Vamos começar pela cabeça. Com a bochecha, você consegue preparar um legítimo espaguete à carbonara italiano. Passando pela paleta, experimente montar um hambúrguer. A barriga pode se transformar em torresmo ou bacon. Aproveite a costela, com osso e tudo, para fazer um belo churrasco. Por que não fazer uma salsicha com o pernil e um molho roti com o pé?
O porco, assim como o boi, divide-se em uma variedade enorme de cortes. Conhecê-los é uma forma de garantir o aproveitamento total do animal e conseguir mais versatilidade na cozinha.
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Para você ter uma ideia, segundo a Associação de Suinocultores do Estado de Minas Gerais (Asemg), cada mineiro come cerca de 26 quilos por ano, sendo que a média nacional são 19 quilos. Mas, mesmo aqui, muitos cortes são subaproveitados.
Como todo mineiro, Fagner Rodrigues cresceu comendo carne suína. Quando resgata suas memórias, o chef se lembra de costelinha, suã, torresmo de barriga, pernil e só. Naquela época, poucos cortes do porco eram conhecidos e consumidos. “Hoje, vemos a valorização dos subcortes e o melhor aproveitamento da carcaça do animal”, aponta.
O mais comum era comprar alguma parte do pernil traseiro, que nos açougues chamam genericamente de pernil. Isso porque ali a carne é mais macia. Fagner mostra, porém, que o pernil dianteiro também tem preciosidades, entre elas a paleta, saborosa e com gordura entremeada. “A dona de casa não comprava porque o bife ficava duro, mas, se você souber como preparar, nem vai perceber.”
Segundo o chef, a paleta é ótima para ser cozida. A partir disso, ele ensina preparos que podem transformar um corte desvalorizado. A papada de Leo Paixão (Glouton) e a costela de boi de Rafael Pires (Mia) o inspirou a criar a paleta prensada. A carne, cortada em formato redondo, parece um medalhão.
Esse mesmo corte, quando desfiado, vira pulled pork, carne cozida lentamente e defumada do churrasco norte-americano, usada para rechear o sanduíche que leva seu nome. Se for moído, passa a ser um hambúrguer.
Ou seja, a paleta vai do prato sofisticado ao fast food, mantendo sabor e suculência. “Dá para fazer pelo menos quatro preparações diferentes com um corte do pernil dianteiro que ninguém dava valor: cozinhar, moer, prensar e desfiar.”
Acima da paleta está o copa lombo, também chamado de sobrepaleta. Por tanto tempo renegado, esse corte se compara ao bife ancho do boi, como explica Fagner. A título de curiosidade, o prime rib suíno é o corte de copa lombo com osso.
Recheio de guioza
O chef tem percorrido o estado com a Asemg para mostrar a diversidade de cortes do porco e de técnicas para se trabalhar com a carne. No caso do copa lombo, um das sugestões é preparar um recheio de guioza, usando temperos asiáticos. O toque mineiro fica por conta do molho ponzu de cachaça.
Agora já se sabe que o pernil traseiro tem vários subcortes, além do que conhecemos como pernil: picanha, filé-mignon, maminha, coxão duro, alcatra e ossobuco são apenas alguns exemplos.
“Para nós, consumidores, o filé-mignon não era trabalhado como corte especial. Ficava encostado no açougue, era vendido como filezinho e as pessoas nem sabiam o nome”, comenta. Em uma volta ao mundo, o chef usa o filé-mignon para rechear uma empanada argentina, servida com molho chimichurri, e também prepara o bife à milanesa schnitzel, muito popular entre alemães e austríacos.
Pela proximidade com a barriga, a fraldinha suína tem bastante gordura, o que faz com que seja extremamente macia. De assamento rápido, pode ir direto para a brasa ao lado de cogumelos e legumes grelhados. Já o tomahawk tem parte da costela e do copa lombo. Por ser grande e imponente, pela presença do osso, destaca-se sozinho no prato e nem precisa de muitos acompanhamentos.
Por outro lado, cortes tradicionais do porco podem ganhar nova roupagem. O pernil não precisa necessariamente virar bife ou ser assado inteiro no Natal. Fagner faz uma salsicha. Processa com os temperos, como cominho e coentro, e usa suco de beterraba para dar cor. Sua referência é Jefferson Rueda, da Casa do Porco, em São Paulo, que está entre os melhores restaurantes do mundo.
Com essa base, ele chega a três versões de salsicha: tradicional, estilo alemã e picante (com mais páprica). “Você não consegue identificar nenhum ingrediente na salsicha da indústria, ela é ultraprocessada. Nessa dá para ver que existe carne e o sabor não é artificial. No máximo, coloco para defumar”. Seu cachorro-quente é servido com maionese de limão e catchup defumado.
O lombo também pode ser consumido em forma de tartar. Sim, não há mais problema em comer carne de porco crua. “Não existe mais criar porco em chiqueiro. O controle sanitário é rígido, tudo é muito limpo, as vacinas são preventivas, trocamos os antibióticos por probióticos. Hoje em dia usamos muita tecnologia para o bem”, aponta o presidente da Asemg, João Carlos Bretas Leite.
Tradicionalmente associado à feijoada, o pé de porco pode ser usado para fazer molho roti. “Já que a base do roti é de ossos e aparas, por que não fazer um de porco?”. Na receita de Fagner, a cerveja escura entra no lugar do vinho tinto. Recentemente, ele serviu esse molho em um prato com costela que desmanchava na boca, angu de milho lavado e farofa crocante e cítrica.
Além de chefiar a cozinha do Querida Jacinta e do restaurante-escola da Faculdade Arnaldo, Fagner produz defumados e embutidos, como bacon e pastrami de copa lombo. “Uso nesse corte do porco a mesma técnica que utilizaria no peito ou coxão duro do boi: ele passa por cura e depois defumação.” Até a gordura pode se transformar em uma iguaria da gastronomia, que é o lardo.
No topo da lista
Minas Gerais não é referência apenas em consumo, mas também na produção da carne de porco. De acordo com dados da Asemg, somos o quarto maior produtor de suínos do Brasil (atrás dos três estados do Sul), com destaque para as regiões de Ponte Nova, Pará de Minas e Patos de Minas. No ano passado, foram comercializados 550 milhões de quilos de carne.
Hamilton Moreira Leite, pai do presidente da Asemg, é considerado pioneiro na suinocultura de Ponte Nova.
“Ele e o meu tio vieram do ciclo do porco tipo banha. Na década de 1960, quando surgiu o óleo de soja e a banha de porco começou a ser abandonada, eles tiveram que mudar o perfil da produção para porco tipo carne. Aí a cidade cresceu com esse negócio”, relembra João Carlos Bretas Leite, que trabalha com os associados para aumentar o consumo da carne suína.
A Matuto se dedica a uma pequena produção de porco caipira na divisa de Contagem e Ribeirão das Neves. Segundo o chef consultor Marco Túllio Abras, os animais são criados em um sistema humanizado.
“Existe um estigma em relação à criação de porcos, mas deixamos os animais soltos, comendo, eles vão engordando naturalmente, passam por banho de sol, recebem massagem e isso eleva a qualidade do que servimos.”
Há oito meses, a empresa comercializa cortes americanizados, como t-bone, short rib, tomahawk e bife ancho. “Decidimos trabalhar com esses cortes para mostrar que a nossa carne é diferenciada, não se iguala a uma carne comum”, pontua.
Marco Túllio explica que sabor e textura são completamente diferentes. Ela é mais avermelhada e tem uma camada de gordura mais espessa e uniforme.
O corte mais vendido é o prime rib, que une o sabor do lombo com a beleza do osso da costela. Por outro lado, o menos conhecido é o tomahawk, formado pela parte dianteira da costela e o copa lombo. “Ele tem o nome do machado de guerra dos índios americanos por causa do seu formato”, conta.
Esse corte chega a pesar 1kg e geralmente é servido em um prato para duas pessoas. No Chico Dedê, de André Paganini, você pode comê-lo com ravióli de queijo minas e roti de porco.
Desde que começou a vender os cortes especiais, a Matuto tem se surpreendido com a aceitação no mercado. O crescimento mensal está na média de 30%, o que acelerou o projeto de expansão. Hoje são abatidos no máximo 60 animais por mês e eles querem chegar a 250, sem perder a qualidade.
Paleta prensada com mousseline de baroa e vegetais na manteiga (Fagner Rodrigues)
Ingredientes
2kg de paleta de porco (pernil dianteiro); 30g de sal; 200ml de suco de laranja; 5g de pimenta-do-reino; 2g de cominho; 2g de gengibre ralado; 30g de cebola ralada; 5g de alho ralado; 100ml de água; 5g de tomilho; 200g de batata-baroa; 250ml de leite; 150ml de creme de leite; 40g de parmesão
Modo de fazer
Misture todos os ingredientes secos (sal, pimenta, cominho, gengibre, cebola e tomilho) e massageie a paleta por cinco minutos. Coloque a carne em um saco plástico e acrescente a água e o suco de laranja. Deixe descansar por 12 horas. Coloque a paleta em uma assadeira e coe a marinada. Acrescente o líquido na assadeira e cubra com papel-alumínio. Asse por quatro horas a 150 graus. Retire do tabuleiro, desfie toda a carne e espere esfriar. Abra um papel filme e coloque uma quantidade de carne que, ao enrolar, chegue a oito centímetros de diâmetro. Leve à geladeira por uma hora. Corte na espessura de dois dedos e retire o plástico. Coloque em um tabuleiro untado e leve ao forno preaquecido a 180 graus por 10 minutos. Cozinhe a batata-baroa e passe no espremedor. Leve ao fogo e acrescente o leite e o creme de leite, deixando ferver. Acrescente o parmesão e tempere a gosto. Sirva a paleta prensada com a mousseline de baroa e legumes na manteiga.