Identidade e internacionalização. Temas que vão nortear a primeira edição do ano do Festival Fartura Gastronomia, que será realizada de sexta-feira a domingo no Inhotim, em Brumadinho. Em parceria com o Itamaraty, chefs embaixadores das cinco regiões do Brasil se reúnem para discutir como levar a cozinha brasileira para o mundo. Cada um deles vai preparar um prato típico ao vivo para o público com um cozinheiro selecionado como pupilo.
Nesta edição, o Fartura incentiva a busca pelo conhecimento e a troca de ideias entre os chefs para que resultem em ações propositivas. “Passamos pela pandemia e agora na retomada queremos falar de futuro e já sair com resultados concretos”, resume o diretor-geral Rodrigo Ferraz, que cita o Manifesto Maniba.
O documento, que será assinado pelos chefs ao fim do evento, vai materializar as propostas discutidas e fazer com que a sociedade e o governo enxerguem o potencial da cozinha brasileira.
A escolha do Inhotim não foi por acaso. Além da beleza, Rodrigo explica que tem a ver com o tema da internacionalização da gastronomia. “Se tem um lugar no Brasil, além do Cristo Redentor, que tem um caráter internacional, é o Inhotim. Ele está sempre levantando assuntos novos, é vanguarda, então não poderíamos ter palco melhor.” A expectativa é receber mil pessoas a cada dia.
Nesses três dias, os chefs embaixadores vão se reunir no Espaço Igrejinha, onde ocorre o Encontro Cultivar, para discutir como a cozinha brasileira pode se expandir pelo mundo sem perder suas origens. Os debates serão mediados pelo chef francês Claude Troisgros.
“Considero o Claude um exemplo de internacionalização da gastronomia. Ele vem de uma das famílias mais tradicionais da França e é hoje o mais brasileiro de todos os franceses que conheço”, justifica Rodrigo.
“Sinto que sou uma soldada nessa missão de comunicar a nossa identidade brasileira através da comida”, diz a chef Morena Leite, que participa do evento em várias frentes. Ela é uma das curadoras gastronômicas do Fartura, embaixadora da Região Nordeste e fundadora do Instituto Capim Santo, que dá suporte ao Itamaraty.
Fora isso, já publicou oito livros, deu aulas em vários países pela Le Cordon Bleu falando da tapioca e hoje seu restaurante Capim Santo está dentro do Museu da Casa Brasileira.
Mandioca é ícone
Como embaixadora do Nordeste, Morena entende que a fusão indígena, africana e portuguesa é o que caracteriza a cozinha da região e o que deve ser mostrado para o mundo. Entre os ingredientes, ela considera um ícone a mandioca e suas inúmeras versões, como farinha, sagu e tucupi.
Além do Encontro Cultivar, os cinco chefs embaixadores participam do Cozinha ao Vivo com seus pupilos. São cozinheiros que eles querem apresentar ao mundo.
Morena virá ao Inhotim com o baiano de Itacaré Romário Repteco, que é professor do Instituto Capim Santo, em São Paulo, e trabalha com ela na Casa Alma, cozinha de experiências em Trancoso que recebe chefs para cozinhar na lua cheia. Juntos, eles vão preparar carne de fumeiro com banana-da-terra, feijão verde e farinha de beiju.
Paulo Machado já está acostumado a apresentar a cozinha brasileira ao mundo. O embaixador da Região Centro-Oeste, divulgador da cultura do Pantanal, criou há 10 anos o projeto de viagens gastronômicas Brasil Food Safaris, que percorre todos os biomas do país.
“Apresentar pratos como chipa, sopa paraguaia e puxeiro para o estrangeiro é muito maravilhoso, porque trabalhamos com ingredientes que eles nunca provaram”, comenta o chef, referindo-se a receitas pantaneiras. Ele está morando em Barcelona e tem conseguido trazer mais turistas para conhecer sabores do Brasil.
O chef se prepara para cozinhar no Inhotim arroz de carreteiro ao lado de Lucas Caslu, que trabalha com ele no Instituto Paulo Machado. Esse prato é o café da manhã do pantaneiro, chamado de quebra-torto, porque, ao acordar, até o estômago precisa se endireitar.
Colorau artesanal
Quem acompanhar o preparo do arroz de carreteiro vai conhecer dois ingredientes do Pantanal: a carne de sol orgânica e o colorau artesanal. “Ele é à base de urucum, misturado com farinha de mandioca ou de milho, e feito no fogão a lenha. Fica muito fresco, tem sabor, aroma e colore o prato”, descreve Paulo.
A dupla vai ensinar a fazer o lampinado na carne de sol, que é um corte típico da região, e mostrar como deixar o arroz, finalizado com ovo perfeito, mais corado.
Janaína Rueda, escolhida embaixadora do Sudeste, defende que, para levar a cozinha brasileira para o mundo, todos precisam aprender com Minas Gerais.
“Minas hoje é o nosso maior exemplo de comunidade local com tradição, preservação e restauração. Que serve uma comida transparente, sem vergonha do que é, sem arranjos que a descaracterizam”, analisa a chef dos restaurantes A Casa do Porco, Bar da Dona Onça, Hot Pork e Sorveteria do Centro, todos no Centro de São Paulo.
Mais que mostrar ingredientes, Janaína quer falar sobre técnicas genuinamente brasileiras, como refogar, assar e pinga e frita. “As mulheres da cozinha popular nos ensinaram isso. Até a minha avó, que não sabia cozinhar, sempre colocava água na panela para sua comida ficar mais saborosa.”
A chef avisa que não abre mão de servir feijoada fora do Brasil. Mesmo sendo taxada de clichê, ela acredita que a receita representa amplamente a cozinha brasileira e serve como abre-alas para todas as outras.
Aqui em Minas Janaína decidiu servir outro prato que ama, uma de suas especialidades, que é o cuscuz. A receita que criou para o festival combina carne de porco e ora-pro-nóbis. Sua pupila, Júlia Aguiar, tem 20 anos e trabalha na cozinha do A Casa do Porco.
Brasil em sabores
O encontro dos cinco chefs embaixadores no Fartura em Inhotim marcará o lançamento da ação Brasil em sabores, promovida pelo Itamaraty para divulgar a cozinha brasileira pelo mundo.
Segundo o chefe da divisão de ações de promoção da cultura brasileira, Adam Jayme Muniz, o ministério identificou uma vontade crescente, nos diversos postos do Brasil pelo mundo, de oferecer o melhor da cozinha brasileira durante eventos oficiais.
“Em determinados lugares, onde não existe uma comunidade brasileira grande nem a oferta de produtos típicos, eles acabam servindo uma comida internacional padrão, sem referências brasileiras”, aponta.
A ideia é promover um intercâmbio gastronômico nas residências oficiais das embaixadas do Brasil. Os pupilos selecionados pelos embaixadores vão passar de 15 dias a um mês trocando conhecimento com os chefs que trabalham nestes postos. No fim, os chefs embaixadores farão uma visita ao país para atividades promocionais, que podem ser festivais, aulas e entrevistas.
“A chave do projeto é a intercultura. Os residentes vão aprender mais sobre a cozinha brasileira e transmitir seu conhecimento para os visitantes sobre a cozinha local”, destaca Adam. A primeira etapa já está marcada para julho, em Nova York (Estados Unidos). Depois serão Lima (Peru), Luanda (Angola) e Tóquio (Japão). Ainda fata definir qual país da Europa receberá o chef visitante nesta rodada inicial.
Embaixador do Norte, Saulo Jennings diz que o mais precioso da sua região são as pessoas que valorizam e preservam técnicas e produtos. São elas que continuam a “ticar” o peixe para remover as espinhas, extraem da mandioca a bebida fermentada tarubá e colhem a semente de cumaru. “Se não fossem as comunidades originais, tudo já tinha acabado. O meu trabalho só vem reforçar o valor disso.”
O chef de Santarém sempre levantou essa bandeira. No seu restaurante, Casa do Saulo, que fica no meio da floresta, às margens do rio Tapajós, ele serve pratos que exaltam os ingredientes e os produtores do entorno.
“Não podemos nos esquecer da nossa origem. Com técnica, apresentação e a história que o prato traz, mostramos que a nossa cozinha pode estar na mesa de um restaurante estrelado”, aponta Saulo, que define sua comida como brasileira, amazônica, paraense e tapajônica.
Ingredientes amazônicos
Há 10 dias, essa comida passou a ser servida dentro do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. O chef abriu lá uma unidade do Casa do Saulo e deu mais um passo para a internacionalização dos sabores do Norte. Segundo o chef, 80% dos ingredientes chegam diretamente da Amazônia.
Durante o Fartura, Saulo e o seu pupilo Ricardo Branches, que também é de Santarém, vão preparar arroz de pato com tucupi e jambu, um clássico da cozinha da região. O chef já adianta um segredinho da receita: vai trazer na mala o tucupi preto, que é uma redução do líquido extraído da mandioca brava feita por indígenas, para temperar o prato.
Manu Buffara tem a missão de mostrar que o Sul vai muito além do churrasco. “Venho de uma região onde a comida é muito diferente. A fila da peixaria é maior que a do açougue”, conta a embaixadora, que nasceu em Maringá. O que mais se destaca no seu restaurante Manu, em Curitiba, é o frescor dos frutos do mar e dos vegetais.
Um dos ingredientes preferidos da chef, e que ela leva para o mundo, é o palmito pupunha. Nas mãos dela, ele se mostra inteiramente versátil. “Já fiz de tudo, menos pupunha assada, que é a maneira que as pessoas estão acostumadas a comer”, comenta Manu, lembrando que gosta de não ser óbvia.
A embaixadora da Região Sul vem ao Inhotim cozinhar com o também paranaense Lucas Correia, chef que vai tocar o seu restaurante em Nova York, Ella, previsto para ser inaugurado em dezembro. A dupla vai preparar farelo de milho cozido com siri (carne e ova), banana-da-terra frita e pupunha. Manu vai surpreender mais uma vez ao cozinhar o farelo com o caldo do vegetal.
Arroz Carreteiro (Paulo Machado)
Ingredientes
1 kg de carne de sol ou carne seca lampinada; 2 cebolas picadas; 4 dentes de alho amassados no pilão; 500ml de óleo de milho ou azeite de oliva; 300g de bacon bem picadinho; 400g de arroz agulhinha; 1 pimenta dedo-de-moça picada e sem sementes; 6 bananas-da-terra picadas em rodelas; 1,5l de água quente; 1/2 maço de cheiro verde picado; sal a gosto
Modo de fazer
Deixe a carne de sol de molho na água, na geladeira, por pelo menos duas horas. Se for usar carne seca, apenas lave para tirar o excesso de sal. Frite as rodelas de banana-da-terra numa frigideira, por imersão e em fogo alto, com 400ml de óleo de milho. Depois que estiverem douradas, reserve entre folhas de papel absorvente para que fiquem crocantes. Numa panela grande, frite a carne lampinada e o bacon nos 100ml de azeite ou óleo restantes. Quando começar a dourar, junte a cebola, a pimenta e refogue por mais alguns minutos. Adicione o alho amassado. Junte a pimenta e refogue mais um pouco. Quando tudo estiver corado e um fundinho aparecer na panela, junte o arroz e frite-o até que comece a ficar transparente. Junte a água, mexa para acomodar os ingredientes e cozinhe em fogo brando até que o arroz fique macio e a água seque. Tampe a panela e deixe descansar por pelo menos cinco minutos. Ajuste o sal e sirva com a banana e o cheiro verde por cima.
Serviço
Fartura em Inhotim
De sexta a domingo, das 10h às 17h
Toda a programação é gratuita e aberta ao público, mediante compra de ingresso para acessar o Inhotim (sujeito à lotação)
Mais informações no site www.farturabrasil.com.br