Jornal Estado de Minas

SABOR DE HISTÓRIA

Projeto resgata, cultiva e transforma em produtos milhos ancestrais


Você sabe a origem do milho que está no seu prato? Pode não ser uma pergunta fácil de responder, mas é essencial para apontar o caminho de uma escolha consciente.
 
Anna Guasti e Lucas Sousa, fundadores do Projeto Crioulo, trabalham para que a resposta esteja cada vez mais na ponta da língua. Através do cultivo de sementes crioulas (preservadas por milênios), eles levam para a mesa história, resgate da cultura alimentar, biodiversidade e muito sabor.




 
 
Anna, jornalista, trabalha com sustentabilidade e inovação, voltadas principalmente para o mercado de cafés, na agência Casa Guasti. Lucas, engenheiro-agrônomo, produz orgânicos na Fazenda Vista Alegre, em Capim Branco, na Grande BH. Eles se conheceram há 12 anos, quando Anna buscava ovos orgânicos para comprar e descobriu que só Lucas produzia.
 
Anna e Lucas ficaram amigos, trocavam informações e sementes e dessa aproximação nasceu o Projeto Crioulo. O milho vermelho doado por um vizinho se adaptou à fazenda e fez brotar a ideia de montar um negócio. “Esse agricultor vinha guardando o milho de família por conta da beleza, da história e do valor afetivo”, conta Anna.
 
Os milhos crioulos são descendentes diretos dos milhos originais, que surgiram há mais de 10 mil anos na região Mesoamérica, entre o México e a Guatemala. Essas raças são consideradas especiais tanto pela história que carregam quanto por não terem agrotóxicos nem serem geneticamente modificadas.




 
Assim como em Capim Branco, outras famílias de agricultores, conhecidos como guardiões de sementes, preservam de geração em geração essas raças, como se fossem joias.
 
Socarrat de canjiquinha com cogumelos grelhados (Turi) (foto: Nereu Jr/Divulgação)
 
Por cinco anos, Lucas estudou como produzir especificamente o milho crioulo vermelho. Na primeira safra, só conseguiu 50kg (entre eles, nasciam alguns amarelos). Hoje, quase como por um “milagre”, a produção chegou a 30 toneladas. Ano após ano, eles fazem a seleção das sementes para que tenham mais milho vermelho com sabugo e palha vermelhos.
 
“Não queremos virar megaprodutores. A nossa função é fortalecer as raças crioulas de milho e ser um hub de pequenos agricultores para difundir informação”, aponta.
 
Para isso, o projeto planeja incluir produtores que estão no entorno da Fazenda Vista Alegre e já iniciou as conversas com o Instituto Brasil a Gosto, onde Anna atua como conselheira, para estruturar uma escola ligada à agricultura do milho.

Moinho de pedra

Na fazenda, os grãos se transformam em fubá, fubá mimoso, sêmola e canjiquinha. Um moinho de pedra centenário reproduz o modo antigo de produção. “Ele mói o milho lentamente, sem queimar, de uma única passada e sem tirar nenhuma parte do gérmen, o que resulta em um produto integral”, descreve. Recentemente, Lucas desenvolveu duas peneiras que conseguem os quatro tipos de moagem.




 
Anna cita um pensamento de Rudolf Steiner, fundador da antroposofia, para explicar o impacto sensorial do milho crioulo: “O corpo está pronto para reconhecer imediatamente um produto de verdade”.
 
Só de abrir o pacote você sente cheiro de milho verde. Na boca, vem a mesma sensação, o milho está ali de verdade e por inteiro. “O milho crioulo entrega toda essa veracidade no paladar. Falo que ele desperta os prazeres que toda comida genuína despertaria.”
 
Broa de fubá (Casa Bonomi) (foto: Lucas Pederneiras/Divulgação)
 
Segundo Anna, o contato com o milho crioulo costuma ser um divisor de águas na vida das pessoas. Isso se comprova pela história que o chef Cristóvão Laruça conta. Ele sempre teve dificuldade de encontrar milhos que não fossem comprovadamente transgênicos. Por isso, preferia não usar na sua cozinha.
 
“Por conta do meu passado ligado à sustentabilidade, sempre procurei saber a origem dos alimentos e trabalhar com aqueles que respeitam o meio ambiente, as pessoas e a cultura alimentar.”
 
Até que ele conheceu o Projeto Crioulo e viu abrir-se um monte de possibilidades. Para um chef português, o milho é um ingrediente indispensável. No Caravela, Cristóvão usa o fubá para fazer a broa de milho, que é triturada e vira a crosta que cobre o bacalhau em um dos pratos mais típicos de Portugal.




 
As tortilhas do Capitão Leitão partem do mesmo produto. O Taco à Mineira, por exemplo, tem recheio de leitão confitado, vinagrete de goiaba, jiló caramelado e pimenta biquinho defumada.

Inspiração espanhola

A canjiquinha de milho crioulo entra em um prato com inspiração espanhola servido no Turi. “Em vez de arroz bomba, usamos canjiquinha. Deixamos dar aquela raspa para servi-la caramelizada. É o que os espanhóis chamam de socarrat”, descreve. Para acompanhar, cogumelos grelhados na brasa.
 
Na percepção de Cristóvão, o fubá e a canjiquinha de milho crioulo têm um sabor mais intenso (é como se você estivesse comendo o milho) e são muito mais cremosos, então resultam em uma textura mais agradável.
 
Tortilha com leitão confitado, vinagrete de goiaba, jiló melado e pimenta biquinho defumada (Capitão Leitão) (foto: Nereu Jr/Divulgação)
 
“Em termos de nutrição, estamos falando de um alimento integral, com o mínimo de processamento, então tem muito mais nutrientes e vitaminas”, acrescenta. Outra vantagem é poder trabalhar com fornecedores que estão do seu lado.




 
Há planos de desenvolver outras receitas. “O chef de cozinha não se pode limitar a fazer comida. Tem também o dever e a responsabilidade de mostrar que existem outras possibilidades para que o mercado mude”, comenta Cristóvão, que faz questão de ir às mesas apresentar o ingrediente.
 
Ele lamenta que, apesar de ser um dos ícones da cozinha brasileira, o milho esteja tão distante das pessoas.
 
O Projeto Crioulo não para por aqui. Em breve, lança uma edição limitada inédita de espigas de milho de pipoca para micro-ondas. Muito populares nos Estados Unidos e México, essas pequenas espigas estouram dentro de um saco de papel e você morde a pipoca como se estivesse comendo milho verde.
 
Lucas aprendeu os segredos com os mexicanos da Fundación Tortilla, parceiros de longa data.
 
Outra novidade é a produção de feijões crioulos, que, ainda este ano, devem chegar ao mercado.




“Diferença enorme”

Todo o fubá usado na padaria Casa Bonomi é de milho amarelo crioulo. Paula Bonome teve que fazer adaptações nas receitas para conseguir usá-lo, por ser mais granulado, mas não tem dúvida de que vale a pena o esforço.
 
“Vim com a história de recuperar o jeito antigo de fazer pão, então não tem nada mais coerente do que apoiar esse projeto. Não se trata apenas de produto, mas de não perder os ofícios.”
 
Chocolate branco de milho vermelho tostado (Kalapa) (foto: Cacau Mídia/Divulgação)
 
Paula fala sobre o resgate de tradições, mas também defende sua escolha por ser um ingrediente orgânico e pelo salto de sabor e textura que ele proporciona. “Para mim, fez uma diferença enorme”, atesta.




 
Essa diferença pode ser degustada nas broinhas de fubá com erva-doce, que ficam mais úmidas justamente porque os grãos maiores absorvem mais água. Aproveite para experimentar a broa de milho e o pão de fubá, igualmente impactados pela mudança.
 
Milho e chocolate combinam? A Kalapa prova que sim. Luíza Santiago desenvolveu um chocolate branco de milho vermelho tostado. No processo, ela torra o fubá e mistura ao cacau.
 
O aroma é de broa saindo do forno. Já no paladar, há quem sinta sabor de pamonha e de mingau. “Estamos tão acostumados com coisas artificiais que as pessoas se surpreendem porque o chocolate realmente tem gosto de milho.”
 
Segundo Luíza, o projeto se conecta com os valores da Kalapa. A marca só utiliza ingredientes nacionais, preferencialmente nativos, com o propósito de valorizar a nossa biodiversidade. Além disso, unindo cacau e milho, como os povos da antiga região Mesoamérica, proporciona sensações inesperadas.




 
“O milho é um alimento daqui incrível, saboroso, nutritivo e tem um potencial de uso enorme na gastronomia. É só tirá-lo do cotidiano”, aponta.

Pão de tabuleiro com fubá vermelho (Casa Bonomi)

Ingredientes
350g de fubá vermelho; 100g de farinha de trigo; 5g de fermento em pó; 250g de leite integral; 4 ovos grandes; 150g de queijo cheddar; 2 colheres de sopa de queijo cottage; pimenta dedo-de-moça a gosto; 2 colheres de sopa de vinagre de maçã; sal a gosto.

Modo de fazer
Preaqueça o forno a 200OC. Unte uma assadeira (20cm x 25cm) e forre com papel-manteiga. Fatie fino as pimentas dedo-de-moça e coloque em uma tigela com o vinagre e uma pitada de sal. Deixe marinar. Misture em uma tigela grande o fubá vermelho, a farinha de trigo, o fermento em pó, o leite, os ovos e uma boa pitada de sal. Junte o milho, o cheddar esmigalhado e o queijo cottage. Escorra a pimenta e misture a essa massa até agregar tudo. Passe a massa para a assadeira forrada e asse por mais ou menos 40 minutos, ou até dourar. Deixe esfriar na assadeira por 10 minutos antes de desenformar. Experimente comer esse pão de tabuleiro grelhado com manteiga no café da manhã ou brunch. 

Serviço

Projeto Crioulo
(31) 99301-1483
www.projetocrioulo.com.br