Não há nada melhor do que olhar para trás e sorrir para tudo o que viveu e construiu. Carla Pernambuco está assim: feliz e realizada com a sua história de 30 anos na gastronomia.
A carreira da gaúcha, que escolheu viver em São Paulo e se considera cidadã do mundo, é marcada pelo pioneirismo. A chef do Restaurante Carlota apresentou aos brasileiros o conceito de comfort food, marcou território como mulher à frente de uma cozinha e abriu espaço para receitas na TV.
A cozinha de Carla não se define apenas pelo conforto. Também é muito marcada por ser multicultural. “Sempre gostei de andar por vários territórios. A minha comida é muito variada, no bom sentido, de envolver a pesquisa de várias culinárias, mas sempre com um pé no Brasil.”
Essa pluralidade já começa na sua família e pode ser identificada em suas experiências de vida. Carla nasceu em Porto Alegre e tem ascendências uruguaia, italiana e portuguesa. Cresceu vendo os avós fazendo massas, embutidos, queijos e doces. Como era muito curiosa, estava sempre na cozinha e acabou pegando gosto pelo assunto.
Carla saiu de Porto Alegre para morar em Brasília, passou pelo Rio de Janeiro e ficou três anos em Nova York. Foi acompanhar o marido, fotógrafo, e aproveitou a oportunidade para estudar gastronomia.
“Estava numa das cidades mais importantes do mundo, nesse assunto que é comer bem, e decidi me dedicar a isso.” Até então, ela tinha trabalhado com teatro e comunicação.
Sua carreira na cozinha começou e deslanchou em Nova York. Lá, ela fez vários cursos, trabalhou em alguns restaurantes e ganhou destaque. Em 1994, saiu uma nota no The New York Times falando sobre o brunch brasileiro que Carla servia no Soho.
Essa página do jornal, já amarelada, é guardada com orgulho. Nela, lê-se que a jovem chef brasileira estava preparando pratos como feijoada, sopa aveludada de mexilhão e ensopado de peixe baiano.
Foi em Nova York que nasceu a ideia do Carlota. A chef não pensava em restaurante, queria montar um pequeno lugar para vender comida. Mas, ao abrir as portas do negócio em São Paulo, percebeu que as pessoas queriam se sentar para comer.
O ponto se transformou em um pequeno bistrô e o enorme balcão foi se encolhendo para dar lugar a mesas e cadeiras.
O Carlota chegou num momento em que o mercado gastronômico mundial se transformava. Os chefs ganhavam protagonismo (antes os maîtres eram as figuras mais importantes no salão) e as cozinhas caminhavam para uma proposta autoral.
“O restaurante chamou a atenção porque ninguém queria seguir essa carreira, ainda mais uma mulher jovem. A presença feminina na cozinha era rara.”
O cardápio reunia pratos que Carla gostava de comer e que queria dividir com os clientes. Não demorou para se tornar uma coletânea de sucessos. Boa parte dos pratos são servidos desde o primeiro dia, acompanhando, é claro, a evolução da cozinha da chef.
Clássico tem o seu lugar
Carla não se incomoda em fazer as mesmas receitas há quase três décadas. Pelo contrário, acredita que os clássicos têm o seu lugar.
“Entendo que as pessoas vêm ao restaurante querendo comer esses pratos. Cozinheiro gosta de trazer sabores novos, mas não vive só de inovação. Precisa servir uma comida que agrade, deixe saudades e seja desejada.”
Sua versão do inglês bife Wellington, aquela carne enrolada em massa folhada, faz sucesso até hoje. Tanto que é o prato mais vendido. Carla deu o nome de filé Wellington e combinou com risoto de queijo coalho e rúcula e molho poivre (de pimenta verde). Ela diz que faz comida clássica, sim, mas do seu jeito.
O bobó de camarão, que está em segundo lugar na preferência do público, é servido com arroz jasmim e farofa crocante de coco.
Agora, o ponto alto dessa história está no cardápio de sobremesas. Não dá para falar do Carlota sem se lembrar do suflê de goiabada, lançado logo no início e que virou o ícone da cozinha. É raro alguém se sentar no restaurante e não comer o doce.
A chef se baseou em uma receita da avó uruguaia. “Era um jeito muito inovador de servir goiabada com queijo”, comenta Carla, que viu sua ideia se espalhar por todos os cantos do Brasil.
O suflê chega quente à mesa, onde se junta a uma calda fria de requeijão cremoso. Naquela época, era uma ousadia trabalhar com ingredientes brasileiros de raiz.
Carla também desbravou a TV. Em 2010, ela estreava como apresentadora de um programa sobre cozinha brasileira, sem imaginar que esse caminho seria trilhado por outros tantos chefs. Sua vontade era compartilhar conhecimento.
“Sou uma criadora de conteúdo intensiva e fui construindo ao longo desse tempo um repertório de receitas. Saber cozinhar é um poder que todo mundo pode ter”, destaca. A chef também explora seu lado comunicadora escrevendo. Já tem 10 livros de receitas publicados, sendo dois infantis.
Esses 30 anos de carreira são de muitas realizações para Carla. Em primeiro lugar, ela diz que resistiu, com muita dedicação e resiliência, a todos os trancos e conseguiu manter o restaurante aberto. Um negócio que emprega, apoia pequenos produtores e alimenta pessoas.
Depois a chef fala sobre a satisfação de descobrir ingredientes e apresentá-los ao público. No momento, ela tem voltado seu olhar para a Amazônia e essas experiências, como a que resultou na feijoada com tambaqui defumado, bacon de pirarucu e feijão-manteiguinha, devem ir para o cardápio do Carlota.
“Sou uma pesquisadora que garimpa ingredientes, transforma-os em comida e serve no restaurante para que os clientes conheçam. Acho que é esse o nosso trabalho como chef.”
Sabores conhecidos
A cozinha de Carla evoluiu, agregou novas técnicas e equipamentos, mas ela continua a defini-la como comfort food. Mesmo reconhecendo que o termo que a acompanha há quase três décadas virou lugar-comum.
“Não vejo outra categoria para a minha comida. Não gosto de dizer que é contemporânea, nem variada, então me sinto bem confortável no comfort”, brinca.
Fora os clássicos, intocáveis para o público, o cardápio está sempre em movimento. A chef gosta de mostrar novidades, sem perder a identidade da sua cozinha.
“Faço uma comida viajada, com muita pesquisa por trás, mas muito fácil de reconhecer e consumir. Tento sempre encontrar o ponto de equilíbrio entre inovação e sabores que todo mundo gosta.”
Em recente reformulação, ela levou para o restaurante uma lasanha nada comum. Além de ser cortada em retângulos altos, tem massa de espinafre, mix de cogumelos, molho bechamel com queijo azul e creme de cebola caramelizada.
Para a chef, o encantamento da comida está em trabalhar elementos conhecidos, mas de um jeito diferente, que surpreenda.
A banoffee, outra novidade do cardápio, exemplifica bem o que ela quer dizer. Não parece ser a torta, mas todos os ingredientes (banana, doce de leite e massa) estão ali, no fundo de um copo de vidro tampado por uma casca de chocolate branco.
Quando chega à mesa, o garçom derrama uma calda quente de doce de leite, que une os elementos e faz o cérebro reconhecer imediatamente os sabores.
Além de surpreender com sabores conhecidos, Carla agora se desafia a criar pratos mais saudáveis e sem carne. Depois de sofrer um infarto, o que levou a uma insuficiência cardíaca, ela teve que repensar sua alimentação e isso se reflete no cardápio do restaurante, que já diminuiu o uso de gordura e açúcar nos preparos.
Apesar de todas as reclamações, o queridinho camarão crocante com risoto de presunto parma passou a ser servido apenas uma vez por semana.
O susto com a saúde acabou inspirando a criação do projeto Coração na mesa, que vai se desdobrar em um livro de receitas e um programa de TV com dicas de médicos e nutricionistas para cuidar da saúde através da alimentação.
“A comida é um jeito amoroso de dar o recado: dá para comer uma comida deliciosa que faz bem para você e fortalece o seu corpo”, aponta.
Suflê de goiabada com calda fria de requeijão cremoso
Ingredientes
200ml de leite; 100g de requeijão cremoso; 5 claras; 1 pitada de sal; 220g de goiabada pastosa
Modo de fazer
Misture o leite com o requeijão cremoso e leve ao fogo em banho-maria por cerca de 20 minutos. Bata bem com um batedor de arame para ficar uma calda lisa. Deixe esfriar e armazene na geladeira. Bata as claras na batedeira. Quando começarem a ganhar volume, junte o sal e bata até formar picos firmes. Adicione a goiabada aos poucos e misture bem com o auxílio de um batedor de arame. Se quiser usar goiabada tipo cascão, derreta no fogo baixo com um pouco de água até dar o ponto. Ela deve ficar bem cremosa e firme. Divida a mistura em forminhas de louça própria para suflê (ramequim). Leve ao forno pré-aquecido a 160 graus por aproximadamente 10 minutos, ou até subir. Aumente a temperatura do forno no fim do cozimento para dourar o suflê. Retire o suflê do forno e sirva imediatamente com a calda fria.
Serviço
(11) 98225-6030