coco fresco. A ideia vem de um prato que o chef comeu na expedição. “Vi usarem o coco de uma forma a que não estamos acostumados: a polpa vai em um ensopado com peixe e chuchu.” Para completar, leite de amendoim.
Enquanto o peixe da entrada é do Rio São Francisco, o peixe do prato que vem a seguir sai de águas salgadas. Onildo faz referência ao ponto em que o rio desemboca no mar. Preparado na brasa, o peixe é servido com jerimum (ou abóbora) em duas versões: purê com especiarias e picles. No fim, adiciona-se uma espuma de cúrcuma com abacaxi.
O estado de Minas Gerais pode ser saboreado nas duas etapas seguintes. O queijo canastra se junta ao tortelini de inhame com tomates orgânicos, enquanto as folhas de ora-pro-nóbis vão ao lado da coxa e sobrecoxa confit de pato.
“Preparo o pato como se faz no Nordeste, não é uma receita francesa. Uso temperos como pimenta-do-reino, cominho, alho, ervas e um pouco de rapadura”, descreve. O milho, terceiro elemento do prato, aparece em forma de xerém cremoso e espuma.
Por último, a sobremesa com amburana, licuri e cacau. O cacau se transforma em uma mousse de chocolate saborizada com amburana. Já o licuri, fruto de uma palmeira da caatinga, é usado para fazer um crumble. Ainda tem um crocante do mel de cacau.
O Notiê faz parte do Priceless, complexo gastronômico que conta com mais um restaurante, o Abaru, que também funciona como bar e café, além de um espaço para eventos.
O menu à la carte do Abaru, assinado por Onildo, tem pratos como nhoque de vatapá com molho de moqueca e rubacão, variação do baião de dois com arroz vermelho, fava verde, queijo coalho, nata, coentro e carne de sol. Entre as bebidas, drinques com caju e rapadura e uma cerveja de arroz do sertão sergipano com manga.
Bolo de mel de engenho com caramelo de rapadura
Ingredientes
1 ½ xícara de chá de farinha de trigo; 80g de manteiga sem sal; 180g de coco ralado fino fresco; 1 ½ xícara de mel de engenho; ½ colher de chá de bicarbonato de sódio; 3 ovos; 3 colheres de sopa de água; 1 xícara de chá de rapadura escura cortada em pedaços pequenos; 1 xícara de chá de água; 1 xícara de chá de creme de leite fresco; 500g de creme de leite fresco; 40g de açúcar; 1 fava de baunilha
Modo de fazer
Coloque o mel e a manteiga na batedeira e bata em velocidade média. Quando a mistura estiver aerada, acrescente os ovos, um a um, em velocidade baixa. Peneire a farinha e junte à mistura sem bater muito. Dilua o bicarbonato em água quente e adicione à mistura com coco ralado. Coloque a massa em uma assadeira untada com manteiga e farinha e leve ao forno preaquecido a 180 graus por 30 a 40 minutos. Espete um palito na massa. Se sair limpo, o bolo está pronto. Deixe a massa descansar por 15 minutos para desenformar e sirva quando estiver fria. Para o caramelo, misture em uma panela a rapadura e a água com cuidado para não sujar as bordas. Deixe ferver até que reduza pela metade. Acrescente aos poucos o creme de leite e mexa com cuidado até ficar homogêneo. Deixe ferver até que fique levemente espesso. Desligue o fogo e deixe esfriar em uma tigela. Para o chantili, bata o creme de leite fresco com o açúcar e a baunilha na batedeira com globo, na velocidade máxima, por 4 minutos. Sirva um pedaço do bolo com o chantili e o caramelo.
Sertão e cerrado
O paraibano Onildo Rocha vem a Belo Horizonte no mês que vem para um jantar a quatro mãos com o mineiro Caio Soter. O encontro será em
6 de abril (quarta-feira), no Restaurante Pacato. Os chefs servirão um menu que une o sertão e o cerrado.
Serviço
Notiê - Espaço Priceless
Rua Formosa, 157, Centro, São Paulo
(11) 2853-0373
Para reservas: https://booking-priceless.com.br